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O que é um bom texto jornalístico?


01.01.1997



Para escrever bem, é preciso ler - ler muito, ler tudo, ler o tempo todo. Mas o texto jornalístico é escrito por alguém que, além de ler, faz perguntas. E gosta de ver as coisas por outro ângulo e, muitas vezes, pelo avesso. Um bom texto é fundamental no jornalismo. Jornalista que não escreve bem e não sabe usar as palavras é como o pintor que não sabe lidar com o pincel e as cores, ou a cozinheira que não tem intimidade com o fogão e os temperos, ou o jogador de futebol que não sabe usar os pés e dominar a bola. Ou seja, um bom texto é algo indispensável no jornalismo. Sem ele, não se pode exercer bem a profissão. Jornalista que não escreve bem, no máximo, é um profissional capenga. Mas o que é escrever bem? Quando sabemos que um texto está bem escrito? Não é fácil responder a essas perguntas. No entanto, quando lemos um texto bem escrito, somos capazes de dizer que estamos diante de um bom texto. Ou, ao contrário, quando lemos algo mal escrito, sabemos que não vale grande coisa. É o mesmo que se dá quando achamos uma comida saborosa ou olhamos um quadro que nos emociona. Não temos explicações para o que sentimos, mas não temos dúvida do que sentimos. Deixo a pergunta sem resposta, portanto. Talvez haja regras para textos de fino trato, mas eu não as conheço nem as saberia identificar. Prefiro ficar com a sensação de que um bom texto é algo intangível, que não cabe em padrões. É algo mágico, mas de um tipo de mágica que está ao alcance de qualquer um. A Cabala, um ramo místico do judaísmo, acreditava que cada uma das vinte e duas letras do alfabeto hebraico era um anjo. Assim, a palavra escrita nada mais seria do que uma determinada reunião de anjos, e um livro só nos emocionaria e nos diria algo se os anjos, reunidos de uma determinada forma, nos falassem através dele. O bom texto, portanto, seria fruto de uma mágica, de um milagre, enquanto, no mau texto, os anjos não se entenderiam, brigariam entre si. Por isso, não chegariam à alma do leitor. Estariam certos os cabalistas? Não sei, mas como eles entendiam como poucos de anjos, de números e de livros, é possível que tivessem alguma dose de razão na sua teoria. A palavra escrita é mesmo misteriosa. Mas, o que faz com que uma pessoa venha a escrever bem? Embora, nesse caso também não haja regras, o fundamental, sem dúvida, é ler - ler muito, ler de tudo, ler o tempo todo. É indispensável ler bons livros, de autores que realmente escrevem bem, mas é bom também ler o que é ruim ou o que não tem importância, ler revistas em quadrinhos, fotonovelas, bula de remédio, teses acadêmicas, outdoors - em suma, tudo. Ler muito, sem roteiros predeterminados, pelo menos até uma certa altura da vida, é crucial para desenvolver o prazer da leitura, o espírito crítico, o vocabulário, o domínio das imagens, o reconhecimento do som das palavras e do ritmo das frases. Do prazer da leitura é que nasce o prazer da escrita. A leitura é uma dimensão da vida, uma forma de se comunicar com o mundo. O estudante de jornalismo que não gosta de ler ou de escrever está escolhendo a profissão errada. Ainda há tempo para mudar de escolha. Porque esta é uma profissão na qual as pessoas têm de gostar de ler e de escrever. É claro que a leitura dos clássicos é fundamental, não porque alguém tenha dito que tal ou qual livro é imprescindível. Devemos ler os clássicos por uma razão muito simples: eles são realmente muito bons. E, porque são muito bons e, ao mesmo tempo, permanentes, são chaves para nos dar acesso aos tesouros culturais da nossa civilização. Há pouco tempo, li numa revista inglesa - "The Economist", uma revista extraordinariamente bem escrita, nem parece especializada em economia - que a Universidade de Harvard havia realizado uma pesquisa entre seus ex-alunos, formados há 30 ou 40 anos, que hoje ocupam lugares de destaque nos Estados Unidos e no mundo: banqueiros, empresários, advogados, políticos, economistas, diplomatas, jornalistas etc. A pergunta básica era a seguinte: por que Harvard fora importante pare eles? Os pesquisadores imaginavam que as respostas mais freqüentes se refeririam aos excelentes professores, às instalações da universidade, ao convívio com colegas brilhantes ou à abertura de relações que se revelaram importantes para a vida profissional posterior. Para surpresa geral, no entanto, cerca de 30% dos entrevistados disseram que o que mais lhes havia marcado em Harvard fora a leitura dos clássicos. Na universidade, eles haviam despertado para a leitura de autores como Homero, Shakespeare, Cervantes, Goethe, Balzac e Dickens, e essa descoberta marcara suas vidas, tornando-os herdeiros de símbolos, de mitos, de inteligências, de imaginações profundamente entranhados em nossa cultura, em nossa civilização. E tal herança fora assimilada através de uma atividade prazerosa: a leitura de histórias muito bem contadas nos clássicos da literatura mundial. No nosso caso, brasileiros, temos direito a um prazer extra: a leitura dos clássicos da literatura escrita na língua portuguesa - pelo menos, as literaturas portuguesa e brasileira. Ler Machado de Assis, José de Alencar, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Lima Barreto, Jorge Amado, Drummond, ou ainda Camões, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, Miguel Torga, José Saramago, para citar apenas alguns, abre-nos as portas não só do nosso idioma, mas da nossa cultura específica. Somos herdeiros do mundo, é verdade, mas somos herdeiros de um quintalzinho também, do qual não devemos abrir mão. Mas se ler os clássicos é indispensável, nem por isso deve-se deixar de ler o que é novo, o que está saindo do forno, o que fala sobre o mundo atual, ou o que fala sobre o mundo antigo com um olhar atual. Mas não vou mais me estender sobre a importância da leitura. Ler, ler e ler - é assim que criamos intimidade literária com o mundo, com a cultura, e com a palavra. É o primeiro passo para escrever bem. Evidentemente, cada um lê do seu jeito. Flaubert dizia que o homem lia para viver. Kafka, que tinha alma de jornalista, dizia que o homem lia para fazer perguntas. E, entramos, assim, em outra característica de um bom texto jornalístico: é um texto escrito por alguém que faz perguntas. O jornalista é, basicamente um curioso, um sujeito que desconfia, um profissional que duvida daquilo que lhe está sendo dito ou apresentado como a verdade absoluta. Quem tem o hábito de se contentar com a primeira versão ou com a versão oficial, tem de mudar de hábito se quiser ser um bom jornalista. No fundo, no fundo, fazer perguntas é uma forma de ler ou, como sugeriu Kafka, é a forma mais plena de se ler. Por isso mesmo, o bom jornalista não apenas lê o que está escrito, mas deve aprender a ler nas entrelinhas, a ler o que está além das palavras e, muitas vezes, a ler o que está escondido pelas palavras. A palavra - e palavra, aqui, tem um sentido amplo - sempre esconde mais do que revela. Então o bom jornalista tenta enxergar o não-escrito que se esconde no escrito, o não-dito que está camuflado no dito. Parece complicado, mas não é. Trata-se apenas de uma habilidade específica. Depois de adquirida, pode-se exercê-la sem maiores esforços. Há ainda uma terceira leitura indispensável ao bom jornalista: a das linguagens que não se expressam em palavras. A mãe entende o que seu bebê deseja ou sente, embora ele não fale. Mas, pela expressão do bebê, pelo seu jeito, pelo seu cheiro, pelo seu choro etc. ela sabe se ele está bem, se sente fome, se sujou as fraldas, se dormiu pouco e assim por diante. Trata-se de uma linguagem que não é falada, não é escrita, mas, mesmo assim, cumpre o seu papel: comunica. Um pescador, por exemplo, sabe quando a maré vai mudar, se o vento vai virar, se a temperatura da água está para se alterar. Um amante aprende a ler os sinais de sua amada, sem que ela tenha de falar com todas as letras o que deseja. Evidentemente, para isso, o amante precisa ter olhos para a amada, o pescador deve estar atento à natureza, a mãe tem de estar vivendo intensamente a relação com seu bebê. Um bom jornalista precisa interessar-se permanentemente por essas linguagens não-escritas e não-faladas. Um repórter, ao entrevistar um político ou um banqueiro, não deve se limitar a recolher suas declarações. Tão importante ou mais importante do que o que ele falou é como ele falou, se exprimiu-se com arrogância, sinceridade, raiva, insegurança, malícia etc. Se o repórter, ao ouvir a declaração de um ministro, teve a sensação de que ele não estava sendo sincero ou a certeza de que ele não dominava o assunto sobre o qual era entrevistado, tem a obrigação de passar essas informações para o leitor. Isso não se aprende na escola, não se ensina em lugar nenhum, mas é indispensável. Um bom jornalista não se limita ao óbvio e procura sempre ver as coisas por outros ângulos e, algumas vezes, pelo avesso. Bons textos jornalísticos não precisam ter um lead, necessariamente. O lead é uma apenas uma possibilidade, não uma camisa de força. Freqüentemente lemos matérias excepcionais que não têm lead, e, mais freqüentemente ainda, matérias chatíssimas que trazem logo no início as respostas para os cinco W e o um H (**). Por isso mesmo, atenção com lead. Ele não passa de uma técnica, surgida nos anos 50, para evitar o insuportável nariz-de-cera da imprensa tradicional, que, em vez de dar a notícia logo ao leitor, adiava-a por quatro ou cinco parágrafos de subliteratura. Em vez de informar que fulano de tal fora atropelado, dava voltas e mais voltas antes de chegar ao fato. Mais ou menos assim: "Quando saiu de casa e beijou a mulher, Antônio não sabia o que estava para lhe acontecer. Depois de esperar o bonde por quinze minutos, sentiu vontade de tomar um café etc etc". Então, o lead nasceu como uma reação saudável ao nariz-de-cera, embora há quem diga que ele foi uma imposição industrial. Os anúncios que entravam tarde obrigavam os editores a cortar matérias pelo pé, e, como muitas vezes a informação estava no fim do texto, perdia-se o mais importante. Para superar isso, o essencial subiu para a cabeça da matéria. O lead tem um grande mérito: organiza a informação. O lead tem um grande defeito: padroniza o estilo. O ideal é informar com um texto que seja o mais agradável possível. O que prende mais a atenção do leitor e informa-o melhor: a) uma notícia que comece assim: "Cerca de 250 pessoas morreram ontem na costa oriental da Guatemala, depois da passagem do furacão Flora, que varreu a região com ventos de mais de 200 km por hora, deixando aproximadamente 50 mil desabrigados"? b) ou uma matéria que comece dessa forma: "Maria Alonso passou a tarde de ontem procurando seus dois filhos, que desapareceram depois que o furacão Flora passou pela costa oriental da Guatemala, com ventos de mais de 200 km por hora. Sua busca terminou no começo da noite, quando os bombeiros encontraram os corpos das três crianças soterrados nos escombros da pequena escola de San Cristobal. Ao reconhecer os filhos, Maria olhou para o céu etc etc"? É evidente que o segundo texto atrai mais o leitor, pois nele há um personagem, há um drama humano, há sentimentos. A matéria não está falando sobre 250 mortos anônimos, mas sobre alguém individualizado, com quem o leitor pode se identificar, cuja tragédia o leitor pode sentir como sua. E, se isso ocorrer, mesmo que a matéria tenha 200 linhas, o leitor irá até o final. Matérias não são chatas ou atraentes porque são grandes ou curtas, mas porque são mal ou bem escritas ou porque versam sobre assuntos desinteressantes ou interessantes. Quando lemos um texto que nos atrai ou no qual nos reconhecemos, independentemente do seu tamanho, ele torna-se importante para nós. Mas será que todas as matérias de jornal precisam contar a história de alguém, ter personagens, trazer diálogos saborosos? É claro que não. Se a prefeitura decidiu ontem que o carnê do IPTU será enviado para os moradores na próxima quarta-feira, dificilmente a matéria irá além disso, embora um bom repórter possa descobrir, por exemplo, que, no ano passado, a prefeitura não cumpriu os prazos de entrega dos carnês, causando grande transtorno aos contribuintes. Ou seja, o bom repórter pode agregar uma informação que não é óbvia - e é importante - para o leitor. Mas, mesmo assim, provavelmente a matéria em questão não terá como fugir ao feijão-com-arroz. Por isso, na maioria dos casos, as matérias acabam obedecendo à forma tradicional, recorrendo ao velho e bom lead. Não tenho estatísticas, mas é possível que somente uma em cada dez matérias nos dê a oportunidade de fazer algo realmente diferente do trivial. É pouco? Nem tanto, desde que o repórter não desperdice essa oportunidade. Quem procura sair da mesmice, quem está sempre correndo atrás do que é diferente, quem está na ponta dos cascos, tem sempre mais chances de fazer algo interessante do que o profissional que está acomodado com a rotina do dia a dia. É impossível saber de antemão quando essa oportunidade vai aparecer. Mas o repórter inquieto, que está sempre se perguntando se não há uma forma mais interessante de escrever e de ler uma notícia do que através da cantilena dos cinco W e do um H, vai encontrar oportunidades que outros não encontrarão. Nesse sentido, o jornalismo pode ser uma atividade fascinante ou aborrecidíssima. Depende da postura de cada um. Fascinante é poder lidar com assuntos novos e ser capaz de se renovar, de não se conformar com as fórmulas batidas de sempre. O importante não é escrever de acordo com os manuais de redação ou de acordo com o padrão de um determinado editor, mas sim do jeito que transmite melhor a informação. Quem perder isso de vista estará derrotado de antemão na batalha diária que se trava entre a notícia e a rotina, entre a inovação e a regra, entre o talento e a burocracia na imprensa. Digo isso sem preconceito: bons jornais são feitos de uma combinação adequada de talento e organização. Sem talento, o jornal é um purgante. Sem organização, o jornal não sai, quebra e vamos todos para o olho da rua. Mas, pessoalmente, acho que os bons jornalistas devem fazer questão de militar na porção-talento dessa mistura. Ao insistir na necessidade de os jornalistas escreverem bem, não quero dizer que eles tenham de ser escritores. Longe disso. Jornalistas são parentes próximos dos escritores, dos novelistas, dos romancistas, dos poetas etc. Trabalham com a mesma matéria-prima: a vida. Usam as mesmas ferramentas: as palavras. Mas estão presos a uma dimensão de tempo diferente. Isso é crucial. A matéria-prima dos jornalistas é a vida, mas uma vida que amanhã não existe mais, pelo menos do jeito que está sendo contada hoje. A notícia que saiu hoje no jornal amanhã já estará embrulhando peixe, já terá ido para o lixo. O jornalista, portanto, lida com algo que é efêmero na sua manifestação, acaba logo, está prestes a ser superado. Já os romancistas, os poetas, os novelistas trabalham com um barro muito mais duradouro, que não desaparece no dia seguinte e, às vezes, atravessa décadas ou séculos. No fundo, nós, jornalistas, lidamos com os fatos da vida dos indivíduos, com aquilo que afeta seu cotidiano, enquanto os escritores tratam dos fatos, das angústias e dos problemas das sociedades, que vivem longos períodos. A humanidade mede-se por séculos e séculos; o homem, enquanto indivíduo, contenta-se com o dia, com a semana, vá lá, com o mês. Assim, o jornalismo é uma atividade vinculada ao dia-a-dia das pessoas, o que lhe dá a possibilidade de captar, antes de qualquer atividade, aquilo que é novo no mundo. É isso que é fascinante no jornalismo. Por que, então, soterrar o que ele tem de mais interessante debaixo da rotina e da mesmice, inclusive de textos previsíveis e fossilizados? O desafio de procurar escrever bem, no caso do jornalismo, apresenta dois grandes perigos para os quais eu queria chamar a atenção. O primeiro é a literatice. O jornalista esquece-se do leitor e da notícia, entra em delírio criativo, fica embevecido com seu texto e acaba fazendo literatura de má qualidade. O pior é que, geralmente, o sujeito acha que o texto está ótimo, quando não passa de uma porcaria impublicável. A literatice produz situações constrangedoras num jornal. É terrível dizer a alguém que se expôs e está esperando um elogio ou um estímulo que seu trabalho está horrível e só merece a lata de lixo. Mas isso tem de ser dito - e, nos jornais, felizmente, costuma ser dito. É melhor magoar o repórter do que aborrecer o leitor. O segundo perigo é a invencionice. Há repórteres que, no afã de escrever uma história mais interessante, acrescentam detalhes, produzem frases, floreiam ou carregam nas tintas de tal forma que a realidade é substituída pela ficção. Cuidado e pé no chão. Jornalistas dão notícias, reportam fatos que aconteceram; não inventam. Cito um caso famoso, ocorrido no “Washington Post”. Alguns anos depois das reportagens do caso Watergate, que demoliram o governo Nixon e marcaram época nos Estados Unidos, o jornal publicou uma série de matérias sobre um jovem de uns dez anos que se drogava. As reportagens estavam tão bem escritas e eram tão impressionantes que causaram comoção nos Estados Unidos, e acabaram ganhando o Prêmio Pulitzer, o maior prêmio do jornalismo americano. Mais tarde, descobriu-se que nada do que fora publicado era verdade. A repórter simplesmente inventara a história. A moça foi demitida, o jornal teve de se desculpar com seus leitores e o prêmio foi cancelado. Evidentemente, trata-se de caso extremo, mas a invencionice, em doses menores, é um pecado bastante corriqueiro nas redações. Mas nem o risco da literatice nem o da invencionice devem servir de pretexto para que o jornalista se recuse a aceitar o desafio de tentar escrever bem. Com autocrítica e ética, são perfeitamente superáveis. Por último, um bom texto jornalístico depende também de algo que não existe aos potes: paixão pela profissão. Já dizia Nelson Rodrigues, que, sem alma, não se chupa nem um chica-bom. Sem paixão pela profissão, sem gosto pela notícia, sem respeito pelo leitor, é impossível ser um bom jornalista. Certa vez, quando era secundarista aqui no Rio de Janeiro, fui entrevistar o poeta Carlos Drummond de Andrade para o jornal da escola. Depois da entrevista, perguntei-lhe: "Gostaria de ser poeta. O que devo fazer?” E ele me disse: "Para que você quer ser poeta? Tudo o que você pensar em escrever em matéria de poesia, alguém, antes, já escreveu melhor do que você será capaz de escrever." Eu dei aquela desanimada, e ele completou: "Mas se, apesar de saber que não vai fazer poesia melhor do que os que vieram antes de você, mesmo assim você sentir uma necessidade absoluta de escrever, então escreva. Provavelmente, você será um poeta". Desisti de ser poeta ali mesmo, naquela hora. Se você tiver paixão pela profissão, se tiver gosto pela leitura e nunca parar de ler, se estiver impregnado de uma curiosidade genuína diante da vida, se se acostumar a apurar os fatos com um olho na frigideira e outro no gato, se estiver disposto a correr riscos para sair da mesmice, você terá boas chances, então, de ser um bom repórter e escrever bem. Terá, então, seu estilo, e deixará sua impressão digital no que escreve. Os jornais hoje estão transformados em grandes máquinas, fazem parte de uma grande indústria. Muitos dos seus melhores profissionais estão ocupando funções que os afastam da tarefa de escrever todos os dias. São indispensáveis porque editam bem um página, dirigem bem um jornal, organizam bem uma redação. São decisivos para o jornal sair todo dia. Pessoalmente, porém, continuo achando que o mais fascinante num jornal é escrever, é ser um contador de histórias, é ser um farejador de notícias, é ser um ligador de fatos, mesmo sabendo que essas histórias, essas notícias e esses fatos, geralmente, duram apenas um dia e depois vão embrulhar peixes. (*) palestra proferida para estudantes de jornalismo na Faculdade da Cidade, no Rio de Janeiro, em 1997. Publicada como um capítulo do livro “Lições de Jornalismo 2”, pela UniverCidade Editora, 1999. (**) Cinco W e um H: who? (quem?), what? (o quê?), where? (onde?), why? (por quê), when? (quando?) e how? (como?). O lead clássico deve responder a essas seis perguntas.

Prefácio do livro “Viagem à luta armada”


01.01.1997



O autor deste livro, Carlos Eugênio Paz, participou intensamente da luta armada entre os anos de 1967 e 1973. Aos 17 anos, ainda estudante secundarista, integrou-se à Ação Libertadora Nacional, organização revolucionária dirigida por Carlos Marighella, que se propunha a derrubar a ditadura militar através da guerra de guerrilhas. Em pouco tempo, tornou-se um dos principais chefes militares da ALN, comandando um dos seus mais ativos grupos de combate. Poucos militantes participaram de tantas ações armadas naquele período como Clemente (ou Quelé), pseudônimo atrás do qual escondia-se Carlos Eugênio. Poucos também foram caçados tão ferozmente pelos órgãos de segurança como ele. O impressionante é que tenha sobrevivido. Por si só, isso já seria credencial bastante para que seu depoimento sobre a época fosse importante. Mas ainda há mais. Não existem muitas pessoas que, por sua experiência direta, tenham conhecido o cotidiano e as entranhas da luta armada desde o seu começo até o fim. As quedas nas organizações revolucionárias, como a ALN, o Colina, a VPR, o MR-8, a VAR- Palmares, o MRT, a Rede etc., sucediam-se com tal rapidez, que seus dirigentes mal tinham tempo para esquentar as cadeiras. Por isso mesmo, os que sobreviveram, geralmente, só podem falar com segurança sobre períodos muito curtos. Raríssimos são aqueles que puderam formar urna visão completa do processo, desde a época em que o sonho da luta armada supunha-se invencível até os estertores da guerrilha urbana, quando os militantes morriam como moscas, e o ódio e o desespero assumiram o lugar da esperança e da certeza no futuro. Carlos Eugênio é um deles. Bem, tudo isso seria o bastante para garantir um depoimento importante, mas não necessariamente um bom livro. E “Viagem à Luta Armada” é um bom livro. Talvez seja mesmo um excelente livro. Não falo como crítico literário, que não sou, mas como alguém que viajou a mesma viagem dessas páginas e nelas se reconheceu e com elas se emocionou e se indignou e se torturou e se abateu e se reconstruiu. O livro às vezes é discursivo, há passagens com adrenalina demais, em alguns momentos os pronomes ricocheteiam fora do lugar, mas nada disso compromete sua força. A tensão é constante, da primeira à última linha, costurada em rajadas curtas, que vão e voltam, em mergulhos cada vez mais profundos num poço que parece não ter fim. Lê-se de um fôlego. Acaba-se sem fôlego. Algumas referências históricas são indispensáveis para que não se julgue os personagens deste livro pelos padrões de hoje. Aqueles que pegaram em armas para lutar contra a ditadura podem ter escolhido um caminho errado, mas não eram loucos ou doidivanas. Certos ou errados, eram homens de seu tempo, jovens de seu tempo, um tempo diferente do que agora vivemos. Lutaram numa época em que mercado era o lugar onde as donas de casa faziam compras, e não a toda-poderosa entidade mítica que, atualmente, para alguns, deve comandar a humanidade com sua mão invisível. Massa era o povo a caminho de se encontrar com seu destino revolucionário, e não uma tentação para os que estão em dieta. Quem não tinha informação sobre um assunto estava mais por fora do que umbigo de vedete, uma expressão que chega a soar brejeira hoje, tal o recuo do pano e o avanço da carne nos fios dentais, tangas e asas deltas. O sucesso era importante, mas não a qualquer preço. Valores como solidariedade, lealdade, amizade ainda não tinham virado piada e esquentavam o coração de muita gente. Era um tempo diferente. Um em cada três homens vivia, então, num país socialista. Não eram poucos os que apostavam que o capitalismo, incapaz de resolver os grandes problemas da humanidade, estava cambaleante. Quanto à União Soviética, não só estava de pé como vinha de humilhar os Estados Unidos, ao colocar o primeiro homem no espaço. Se a Terra era azul, como dissera Gagarin, o futuro parecia vermelho. A Revolução estava na ordem do dia. Anos antes, um punhado de jovens guerrilheiros barbudos entrara em Havana e, pouco depois, proclamara a primeira república socialista da América Latina. A legenda do Che Guevara, morto nas selvas da Bolívia, corria solta pelo Terceiro Mundo. No Vietnã, um pequeno país de homens pequenos derrotava o mais sofisticado e poderoso exército do mundo. Um vento de contestação soprava pela Europa. Na África, o colonialismo chegara ao fim. Eram tempos de mudança. Em meio a esse quadro, o Brasil vivia sob uma feroz ditadura. Em 1964, os militares depuseram o presidente da República, João Goulart, afastaram dezenas de deputados e senadores do Congresso, fecharam sindicatos e entidades estudantis, e assumiram o poder. As forças de esquerda, dos trabalhistas aos comunistas, não esboçaram qualquer reação. Foram derrotados sem dar um tiro, e se desmoralizaram. O trauma ficou. Viria à tona mais tarde. Os líderes civis do golpe de 64, que esperavam que a presença dos militares no comando do país seria efêmera e o poder logo lhes cairia no colo, enganaram-se. Os chefes das Forças Armadas decidiram que só devolveriam a cena depois de extirpar o perigo comunista. E, como viam comunistas por todos os lados, foram ficando no poder. Assim, o marechal Castello Branco foi eleito presidente e, pouco depois, teve seu mandato prorrogado. Quando a oposição ganhou as eleições para os governos de Minas e do Rio, em 1965, o regime extinguiu os partidos. E, assim, de golpe em golpe, o regime foi se fechando cada vez mais. Em 1968, a oposição da classe média à ditadura extravasou através do movimento estudantil, que ganhou as ruas em todo o país e deu um caráter de massas - olha o dedo do passado no meu texto - à contestação política. As manifestações, inicialmente, foram reprimidas a golpes de cassetete e cargas de cavalaria. No final do ano, já eram dispersadas à bala. No mesmo ano, operários metalúrgicos - primeiro em Contagem (MG), depois em Osasco (SP) - entraram em greve e ocuparam as fábricas. Foram desalojados violentamente, mas deixaram a senha de que um novo movimento operário, mais radicalizado e mais moderno, estava em gestação. Enquanto isso, a oposição política contra a ditadura rearticulava-se com a fundação da Frente Ampla, que reuniu João Goulart, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda, respectivamente, ex-adversários e líderes dos principais partidos extintos, o PTB, o PSD e a UDN. Acuado, o regime militar reagiu com o AI-5, endurecendo ainda mais a ditadura: Congresso fechado por uns tempos, ministros do Supremo afastados, mais deputados e senadores cassados, censura prévia na imprensa, prisões em massa e utilização sistemática da tortura contra os presos políticos. A instalação do regime de terror, se paralisou parte da oposição, radicalizou outra. Milhares de jovens, julgando que não tinham qualquer possibilidade de atuação legal contra o regime, escolheram o caminho das armas. As ações da guerrilha urbana, antes espaçadas, amiudaram-se, cada vez mais audazes e bem organizadas: captura e desvio de armas, assaltos a bancos, panfletagens protegidas por revólveres e metralhadoras, explosões de prédios públicos, seqüestros de embaixadores etc. Essas ações, segundo a estratégia da maioria das organizações, buscava reunir dinheiro, armas e combatentes para o lançamento da guerrilha rural, fase que era tida como a decisiva. Num primeiro momento, o regime recuou, desarvorado. Mas, aos poucos, reorganizou-se e, graças ao uso de métodos brutais de interrogatório, foi recolhendo informações sobre as organizações guerrilheiras, o que rendia novas prisões, mais torturas e novas informações, num cicio de terror eficiente que fez a vitória pender, em pouco tempo, para o seu lado. O assassinato de Carlos Marighella (Fabiano, neste livro), ocorrido em 1969, foi o símbolo dessa virada. O de Joaquim Câmara Ferreira Toledo (Diogo), em 1970, confirmou essa tendência. O de Carlos Lamarca, em 1971, não deixaria mais dúvidas: a guerrilha estava liquidada. Milhares de militantes foram presos, muitos mais buscaram o exílio, centenas foram mortos, alguns em combate, a maioria sob tortura. Fecho o parênteses histórico e faço uma última observação: “Viagem à Luta Armada” é diferente maioria dos livros de ex-militantes sobre o período da luta armada, escritos quando o chumbo ainda estava quente e as feridas abertas. Não veio para saciar uma eventual sede de informação, nem para provar nada a ninguém. Não é um libelo ou tampouco um cartão de visita para os novos tempos. A impressão que dá é que não foi escrito, mas ruminado, rolando, antes de vir ao mundo, pelos sete estômagos da derrota, da impotência do ódio, da droga, do delírio, da psicanálise e, finalmente, da literatura. Talvez tenha se passado com ele o mesmo que ocorre com os vinhos de personalidade. Precisam de tempo, às vezes de muito tempo, para perder a amargura e alcançar o ponto exato. Vinhos jovens descem mais facilmente, mas só duram o breve instante da novidade. Depois vão para o vinagre. Assim, este não é um livro politicamente correto. Anda na contramão. Atropela preconceitos e idealizações, quando fala sobre a generosidade, mas também sobre o lado escuro da guerrilha. Por isso mesmo, convêm afivelar o cinto de segurança. (*) “Viagem da luta armada”, de Carlos Eugênio Paz. Foi editado em 1997 pela Civilização Brasileira.

As duas morte de Jonas


10.05.1997



Jonas, o profeta, viveu duas vezes. Uma não foi suficiente para que ele cumprisse sua missão e, por isso, o Deus em que ele acreditava deu-lhe outra vida, arrancando-o do ventre de um peixe. Já com Jonas, o guerrilheiro que comandou o seqüestro do embaixador norte-americano Charles B. Elbrick, passou-se o contrário. Morreu duas vezes: uma acabou com seu corpo, a outra quis suprimir sua alma. A primeira morte de Jonas, o guerrilheiro, ocorreu nas mãos dos agentes da Operação Bandeirantes, centro de terror que funcionava nas dependências da Polícia do Exército, na rua Tutóia, em São Paulo. Preso no dia 29 de setembro de 1969, cerca de três semanas depois do seqüestro, Jonas foi barbaramente torturado numa sessão de dez horas de pau-de-arara, afogamentos, choques elétricos, espancamentos, queimaduras etc. Recusou-se a ceder qualquer informação a seus torturadores, enfrentando-os a socos, pontapés e xingamentos. Como não puderam vencê-lo, os torturadores resolveram destruí-lo. Mataram-no selvagemente, batendo sua cabeça contra a parede até reduzi-la a uma pasta. No local do crime, restou uma poça de sangue, que os torturadores, eufóricos e excitados, exibiram a outros presos políticos como troféu de guerra. O corpo sumiu. Até hoje está desaparecido. A segunda morte de Jonas é mais recente. Está acontecendo, com estardalhaço, no filme O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto, com roteiro de Leopoldo Serran. Não se trata de uma morte física, mas de uma execução moral. Jonas é apresentado ao mundo inteiro como um monstro, um primata, um boçal, um desequilibrado, quase um psicopata. Entra em cena recusando o cumprimento de um companheiro, como se fosse um campeão dos maus modos. Logo em seguida, reúne os guerrilheiros que vai chefiar e adverte-os: a primeira bala de sua arma está destinada ao companheiro que não cumprir suas ordens; a segunda, àquele que sair em defesa do indisciplinado. E completa com algo mais ou menos assim: “Estamos entendidos?” Só faltou rosnar. No interrogatório de Elbrick, Jonas parece um alucinado. Encostando o cano da pistola na cabeça do embaixador, aos gritos, ameaça diversas vezes matá-lo, num misto de gozo e desequilíbrio que deixa a platéia em pânico - afinal, um assassino está no comando de um grupo de guerrilheiros de araque. Mas o Jonas do filme não se limita a ser um animal feroz com os inimigos. É também um tremendo mau caráter com os companheiros. A versão de Barreto/Serran é que Jonas passava o tempo todo fazendo intrigas e tentando desqualificar aqueles que não pertenciam a seu grupo. Como se isso fosse pouco, ainda teria manipulado a escala da guarda do diplomata, para que o turno da possível execução de Elbrick tocasse ao guerrilheiro-intelectual que, desde o primeiro momento, ele odiou e perseguiu. Não há dúvida: tratava-se de um sujeitinho ordinário, um recalcado da pior espécie. Terá o Jonas do filme algo a ver com o Jonas da realidade? Conheci este último durante um período curto, de 2 a 7 de setembro de 1969, quando participamos juntos do seqüestro do embaixador norte-americano. Nossa convivência foi curta, mas devido às circunstâncias, intensa. Posso assegurar que o Jonas do filme é um insulto ao Jonas da vida real. A sessão inicial de advertência nunca existiu, em momento algum do interrogatório o embaixador foi ameaçado com uma arma na cabeça; as intrigas e mudanças de escala atribuídas a Jonas não passam de invencionices. Durante todo o seqüestro, ele comportou-se como deveria se comportar à testa de uma ação como aquela. Era um homem valente e determinado, tranqüilo e atento, entusiasmado mas com os pés no chão. Tudo bem: ele não havia lido Gramsci e Lukács, provavelmente não amava os Beatles e os Rolling Stones e não freqüentara as sessões de cinema de vanguarda do Paissandu ou do Belas Artes. Não tinha a sofisticação intelectual de outros guerrilheiros. Mas em matéria de estatura pessoal, condição moral e experiência de vida, não ficava a dever nada a nenhum dele. Jonas - nome de guerra de Virgílio Gomes da Silva - tinha uma longa militância política. Nasceu no interior do Rio Grande do Norte e, como tantos nordestinos, migrou para São Paulo, onde tornou-se operário têxtil, ativista sindical e militante do Partido Comunista Brasileiro. Em 1962, durante um comício pelo 13°salário, foi ferido a bala. Em 1967, deixou o PCB junto com Carlos Marighella, fundando a Ação Libertadora Nacional. Fez treinamento de guerrilha em Cuba e, ao voltar, tornou-se um dos mais destacados chefes militares da ALN, tendo comandado dezenas de ações armadas. Ninguém é obrigado a considerar Jonas um herói pelo fato de ele ter pago por suas idéias e por sua militância um preço que poucos aceitariam pagar. Talvez ele fosse um homem mais rico interiormente do que admitem os preconceitos elitistas dos inventores do Jonas do filme. Ou talvez ele desse maior valor à liberdade e à dignidade que outras pessoas, e não fosse de regatear ou barganhar quando elas estavam em jogo. Nos tempos da luta armada, essa qualidade era chamada de “firmeza ideológica”. Hoje, com mais simplicidade, eu a chamaria de caráter. Jonas tinha caráter. O filme, porém, sentiu-se na obrigação de caluniá-lo, pintando-o como a besta-fera. Não vale tirar o corpo fora, alegando que se trata de uma obra de ficção, sem preocupação de correspondência com a realidade. Afinal, na vida real, o comandante do seqüestro atendia pelo nome de Jonas, pertencia à ALN e viera de São Paulo. No filme, também. É evidente que houve a intenção deliberada de superpor realidade e ficção, confundindo uma com a outra. Qual a razão? Preguiça mental, como ironizou o roteirista? Claro que não. Trata-se de uma escolha: o filme quis ter a liberdade da ficção, mas sem abrir mão do lastro da realidade. Afinal, o seqüestro do embaixador norte-americano tem presença difusa mas forte no imaginário da sociedade. Vende entrada de cinema. Um sucedâneo, talvez não. Assim, contatos de primeiro e segundo graus com fatos acontecidos e pessoas que viveram o episódio são indispensáveis. Sem isso ficaria muito difícil badalar o filme. Como nos programas humorísticos, é preciso que alguém faça as vezes de escada, para o comediante principal brilhar. Em O que é isso, companheiro?, a realidade é a escada. Cabe à ficção arrancar gargalhadas. A fórmula deu certo no livro. Por que não daria na tela? Isso explica por que há personagens no filme que se chamam Elbrick, Toledo, Jonas etc. Não explica, porém, por que é feita uma adulteração tão agressiva do caráter e do papel do comandante da operação. O que faz Jonas descer ao inferno é outra coisa: a síndrome do politicamente correto. O filme parte de um preconceito - não tomar partido em nada - que se transforma numa obsessão, às vezes beirando o ridículo. Por exemplo: se um guerrilheiro telefona para o Jornal do Brasil informando o local onde está a lista dos presos políticos a serem libertados, outro guerrilheiro está obrigado a pedir, logo em seguida, em alto e bom som, ao jornaleiro da esquina um exemplar de O Globo. É preciso contentar a todo mundo e nunca se expor tomando posição. É isso o tempo todo: uma no cravo, outra na ferradura. Barreto/ Serran julgam que essa atitude é sinônimo de isenção e apartidarismo. Não é. É indício de superficialidade, de insegurança, de dificuldade para tirar conclusões próprias. Quiseram fazer um filme equilibrado, fizeram um filme equilibrista. A obsessão dos autores pelo muro é a condenação de Jonas. Ele é animalizado para que o torturador possa se humanizar. Ou terá sido ao contrário, numa nova versão do enigma do Tostines? Pela mesma razão, os guerrilheiros são convertidos em doidivanas, enquanto os militares mais graduados aparecem como homens sensatos, que tentam conter os excessos dos oficiais envolvidos diretamente na tortura. É notável o esforço para dissolver fronteiras. Com isso, tenta-se afastar a necessidade de que o cineasta, atrás da câmara, e o espectador, em frente da tela, tenham de se colocar diante dos dilemas da época. Se todos os gatos são pardos, e ninguém está certo e ninguém está errado, para que tomar posição? Em vez de reflexão, digestão. É a receita de uma época: a atual. Não era a dos tempos que o filme pretendeu retratar. Apesar de tudo isso, não creio que O que é isso, companheiro? absolva a ditadura. Seria tarefa acima de suas forças. Tampouco o filme justifica a tortura. Se a classe média de baby-doll não caiu nessa, na época do terror de Estado e da propaganda maciça, não serão nossos jovens de bermudão hoje, com democracia e liberdade, que comerão gato por lebre no escurinho do cinema. O personagem do torturador não passa de uma tentativa; é um arremedo, raso e sem consistência. Não convence ninguém. Que diferença para filmes como A história oficial ou A batalha de Argel, em que a tortura tinha cara, alma e lógica. Mas, nesses casos, os cineastas podiam arriscar-se no mergulho. Não tinham medo, ao mesmo tempo, de condenar a tortura. Assim, de equilibrismo em equilibrismo, o filme acaba desequilibrado. Tem seqüências fortíssimas, como aquela em que Elbrick busca adivinhar a personalidade de seus captores a partir de suas mãos, e cenas infantis, como o ritual de entrada dos militantes na organização revolucionária - “todos contra a parede!”. Alterna ótimos diálogos, como o que é travado entre o guerrilheiro e o ator na porta do teatro, com falas ridículas, como as do treinamento na praia. É arrastado e chatíssimo no começo, mas ganha ritmo vertiginoso no final. Tudo somado, como cinema, não é nem uma obra-prima nem uma porcaria. É um filme médio. Um resultado previsível para quem cravou todas as suas apostas na coluna do meio. A qualidade da matéria-prima - refiro-me ao episódio, bem entendido - e a competência do cineasta permitiriam que o filme tivesse ido mais longe. Para finalizar, continuo achando, como sempre achei, pouquíssimo importante a exegese das minúcias da ação. A discussão sobre quem fez isso ou aquilo ou sobre quem foi mais importante numa operação militar é simplesmente ridícula. Todos os que participaram da ação estavam no mesmo barco e arriscaram suas vidas por igual. No mais, cada um sabe de si. Como não vivo no passado e, muito menos, do passado, não tenho o menor interesse em polemizar a respeito de minudências. O caso de Jonas, por certo, não é uma minudência. Ele está sendo morto pela segunda vez. Como na primeira, sem direito a defesa. É terrível como o homem não consegue conviver com a diferença. “(...) Narciso acha feio o que não é espelho”, já iluminou Caetano, e tem a necessidade de destruir o que não entende. (*) Este artigo, originalmente publicado no jornal “O Globo”, em 10 de maio de 1997, foi reproduzido no livro “Versões e ficções: o seqüestro da história”, coletânea de textos de diversos autores sobre o tema, editado pela Editora Fundação Perseu Abramo, 1997.

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