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Mais uma chance de consertar o Brasil


01.01.2006



Em entrevista concedida à revista Gôndola, da Associação Mineira de Supermercados, Franklin Martins comenta os primeiros passos do Governo Lula, aponta os erros que já podem estar acontecendo e dá sua opinião sobre as reformas previdenciária, tributária e política que estão em pauta para a discussão. (Por Marco Antônio Dias - Belo Horizonte) Gôndola: O PT governista deve manter uma postura cada vez mais parecida com os Trabalhistas ingleses de Tony Blair? Franklin: Ainda está cedo para podermos carimbar algum tipo de etiqueta em cima do PT e dizer como o governo Lula vai ser. Esta tudo muito no começo e os governos sempre levam pelo menos seis meses "tomando pé na máquina". No fundo, o PT está se comportando no poder conforme prometeu na campanha, ou seja, está fazendo um governo de centro-esquerda que promova mudanças, mas sem romper contratos e criar sobressaltos, respeitando as regras do mercado ao mesmo tempo que busca uma nova via de desenvolvimento. Até agora o governo do PT vem fazendo tudo isso de um modo até mais cauteloso do que se imaginava. A recente decisão de aumentar o superávit fiscal é um exemplo. O fato é que o PT está muito conservador na política econômica - não porque queira, mas porque a margem de manobra é estreita. Ao mesmo tempo o PT tem a compreensão de que não pode ser apenas um outro capítulo do ciclo Fernando Henrique. Ele precisa abrir uma nova etapa de desenvolvimento, diminuir a desigualdade social e reduzir as desigualdades regionais. O que deu a vitória a Lula nas eleições foi seu projeto de renovação, e ele precisa levá-lo à prática. Se não o fizer, frustrará seu eleitorado e terá seríssimos problemas. Em suma, até agora o PT está sensato, equilibrado, fazendo não o que gostaria de fazer mas o que as circunstâncias o obrigam a fazer, mas simultaneamente olhando para a frente, pois sabe que terá de fazer no futuro algo bem diferente do que está fazendo agora. Podemos dizer que o PT está em meio a uma travessia, na qual ainda está muito mais perto da margem de cá do rio do que da margem de lá - mas creio que, apesar de tudo, ele tem o olho posto no outro lado. Gôndola: Na sua opinião é possível dissociar as reformas da previdência e tributária? Franklin: Pessoalmente, acho que, se essas duas reformas forem discutidas simultaneamente, não avançarão. Ambas despertam resistências poderosíssimas e, se as resistências despertadas por uma puderem se aliar às resistências despertadas pela outra, as duas reformas acabarão embananadas. Elas têm de ser tocadas em separado e a que deve entrar primeiro é a previdenciária, sobre a qual existe um consenso maior. Embora ela enfrente resistências muito poderosas em setores do funcionalismo público, especialmente naqueles com maior "poder de fogo" - e aí entram os juízes, militares, procuradores e funcionários mais graduados do legislativo, reúne também um consenso mais amplo detrás de si. Há uma consciência razoavelmente disseminada de que está na hora de mexer na previdência pública. E desde o momento em que o PT, que era o maior adversário das mudanças na aposentadoria do funcionalismo público, deslocou-se para uma posição favorável à reforma, as condições políticas para sua aprovação aumentaram consideravelmente. No entanto, o PT está perdendo muito tempo. Essa história de discutir primeiro a reforma previdenciária no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, para só no final de maio enviar um projeto para o Congresso é, do ponto de vista político, um desatino, é um erro gravíssimo. Pode-se dizer que o Projeto de Lei Complementar número 9, que incide sobre os funcionários que venham a ingressar no serviço público, já está na Câmara. É verdade, mas ele só resolve os problemas daqui a 30 ou 35 anos. Os pro-blemas de curto e médio prazo, que afetam os servidores que estão hoje na ativa, precisam de medidas imediatas. E se o Congresso não votar essas medidas no primeiro semestre de 2003, talvez não as aprove mais tarde, porque o PT estará, seguramente, mais enfraquecido e Lula mais desgastado amanhã do que hoje. Ou seja, a força política para aprovar as reformas será muito menor dentro de seis ou oito meses. Vale lembrar que Fernando Henrique aprovou a reforma da Ordem Econômica no primeiro semestre de 1994 e, depois, não aprovou mais nenhuma reforma significativa - a não ser a emenda da reeleição, mas aí já eram outros quinhentos. A reforma administrativa e a da previdência do setor privado avançaram pouco - e os poucos avanços exigiram enorme esforço, porque também FH deixou passar seu melhor momento. Lula está se arriscando a cometer o mesmo erro. Gôndola: Como deve se comportar a economia em 2003 levando em conta todo esse cenário e também a guerra, mesmo que ela seja curta, como se está prometendo? Franklin: Ninguém sabe o que vai acontecer com a economia do Brasil ou com a economia mundial se houver a guerra, porque ninguém sabe se a guerra vai ser curta ou longa. Tudo isso é chute. Quem garante que em três semanas as tropas de Bush entrarão em Bagdá? Ninguém garante. Os Estados Unidos acreditam nisso, mas nada garante que eles estejam certos. Uma coisa é jogar bomba lá do alto, outra é botar a tropa no chão e entrar em uma cidade de 5 milhões de habitantes como Bagdá. Os EUA terão de esmagar resistências talvez significativas e isso não se faz com mísseis. Em geral, entra-se numa guerra achando que ela será rápida e ela acaba se mostrando mais complicada do que se imaginava. Se não tivéssemos a guerra, a economia brasileira tenderia a ir se ajustando aos poucos, completando o ajuste das contas externas, fazendo um ajuste fiscal mais consistente, o que permitiria, a médio prazo, derrubar juros e ativar a economia, que teria boas chances de terminar 2003 embicada para cima. Era razoável trabalhar com a idéia de um 2004 bem positivo. Mas, se vem a guerra, o preço do petróleo sobe, o fluxo de capitais se interrompe, a aversão ao risco aumenta ainda mais. Ou seja, aumenta a "turbulência" no Brasil e tudo pode acontecer. E ninguém sabe o que vai acontecer com a economia dos Estados Unidos com essa guerra. Gôndola: O programa Fome Zero aos poucos vai saindo do papel. Na sua opinião quais as chances desta ação ser bem sucedida? Franklin: Em tese, ele é um programa exeqüível e, do ponto de vista político, é um achado. Pode-se eliminar a fome no Brasil num prazo de quatro anos e, se isso ocorrer, o País terá mudado. Mas as chances do programa ser bem sucedido dependem do governo parar de patinar no Fome Zero. O primeiro é o foco. Não existem, como diz o ministro José Graziano, 46 milhões de pessoas passando fome no Brasil. Não é verdade que um em cada três brasileiros passe fome _ pode passar dificuldades, mas fome não. E quando se dispersa o foco dessa maneira, não se bota o foco onde tem de se botar: nas pessoas que efetivamente passam fome. As estatísticas variam, alguns falam em 22 milhões, outros em 16 milhões, ninguém sabe ao certo. Eu avalio que o número de pessoas passando fome permanentemente é menor ainda - e justamente por isso, focando corretamente no público-alvo, é possível resolver o problema. Mas se o programa se dispersar, dificilmente terá sucesso. O segundo problema é exigir nota fiscal. É muito mais simples botar o dinheiro - digamos, 50 reais - na conta das pessoas. No fundamental, elas vão gastar a grana com comida. Está certo: um ou outro vai gastar com cachaça ou com cigarro, haverá algum tipo de pequeno desvio. Mas se o governo partir para montar uma estrutura para controlar esses desvios, gastará mais dinheiro nisso do que no programa. E é onde a classe média e a burocracia ganham dinheiro. Uma vez já se disse que se o governo jogasse dinheiro de helicóptero, distribuiria melhor os recursos do que através dos programas sociais. É verdade, mas só na primeira vez. Na segunda, a classe média já teria descoberto como organizar a recepção do dinheiro lançado pelo helicóptero. É incrível a capacidade de nossa classe média de descobrir mecanismos para ordenhar o Estado. Não tem que se criar estrutura alguma de controle de nota fiscal. O que tem que haver é contra-partida: quem se habilitar no programa precisará ter suas crianças na escola, estar estudando ou retribuir com trabalho de alguma forma. Mas, apesar de todos esses problemas, creio que a possibilidade do programa dar certo é muito grande, e por uma razão muito simples: o País decidiu que não quer mais ser tão absurdamente injusto como é hoje. Foi isso que levou à vitória de Lula. Houve uma opção do País, e mesmo que o governo erre aqui ou ali, o País acabará acertando as contas com esse problema. Gôndola: Lula está, na área internacional, se impondo chamando para si a liderança da América Latina utilizando uma estratégia, muito usada pelos Estados Unidos, de dar palpite e se "intrometer" em diversos assuntos internacionais. Esse pode ser um dos caminhos para se obter respeitabilidade e fazer valer a opinião brasileira? Franklin: O Brasil tem um peso importante na América do Sul, na América Latina e na África. E deve exercer um papel mais ativo, embora sem ficar proclamando-se líder de nada. Porque ou você é líder ou não é. Não precisa ficar dizendo "eu sou líder, eu sou líder". Mas deve ter uma política mais ativa. A política externa brasileira nos últimos anos foi pouco ativa na América do Sul, na América Latina, na África, e em algumas relações bilaterais fundamentais - China e Índia, por exemplo. Nesse sentido, é bom que Lula esteja mais ligado nessas áreas. Junto aos países ricos, é bom destacar a participação de Lula em Davos - foi altamente positiva. Ele também foi muito bem nas conversas com Chirac (presidente da França) e com Schroeder (primeiro ministro da Alemanha). Havia a idéia de que nunca mais o Brasil teria outro presidente tão bom em política externa como Fernando Henrique. Essa idéia não existe mais. Lula está indo tão bem ou melhor do que FH. Pode até ter avançado um pouquinho o sinal na Venezuela, mas o saldo - até na Venezuela, é favorável. A verdade é que jogávamos muito na retranca e deixávamos de exercer o papel que devemos exercer e que, muitas vezes, os nossos vizinhos esperam que nós exerçamos. Gôndola: E a reforma política qual a importância dela no desenvolvimento do país? Franklin: Na minha visão, a reforma política é fundamental. Mas, as pessoas falam muito nisso e não falam precisamente sobre o mais importante. Se não houver uma reforma eleitoral, que mude a forma de se eleger os deputados e constituir a Câmara, não teremos reforma política. Nosso sistema eleitoral está falido. É um sistema no qual o eleitor vota simultaneamente num deputado e num partido, o chamado voto unipessoal ou proporcional com lista aberta. Esse sistema só existe no Brasil e na Finlândia - e não dá certo. Teve seu papel, mas já está totalmente superado. Ele produz um congresso em que os partidos são fracos, fragmentados, em que cada Deputado é uma ilha, acha que está sozinho e faz o que quer. E não se resolve isso impondo fidelidade partidária. É preciso reformar o sistema eleitoral, avançando para o sistema distrital misto ou para o proporcional com lista aberta. Mas quem vai votar essas mudanças? Esse Congresso? De jeito nenhum. Afinal, ele se elegeu nesse sistema e não sabe se elege no próximo. Então, a mudança tem de ser feita agora para passar a valer em 2010. Mas tem que fazer logo por que se não só entrará em vigor bem mais tarde - em 2014. Gôndola: Qual a avaliação que você faz destes 40 dias de governo Lula, se é que é possível? Franklin: Está cedo. É um governo interessado em acertar - como a maioria dos governos, aliás, com um padrão ético elevado, com uma preocupação social nítida, mas é um governo que ainda não domina a "máquina", o que é normal. Sempre que a oposição assume, ela precisa de algum tempo para dominar a "máquina do Estado". Isso faz com que qualquer governo, especialmente os de oposição, comecem a se desgastar tão logo assumam o poder. O momento de glória é quando se ganha a eleição porque só se tem o bônus da situação, não se tem o ônus de contrariar ninguém. No caso de Lula, a popularidade continua altíssima, mas, mesmo com 40 dias, as pessoas já estão de olho, prontas para cobrar. Já, já começam a cobrar. Então temos essa corrida. De um lado, um governo que ainda não domina a "máquina", que não está maduro e seguro do que vai fazer; e do outro a erosão natural do tempo, o desgaste político. Como é que isso vai se cruzar ali na frente? Ninguém sabe.

Prefácio do livro " Zarattini, a paixão revolucionária"


01.02.2006



Certa vez, disseram-me que quem luta pelas causas de seu tempo e de seu povo é um privilegiado. Entre outras razões, porque tem a possibilidade de conhecer pessoas extraordinárias. Lembrei-me dessa observação, ao sentar-me à frente do computador para escrever este prefácio para a biografia de Ricardo Zarattini Filho, que, em boa hora, José Luiz Del Roio está entregando aos leitores. Porque Zara é uma daquelas pessoas extraordinárias que tive o privilégio de conhecer durante a luta contra a ditadura militar. Há trinta e tantos anos que nossos caminhos se cruzam. Soube de Zarattini pela primeira vez, em setembro de 1969, quando Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo, propôs a inclusão de seu nome na lista dos 15 presos políticos que seriam libertados em troca do embaixador americano Charles Burke Elbrick, capturado numa ação conjunta da Ação Libertadora Nacional e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, que se propunham a derrubar a ditadura através da luta armada. Na reunião, Toledo, um tarimbado militante comunista com quase quatro décadas de lutas nas costas, representava a ALN; eu, então com 21 anos, falava pelo MR-8. Zarattini não podia ficar fora da lista, argumentou Toledo. Era um revolucionário provado, com larga experiência no trabalho de campo, especialmente no Nordeste, onde ajudara a organizar os trabalhadores da cana-de-açúcar. Preso, fora selvagemente torturado, mas não cedera qualquer informação ao inimigo. Quando relaxaram a guarda, fez o que poucos militantes haviam conseguido fazer até aquela época: fugiu da prisão. Meses depois, foi novamente preso, já em São Paulo, e submetido a terríveis suplícios. A polícia evidentemente queria porque queria saber quem o ajudara a escapar do quartel no Nordeste. Mais uma vez, Zarattini fechou-se em copas, segurou a barra e derrotou os torturadores. E assim, por seus méritos, ele entrou na lista, deixou a prisão e o país. Foi para o México e, depois de algum tempo, para Cuba. Meses mais tarde, conheci-o pessoalmente na ilha. Encontrei-o numa ampla e ensolarada casa em Marianao, bairro de Havana onde antes da Revolução moravam muitos dos endinheirados do país. Abandonada pelos antigos proprietários, que haviam fugido para Miami, a mansão servia então de morada e base para cerca de duas dúzias de militantes da ALN que aguardavam o início do treinamento de guerrilha. Ficamos amigos, mas logo nos separamos. Fomos enviados para acampamentos diferentes e, concluído o treinamento, tomamos rumos diferentes. Voltaríamos a nos encontrar – em termos políticos, não físicos – cerca de dois anos mais tarde, em 1972. Junto com outros companheiros da ALN, Zarattini chegou à conclusão de que a luta armada estava derrotada. Era necessário recuar e organizar a resistência nos sindicatos, nos bairros, nas escolas, nas entidades, nos clubes etc, acumulando forças para um novo momento. Na mesma época, desenvolvia-se no MR-8 um processo semelhante de reflexão, autocrítica e correção de rumos. Embora hoje salte aos olhos que, naquelas condições, a insistência na luta armada era um desatino, o óbvio ainda não estava claro para muitos companheiros. O clima ficou pesado e choveram as acusações de derrotistas, covardes ou, para usar a expressão que marcou uma época, “desbundados”. Na ALN, a proposta de correção de rumos não foi aceita, o que levou Zarattini e outros companheiros a deixarem a organização revolucionária fundada por Carlos Marighella. No MR-8, por estreita margem, ela obteve o apoio da maioria. Assim, no início de 1973, retornei clandestinamente ao Brasil para ajudar a reorganizar a resistência à ditadura sob uma nova perspectiva, apoiada no trabalho de massas e voltada para a reconquista das liberdades democráticas. Foi um tempo de absoluto sufoco, de terror generalizado e de aparente congelamento da atividade política. Mas, aos poucos, o país voltou a se mexer. Nas fábricas e nos sindicatos, grupos de trabalhadores se reorganizavam e buscavam apresentar suas reivindicações. Nas escolas, os estudantes, ignorando os dedos-duros e arriscando-se às freqüentes redadas policiais, faziam shows, promoviam atividades culturais, editavam jornaizinhos. Nos bairros, muitas vezes apoiando-se em estruturas da Igreja, grupos se reuniam para discutir os problemas do povo e a situação do país. Na imprensa, especialmente na imprensa alternativa, profissionais sérios tratavam de driblar a censura e, de alguma forma, fazer circular informações sobre a tragédia em que vivia o país. Muito já se falou sobre o heroísmo dos que tentaram assaltar os céus, pegando em armas para enfrentar a ditadura. As homenagens são merecidas, especialmente porque muitos, generosamente, deram suas vidas ou enfrentaram provações terríveis para que o Brasil um dia fosse um país melhor. Mas pouco se falou sobre o trabalho miúdo e anônimo dos que mantiveram acesa a chama da resistência nos anos de pesadelo de 1973 e 1974, quando a ditadura se pavoneava de haver aniquilado toda e qualquer a oposição e parecia inútil enfrentar os donos do poder. Naquelas circunstâncias, os que teimavam em lutar sequer tinham o estímulo da crença numa vitória próxima. Seu objetivo, bem mais modesto, era simplesmente não deixar a peteca cair e impedir, de alguma forma, que a ditadura se consolidasse e o dia de amanhã fosse pior que o de hoje. Manter a bicicleta pedalando, ocupando os claros deixados pelos que estavam nos cemitérios, nas prisões e no exílio – isso era o essencial. Aos que pedalaram naqueles anos de terror, mesmo que por pouco tempo e por curtas distâncias, o país deve muito mais do que se imagina. Em 1974, para surpresa geral, a ditadura sofreu uma fragorosa derrota nas eleições parlamentares. O partido do governo, a Arena, foi vencido pelo MDB. O povo deixou claro que estava calado, mas não satisfeito. A fermentação subterrânea começava a dar frutos e a ganhar a luz do dia. A partir daí, o país não pararia mais de pedalar. Nesse mesmo ano, por pouco não fui preso. Detectada minha presença em São Paulo pela polícia, tive de deixar novamente o país. Em 1975, foi a vez de Zarattini retornar clandestinamente à capital paulista, onde começou a publicar o jornal mimeografado “O Companheiro”, ponto de partida para a criação de uma rede de contatos e a estruturação de uma organização política. No início de 1977, depois de dois anos e meio de exílio em Paris, pude novamente retornar ao país. Meses depois, por insistência de militantes operários ligados a “O Companheiro” e ao MR-8 que trabalhavam juntos no movimento sindical, os dois agrupamentos chegaram à conclusão de que estava na hora de estreitar os contatos entre si. E, assim, um belo dia, Zarattini e eu nos encontramos novamente. Desta vez, em São Paulo, ambos na clandestinidade. Foi uma emoção muito forte. Não só havíamos atravessado o deserto e sobrevivido ao período mais difícil da história de nosso país, como nossas experiências nos haviam levado a ver a situação política de uma forma muito semelhante. A partir daí, passamos a nos encontrar com regularidade, geralmente no bairro do Pari, de manhã cedo, quando era grande o movimento das pessoas chegando às fábricas, escolas e comércio da região. Trocávamos informações e apoios, acertávamos atividades conjuntas, discutíamos a situação política e as perspectivas da luta. Até que numa manhã de junho de 1978, Zarattini faltou ao encontro marcado. Tampouco apareceu no “ponto-de-segurança” previamente acertado para o caso de perda de contato. Dias depois, veio a notícia, terrível: ele havia sido preso e tudo indicava que estava na Operação Bandeirantes, na tristemente famosa Oban. Achei que nunca mais o veria. Afinal, todos os outros banidos que, tendo retornado ao país, caíram nas mãos dos órgãos de segurança, sem exceção, foram executados, depois de comer o pão que o diabo amassou na mão dos torturadores. Mas, felizmente, os tempos já eram outros. As divisões no interior do regime tinham se aprofundado e a luta democrática havia adquirido enorme amplitude. Alertados sobre a queda de Zarattini, os setores oposicionistas de São Paulo reagiram prontamente e, com isso, conseguiram salvar-lhe a vida. Embora mais uma vez ele tenha sido submetido à tortura, não foi assassinado, como temíamos. Ficou preso até a anistia, em 1979, e, ao ser libertado, tornou-se o primeiro banido a sair com vida das prisões da ditadura. Com a anistia, voltamos a nos encontrar, já em condições bem mais favoráveis e, em pouco tempo, a fusão das organizações a que pertencíamos, interrompida com a queda de Zarattini, foi consumada. Nos três anos seguintes, trabalhamos estreitamente juntos. E pude comprovar as enormes qualidades de Zara, como militante e como pessoa. Tornamo-nos amigos para a vida toda. Quando em 1983, depois de um longo e penoso processo de luta interna, cerca de mil militantes decidiram se afastar do MR-8, por considerar que aquela organização havia se convertido numa espécie de linha auxiliar de dirigentes políticos do PMDB, participamos juntos desse movimento. De lá para cá, nossas vidas tomaram rumos diferentes. Com a redemocratização do país, voltei às redações dos jornais, nas quais entrei pela primeira vez aos 15 anos de idade. Zara seguiu sua militância, como ativista político, agitador social e assessor parlamentar, vindo a aportar, depois de muitas idas e vindas, no PT. Suplente de deputado federal, exerceu o mandato em 2004 e 2005 com competência e talento, sempre passando ao largo das firulas parlamentares e concentrando suas energias no estudo e no debate de questões relevantes. Talvez por isso tenha sido menos notado do que deveria. Durante todo esse tempo, mantivemos intacta nossa amizade, apesar de nem sempre pensarmos da mesma forma. Quando arrumamos tempo para botar a conversa em dia – em torno de uma garrafa de vinho, é claro, porque por algo ele é neto de italianos e eu, de portugueses –, costumamos concordar e divergir quase com igual freqüência e intensidade. Mas confesso que aprendi a levar a sério até suas observações mais surpreendentes. Zara, por vezes, bota o chumbo onde pouca gente achou que sequer valia a pena botar o olho. Recordo-me de uma conversa nos idos de 81 ou 82, creio, quando, numa roda de companheiros, perguntei-lhe sobre suas impressões sobre a União Soviética, que visitara anos antes. – Aquilo lá tem problemas muito maiores do que se pensa . E contou que, na sua visita a Moscou, precisou tirar fotocópias de um documento qualquer. Foi uma África. Só conseguiu copiar o papelório depois de várias tentativas, graças a uma autorização especial de um funcionário graduado do Partido Comunista da União Soviética. E arrematou, para a surpresa de todos os presentes, que julgavam a URSS eterna: – Um regime que não pode conviver com uma máquina de xerox não tem muito futuro. O que parecia uma piada ou uma esquisitice, mais tarde mostrou-se profecia. Zara é assim: está sempre de olhos bem abertos para o que acontece à sua volta, captando sinais que, muitas vezes, passam despercebidos aos outros. Essa inquietude de pensamento é sua marca registrada. Tudo bem, são as multidões que transformam o mundo e os partidos são instrumentos indispensáveis nas mudanças, mas não é por isso que ele vai deixar de pensar pela própria cabeça. fevereiro de 2006

Desafio a um difamador


14.04.2006



O sr. Diogo Mainardi, em artigo intitulado “Jornalistas são brasileiros”, publicado na revista Veja de 16 de abril de 2006, acusou a mim e a outros profissionais de imprensa de sermos “moralmente frouxos” e de mantermos “relações promíscuas” com o poder político. No meu caso, saiu-se com a estapafúrdia história de que eu teria uma cota pessoal de nomeações no serviço público. Nessa cota, estariam meu irmão, Victor Martins, diretor da Agência Nacional de Petróleo (ANP), e minha mulher, Ivanisa. Seguem-se alguns esclarecimentos. Devo-os não ao sr. Mainardi, mas a meus leitores, telespectadores e ouvintes, e também a meus colegas de profissão que, com razão, continuam a acreditar que o jornalismo só tem valor se for exercido com espírito público e ética: 1. Não tive, em qualquer momento ou em qualquer instância, nada a ver com a nomeação de meu irmão, profissional conceituado na área de petróleo, para a diretoria da ANP. Jamais intercedi junto a quem quer que fosse no Poder Executivo para sua indicação. Jamais pedi a qualquer membro do Senado, a quem cabe constitucionalmente aprovar ou recusar as diretorias das agências reguladoras, que olhasse com simpatia seu nome. Não movi uma palha nesse episódio. Meu irmão tem a vida profissional dele e eu, a minha. O sr. Mainardi não é obrigado a acreditar no que digo. Mas, se não fosse um difamador travestido de jornalista, teria se esforçado para apoiar suas acusações em fatos que revelassem uma conduta inadequada da minha parte, e não apelado para trechos de discursos desse ou daquele parlamentar com referências à minha pessoa que não significam absolutamente nada. Sobre o que falam deputados e senadores nem eu nem o sr. Mainardi temos a menor responsabilidade. Qualquer pessoa medianamente informada sabe disso. Somos eu e ele responsáveis apenas pelos nossos atos. Por isso, lanço-lhe um desafio. Se qualquer um dos 81 senadores ou senadoras – um só, não é necessário mais do que um – vier a público e afirmar que o procurei pedindo apoio para o nome de meu irmão, me sentirei sem condições de seguir em meu trabalho como comentarista político. Pendurarei as chuteiras e irei fazer outra coisa na vida. Em contrapartida, se nenhum senador ou senadora confirmar a invencionice do sr. Mainardi, ele deverá admitir publicamente que foi leviano e, a partir daí, poupar os leitores da “Veja” da coluna que assina na revista. Tudo ou nada, bola ou búrica. O sr. Mainardi topa o desafio ? Se topa, proponho que escolha uma pessoa de sua confiança, enquanto eu pedirei à Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) que designe um profissional acima de qualquer suspeita, para que ambos conversem imediatamente com todos os senadores e senadoras e ponham essa história em pratos limpos. Se não topa o desafio, o sr. Mainardi estará apenas confessando que não tem compromisso com a verdade e deixando claro que não passa de um difamador. Sei os riscos que estou correndo. Entre os 81 senadores, há vários que, em um ou outro momento, já foram frontalmente criticados por mim. Outros devem ter discordado inúmeras vezes de minhas opiniões e avaliações. É provável que haja, inclusive, quem, em algum episódio, tenha se sentido injustiçado por alguma palavra minha. Mesmo assim duvido que apareça um só senador, governista ou oposicionista, do Norte ou do Sul, veterano ou novato, que confirme a afirmação insultuosa do sr. Mainardi de que fiz tráfico de influência para nomear um irmão para a ANP. Duvido que apareça por uma razão muito simples: isso simplesmente nunca ocorreu. 2. Quanto à minha mulher, é funcionária pública há mais de 20 anos. E servidores públicos, sr. Mainardi, por incrível que lhe pareça, trabalham no serviço público. Não sei qual a razão de sua surpresa com o fato. Devo esclarecer que, embora seja profissional extremamente competente, com mestrado em planejamento social na London School of Economics, já tendo dirigido agências e programas nacionais na área, no momento minha mulher não exerce cargo comissionado e sequer tem função gratificada. Por que? Não sei. Coisas do serviço público ... Dados os esclarecimentos, sigo adiante. Nem sempre concordo com o que escrevem Eliane Cantanhede, da “Folha de S. Paulo”, e Helena Chagas, de “O Globo”, também difamadas pelo sr. Mainardi no artigo mencionado. Mas isso não me impede de dizer que são duas tremendas profissionais, das melhores jornalistas deste país. Na nossa profissão, como em todas outras, há gente séria e gente que não presta, pessoas íntegras e pessoas sem caráter. Eliane e Helena estão na primeira categoria e me honra ter sido colocado na companhia delas. Para mim, desabonador seria o contrário. Os ataques que sofremos Eliane, Helena e eu talvez sejam os mais graves, mas não são os primeiros que o sr. Mainardi lançou recentemente contra jornalistas. Nos últimos meses, semana sim, semana não, pelo menos duas dúzias deles, foram vítimas de investidas absolutamente desrespeitosas, carregadas de insinuações capciosas contra suas atividades e carreiras. Mas como ninguém deu pelota para os arreganhos do rapaz – nem os jornalistas, que simplesmente não o levam a sério, nem os leitores da “Veja”, que já se cansaram de ver um anão de jardim querendo passar-se por um gigante da crônica política –, o sr. Mainardi decidiu aumentar o calibre de seus ataques. E partiu para a difamação pura e simples. Vivemos numa democracia, felizmente. Todos têm o direito a defender suas idéias, mesmo os doidivanas, e a tornar públicas suas posições, mesmo as equivocadas. Em compensação, todos estão obrigados a aceitar que elas sejam criticadas livremente. O sr. Mainardi, por exemplo, tem a prerrogativa de dizer as bobagens que lhe dão na telha, mas não pode ficar chateado se aparecer alguém em seguida dizendo que ele não passa de um bobo. Pode pedir a deposição do presidente Lula, mas não pode ficar amuado se alguém, por isso, chamá-lo de golpista. Pode dizer que o povo brasileiro é moralmente frouxo, mas não pode se magoar depois se alguém classificá-lo apenas como um tolo enfatuado. Ou seja, o sr. Mainardi pode falar o que quiser, mas não pode querer impedir que os outros falem. Mais ainda: o sr. Mainardi é responsável pelo que fala e escreve. Enquanto permaneceu no terreno das bobagens e das opiniões disparatadas, tudo bem. Faz parte da democracia conviver com uma cota social de tolices e, além disso, presta atenção no bobo da corte quem quer. Mas quando o bufão passa a atacar a honra alheia, substituindo as bobagens pela calúnia e as opiniões disparatadas pela difamação, seria um erro deixá-lo prosseguir na sua torpe empreitada. No Estado de Direito, existe um caminho para os que consideram que tiveram a honra atacada por um detrator: recorrer à Justiça. É o que farei nos próximos dias. No processo criminal, o sr. Mainardi terá todas as oportunidades de provar que usei minha condição de jornalista para traficar influência. Como é mais fácil um burro voar do que ele dar substância às suas invencionices a meu respeito, estou confiante de que se fará justiça e o difamador será condenado pelo seu crime. Desde já, adianto que, se a Justiça fixar indenizações por danos morais, o dinheiro será doado à Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e à Associação Brasileira de Imprensa. Não quero um centavo dessa causa. Não dou tanta importância a dinheiro como o sr. Mainardi, que já definiu seu próprio perfil: “Hoje em dia, só dou opinião sobre algo mediante pagamento antecipado. Quando me mandam um e-mail, não respondo, porque me recuso a escrever de graça. Quando minha mulher pede uma opinião sobre uma roupa, fico quieto, à espera de uma moedinha”. Prefiro ficar com Cláudio Abramo: “O jornalismo é o exercício diário da inteligência e a prática cotidiana do caráter”. Mas, para tanto, o sr. Mainardi está incapacitado. Não porque lhe seja escassa a inteligência; simplesmente falta-lhe caráter. A história da moedinha diz tudo. Da minha parte, seguirei fazendo o único jornalismo que sei fazer, o que busca dar informações ao leitor, ao telespectador, ao ouvinte, com inteligência e respeito, para que ele forme sua própria opinião sobre os fatos. Não quero fazer a cabeça de ninguém. Não creio que essa seja a missão da imprensa, ainda que alguns jornalistas e alguns órgãos de comunicação, de vez em quando, queiram ir além das suas chinelas. Existimos para informar à sociedade, e não para puxá-la pelo nariz para onde quer que seja. E desse jornalismo não vou me afastar, apesar das mentiras, da gritaria e das difamações do colunista da “Veja”. O macartismo não me intimida. O sr. Mainardi, muito menos.

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