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Prefácio do livro "A rebelião dos estudantes"


01.05.2001



Muito já se escreveu sobre o movimento de 1968, mas, mesmo assim, o livro “Brasília, 1968”, de Antonio de Pádua Gurgel, tem sabor de novidade. É que, em geral, os textos sobre o assunto referem-se às manifestações e à organização dos estudantes no Rio e em São Paulo, ou ainda analisam o tema a partir de uma perspectiva nacional. Resultado: o Distrito Federal foi esquecido ou não teve o destaque que merecia por sua participação nos acontecimentos daquela época. Qual a razão disso? Arrisco algumas hipóteses. Primeira: em 1968, Brasília era uma cidade muito jovem - havia sido fundada oito anos antes, e ainda não formara sua própria identidade cultural. Tinha dificuldades para entender-se e, conseqüentemente, para explicar-se ao mundo. Segunda: mesmo amordaçada, a UnB tinha como referência um projeto de vanguarda. No quadro de arcaísmo das demais universidade públicas brasileiras, era um peixe fora d’água. Terceiro: talvez em nenhum lugar a repressão dentro das escolas tenha sido tão dura quanto no Distrito Federal. No Rio, em São Paulo ou no Nordeste, a tradição de autonomia universitária dificultou o estabelecimento de um clima de ordem unida no topo do mundo acadêmico. Havia mais espaço para manobrar. Na UnB, talvez por que a instituição ainda usava fraldas, talvez por que estava muito próxima do poder, ditadura militar e reitoria logo confundiram-se. Como nas ruas a polícia batia à vontade, não havia para onde correr. Ou seja, a cidade era diferente, a universidade era diferente e as condições da luta eram diferentes em Brasília. Tanta especificidade talvez explique por que os textos sobre 68 não se detêm muito na informação e na análise sobre o movimento no Distrito Federal. Pessoalmente, como vice-presidente da União Metropolitana dos Estudantes (UME) e como presidente do Diretório Central dos Estudantes da UFRJ, entidades cariocas, tive freqüentes contatos com os dirigentes da FEUB (Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília) nos anos de 1967 e 1968, nos conselhos e congressos da UNE. Eram reuniões intermináveis, confusas e marcadas por duros enfrentamentos. Impressionava-me a radicalização do movimento em Brasília. A FEUB sempre estava na dianteira das alternativas mais duras, opondo-se às posições mais amplas - ou mais moderadas, depende do ponto de vista, da UME e da União Estadual dos Estudantes de São Paulo. Desconfiava das propostas intermediárias, rejeitava tudo que cheirasse a compromisso. O interessante é que essa radicalização não era fruto da ação de um pequeno grupo, distante das salas de aula e encastelado na entidade, como ocorria em alguns lugares. Ao contrário, na capital da República, era expressão da radicalização do próprio movimento. A base empurrava os líderes para posições extremas. Tanto que a principal força política na UnB , a Ação Popular - organização de origem católica em trânsito para o marxismo, que, na maioria dos estados, capitaneava a ala mais à esquerda do movimento, em Brasília era acusada de reformista e moderada pelo pessoal mais xiita, ligado à IV Internacional. Repressão duríssima e radicalização espontânea - esses foram os dois traços marcantes do ME de Brasília nos idos de 68. E eles surgem em cada página deste livro, nos episódios relatados, nos fatos trazidos à tona, nos depoimentos colhidos. São estudantes entrando na borracha, policiais sendo presos e interrogados por adolescentes, deputados e senadores participando de assembléias universitárias, reuniões no palácio do Planalto convocadas às pressas para dar resposta a uma passeata iniciada dez minutos antes na W-3. Num momento, aparece Roman Blanco, misto de professor, picareta e policial, organizando a dedo-duragem e a repressão no campus. No outro, flagra-se a escalada da linha dura rumo ao controle total da UnB. Mais adiante, topa-se com os secundaristas do Colégio Agrícola, em Planaltina, ocupando a escola sob a liderança de um “Diretório Revolucionário Ernesto Guevara” - mais um pouco, teríamos uma Sierra Maestra a 25 quilômetros do Palácio do Planalto. A narrativa desses e de outros episódios dá colorido e força ao livro. Afinal, não se bota de pé um sistema de repressão digno desse nome sem a colaboração pressurosa dos carreiristas de plantão e dos oportunistas de ocasião. Tampouco se pode ir à luta contra a ditadura sem a participação incendiária de alguns delirantes recém saídos dos livros. Algumas questões mais gerais são importantes para se entender o movimento estudantil brasileiro em 68. Sem querer me alongar no assunto, que já consumiu toneladas de papel e rios de tinta, acho que a explosão daquele ano foi fruto de quatro casamentos e de um divórcio. O primeiro casamento deu-se entre os estudantes politizados, que resistiam à ditadura e lutavam pela sua derrubada, e a massa dos estudantes, que queria apenas receber uma boa formação acadêmica e profissional. Durante os anos imediatamente posteriores a 1964, esses dois segmentos haviam vivido em mundos diferentes. Os estudantes politizados faziam o capeta: participavam de assembléias, pichavam muros, distribuíam panfletos, denunciavam arbitrariedades, convocavam greves e manifestavam-se nas ruas. Eram vistos com simpatia pela maioria dos colegas, mas não deixavam de ser um corpo estranho nas faculdades. A partir de 1967, entretanto, esse quadro foi se modificando. As chamadas vanguardas estudantis deram-se conta de que o projeto da ditadura militar para a universidade - privatização do ensino superior, introdução das mensalidades nas escolas públicas, adoção de currículos ligados às demandas das empresas, diminuição do espaço para a crítica e a pesquisa científica, abolição da autonomia universitária etc - chocava-se frontalmente com os interesses dos alunos. Ou seja, o confronto entre ditadura e estudantes não se dava apenas no plano político e fora da universidade, mas manifestava-se também nas questões concretas que afetavam o cotidiano dos alunos dentro das salas de aula. Assim, partiu-se para organizar e mobilizar as escolas por melhores condições de ensino, mais verbas para a educação, mais vagas nas universidades - e, nesse processo, levá-las a lutar contra o regime militar. A resposta dos estudantes foi imediata. O movimento cresceu e ganhou caráter de massas - e topou com a intransigência das autoridades acadêmicas e a repressão da ditadura. Resultado: através de sua experiência, a massa dos estudantes foi se colocando numa oposição cada vez mais frontal ao regime. E os estudantes politizados, de esquerda, que antes eram vistos como agitadores profissionais, passaram a ser respeitados e, naturalmente, ganharam a liderança do movimento. Em 68, estavam todos no mesmo barco. O segundo casamento deu-se fora da universidade, entre dois segmentos da classe média: o que havia se oposto ao golpe de 64 e o que o havia apoiado. A luta pelas reformas de base durante o governo João Goulart dividira a classe média. Uma parte dela, minoritária, vira na mudança das estruturas o caminho para a modernização do país e para a diminuição das injustiças sociais. A outra, majoritária, ao contrário, manipulada pela propaganda anticomunista, reagira furiosamente à bandeira das reformas. Pior: através de suas lideranças, batera às portas dos quartéis pedindo a deposição do presidente constitucional, na expectativa de que, afastado Jango, as Forças Armadas entregassem aos políticos de direita o comando do país. Não foi isso, porém, que aconteceu. Deposto o presidente, a cúpula militar organizou uma ditadura que não só esmagou a esquerda, as forças democráticas e as organizações populares, como, em pouco tempo, marginalizou ou relegou a posições decorativas líderes como Carlos Lacerda, Magalhães Pinto e Adhemar de Barros, que haviam apoiado o golpe. A constituição da Frente Ampla, em 1967, reunindo Goulart, Lacerda e Juscelino Kubitschek, em torno de uma plataforma centrada na redemocratização do país, de certa forma já indicara que os dois segmentos da classe média haviam voltado a juntar seus trapos. Apesar dos ressentimentos e cicatrizes, estavam novamente sob o mesmo teto. Evidentemente, esse fato constituiu um tremendo impulso para o movimento estudantil. Em suas casas, de modo crescente, os jovens foram encontrando mais compreensão para seu sentimento contrário à censura, à falta de liberdade, ao obscurantismo, à mediocridade intelectual, à repressão. Em decorrência, nas salas de aulas, nos corredores, nas cantinas e refeitórios universitários, diminuiu o preconceito anticomunista e aumentou a troca de idéias. Rapazes e moças de formação conservadora abriram-se para as opiniões e os argumentos de seus colegas de esquerda. O resultado é que, em 1968, quando o movimento estudantil saiu às ruas e enfrentou a polícia, a classe média, em sua maioria, já tinha deixado para trás a divisão de 64. Ficou ao lado de seus filhos. O terceiro casamento foi um enlace em escala planetária. As lutas estudantis no Brasil uniram-se ao furacão que atravessou o mundo naquele ano. Abruptamente, no Primeiro Mundo, chegou ao fim o período de relativa apatia política que se seguira ao fim da II Guerra: Maio em Paris, revoltas estudantis na Alemanha, na Itália e na Inglaterra, movimentos contra o racismo e a guerra do Vietnã nos Estados Unidos, violentos protestos de rua em Tóquio. O bloco socialista também passou por um momento dramático, com a invasão da Tchecoeslováquia, onde o Partido Comunista local tentava conciliar socialismo com liberdade. Enquanto isso, no Terceiro Mundo, os movimentos de libertação nacional colecionavam vitórias atrás de vitórias, mostrando ao mundo que os tempos eram outros. A ofensiva do Tet (ano novo budista) no Vietnã, semeando a pânico entre as tropas norte-americanas, deixou claro que o triunfo do Vietcong era uma questão de tempo. Esse turbilhão internacional produziu um caldo de cultura propício para o surgimento e o crescimento do movimento estudantil no Brasil. Mas, nem de longe, a luta por aqui foi um reflexo do que se passava lá fora, tanto que as primeiras grandes manifestações no Rio ocorreram em fins de março, bem antes, portanto, do Maio francês ou da Primavera de Praga. Pessoalmente, creio que bem maior, no coração e na mente dos jovens brasileiros, foi o impacto da ofensiva do Tet. Há anos seguíamos os vaivéns da guerra no Sudeste Asiático. Conhecíamos de cor e salteado os rios, cidades e bases militares mais importantes do Vietnã, como Mekong, Hué, Da Nang ou Khe San, ou os nomes de seus líderes: Ho Chi Min, Le Duc Tho ou Vo Nguyen Giap. Torcíamos pelos guerrilheiros que enfrentavam chuvas de napalm, agentes químicos desfolhantes e bombas de última geração. Impressionava-nos a firmeza de Hanói diante dos bombardeios diários dos B-52. Por isso mesmo, vibramos quando o Vietcong, da noite para o dia, irrompeu no coração de Saigon e no perímetro defensivo das base militares americanas. Se os vietnamitas podiam vencer a mais poderosa máquina de guerra do mundo, por que o povo brasileiro não poderia derrubar a ditadura? E assim chegamos ao último dos quatro casamentos, o que se deu entre o movimento estudantil e o impulso de renovação dos valores da sociedade - renovação num sentido bem amplo: dos costumes, da moral, dos padrões artísticos, dos modos de pensar e de se comportar. Talvez por ter se chocado tão frontalmente com a ditadura, o ME acabou sendo o estuário de um processo de mudanças muito mais amplo e profundo que se desenvolvia tanto no Brasil como no exterior. As saias subiam, os cabelos cresciam, a pílula se popularizava, os padrões sexuais se transformavam, os modelos tradicionais de casamento e educação familiar entravam em crise. As artes e a literatura buscavam novos caminhos, e os intelectuais e artistas descobriam que o mundo era muito maior e mais surpreendente do que eles imaginavam - e muito mais cheio de esperança. Vivia-se um tempo de mudanças, no qual tudo era possível - ou, pelo menos, tudo parecia possível. O casamento entre a ação política e a revolução dos valores manifestou-se, é claro, de forma distinta em cada país. As questões comportamentais, por exemplo, tiveram maior peso na Europa do que no Brasil e no México, onde a repressão política estava no centro das atenções. Basta lembrar que os protestos na França começaram com os estudantes de Nanterre insurgindo-se contra a proibição da livre circulação entre os alojamentos masculinos e femininos da universidade. No Brasil, tiveram início com a morte à bala de um secundarista durante uma manifestação contra o fechamento de um restaurante estudantil. Ou seja, as realidades da Europa e da América Latina eram bem diferentes. Mas mesmo assim, também no Brasil, o movimento estudantil em 68 foi expressão e desaguadouro da agitação comportamental e da efervescência cultural que atravessava a sociedade. Não é à toa que as grandes manifestações atraíram escritores, atores, músicos, cineastas, jornalistas, artistas plásticos, mitos sexuais, intelectuais performáticos e iconoclastas de carteirinha. “É proibido proibir”, cantava Caetano. E como, na época, nada era mais proibido do que gritar “abaixo a ditadura”, quem estava contra alguma coisa ou queria mudar o mundo de alguma maneira sentia-se em casa numa passeata. Até agora falei sobre os casamentos. Passo agora ao divórcio. A explosão de 68 foi fruto também de uma profunda ruptura entre a juventude e a política tradicional. Em vão se buscará entre os participantes mais ativos do movimento alguém que pensava em fazer carreira política, em se candidatar a deputado, em disputar um mandato de vereador. O golpe de 64 havia aberto um fosso enorme entre os jovens e os políticos, sem exceção. Os políticos de direita eram os mais execrados - duplamente mal vistos, porque eram políticos e porque eram de direita. Haviam apoiado o golpe e a repressão. Se estavam tomando distância da ditadura naquele momento, era porque não lhes restava outra alternativa: simplesmente haviam sido lançados ao mar pelos donos do poder. Não dava para confiar neles, portanto. Em relação aos políticos democráticos, progressistas ou de esquerda, a desconfiança era de outra natureza. Eles haviam sido derrotados em 64 sem esboçar qualquer resistência. Prometeram ao povo uma vida nova, mas, na hora H, deixaram-no sozinho. Refugiaram-se nas embaixadas, caíram na clandestinidade, preferiram aguardar tempos mais amenos. No mínimo, haviam se revelado ingênuos e despreparados. Por que os jovens, então, deveriam levar em conta os seus conselhos? Se havia hostilidade contra os políticos, mais intensa ainda era hostilidade contra as instituições políticas criadas ou toleradas pela ditadura. A partir de 1965, quase todas as organizações atuantes no ME, à exceção do Partido Comunista, pregavam abertamente o voto nulo contra o que se classificava de farsa eleitoral. Embora, aqui e ali, houvesse contatos respeitosos entre os dirigentes estudantis e alguns poucos parlamentares do MDB, o partido como um todo era visto como um joguete nas mãos dos militares, criado com o único objetivo de ajudar a botar de pé um simulacro de Congresso e um arremedo de democracia. Mas o divórcio entre os jovens e a política tradicional não parava por aí. Tinha raízes mais profundas. Nascia de visões radicalmente diferentes a respeito do próprio sentido da atividade política. Para a maioria dos jovens que conduziram o movimento estudantil em 1968, a política só tinha dimensão moral se estivesse direcionada para a mudança na sociedade, e não para a conquista de cargos e posições. Buscava-se “servir ao povo”, como dizia Mao Tse Tung, e não se servir dele para atingir objetivos pessoais. Política era sacrifício, sacerdócio, entrega. Valia a pena? Fazia sentido? Claro. Afinal, não estávamos apenas querendo mudar o mundo. Também acreditávamos que era possível criar um homem novo, a começar por nós mesmos. Tudo somado, era imenso - e, naquele momento, intransponível - o fosso aberto entre os jovens rebeldes e os políticos tradicionais. Para nós, eles eram peças de museu. Para eles, éramos seres de outro planeta. Esse divórcio foi decisivo para que o ME em 1968 tomasse o rumo que tomou. Como não se sentia com amarras no passado, podia botar todas suas fichas no futuro. Daí veio, em boa parte, sua espetacular energia transformadora. Daí veio também, mais tarde, quando bateu no muro do AI-5, sua incapacidade para adaptar-se à realidade e buscar novos caminhos. Mas essa já é uma outra história e fica para uma outra vez. Esse prefácio já se alongou demais. Vamos ao livro. Vamos a Brasília, 1968, de volta para o futuro - um futuro que nunca chegou, perdeu-se em algum lugar e, infelizmente, ninguém sabe hoje onde pode ser encontrado. Franklin Martins Brasília, 1º de maio de 2001

A mudança é grande vencedora das eleições


01.10.2002



Segue abaixo a íntegra da entrevista dada pelo colunista à revista TRIP, publicada no início de outubro de 2002. Nela, fala-se sobre temas atuais - as eleições presidenciais, a política no Brasil, a mídia, e passados - a luta contra a ditadura, os anos de chumbo e a militância política. Franklin Martins não quer dar entrevista. Embora seu rosto apareça diariamente na televisão, tem medo de virar celebridade. Primeiro porque a condição não lhe cai bem pessoalmente. Depois porque sua cadeira de importante comentarista político na Rede Globo exige certa formalidade que não combina com a falta de cerimônia do estrelato. Franklin é um cara sério. Nesse intuito de permanecer discreto, ele é um verdadeiro sucesso. Tanto que somente as pessoas da sua geração sabem que o capixaba Franklin Martins, 54 anos, combateu ferozmente a ditadura militar, com arma na mão e tudo. Líder estudantil no Rio de Janeiro, foi um dos principais articuladores do famoso seqüestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick em 1969. É de sua autoria o texto-manifesto que rádios, jornais e TVs foram obrigados a tornar público e no qual um Franklin foribundo advertia: “Quem prosseguir torturando, espancando e matando, ponha as barbas de molho. Agora é olho por olho, dente por dente”. Parte dessa bem-sucedida discrição deve-se ao fato de ele ter sido eliminado da história por Fernando Gabeira em seu livro O que É Isso, Companheiro?, e reduzido a personagem menor na sua adaptação para o cinema. Quem vê o Franklin ali, ladeado pela bela Ana Paula Padrão e envolto pelas marcas d’água de Hans Donner, custa a crer que ele esteve um dia com a barriga no capim, treinando guerrilha rural na Cuba de Fidel. Exilado primeiro no Chile e depois na França, voltou clandestino para o Brasil, onde se escondeu atrás de um RG falsificado e um bigodinho ralo. Assim, nesse styling, conquistou o coração da militante Ivanisa Teitelroit, sua companheira até hoje, mãe de dois dos seus três filhos. Quem olha para o presente de Franklin e sabe sobre o seu passado pode ficar com a impressão de que o homem desistiu da luta e vestiu o crachá do inimigo. De Sierra Maestra para os escritórios da Globo em Brasília a viagem é bem longa, mas ele cumpriu o percurso com a dignidade de sempre. Há quatro anos comenta política na emissora e jura jamais ter sofrido censura ou ter sido obrigado a este ou aquele posicionamento. (Sejamos justos, é verdade que até o fechamento desta edição a Globo tem se esforçado para não favorecer este ou aquele candidato na cobertura das eleições.) Franklin, apesar do terno, da gravata e das marcas d'água de Hans Doner, segue um sujeito inquieto. Ele não quer dar entrevista, mas sente que é uma oportunidade de contribuir para a politização da juventude, tão perigosamente alheia ao jogo dos partidos. Não quer falar do passado porque acaba envolvendo questões pessoais, e a exposição delas pode aproximá-lo das abomináveis celebridades. Mas ele sabe que a sua luta é um exemplo de ação a favor da cidadania. Falar dela é levá-la adiante. Então, a seguir, a entrevista. TRIP: Você é da mesma idade que o meu pai. Ele e os amigos sempre falaram de política com a mesma empolgação com que se fala de futebol. Por que isso não acontece com os jovens de hoje? Franklin Martins: Talvez o jovem hoje esteja um pouco desconfiado da sua capacidade de influir no mundo da política. A minha geração, com toda a agitação política da época, achou que podia assaltar o céu. Evidentemente, conquistou uma série de coisas, mas não foi tão bem-sucedida. Ela passou para a geração seguinte que não adianta ir com muita sede ao pote. Mas não estou entre aqueles que acham os jovens de hoje alienados. Eles se interessam pela política, mas talvez pouco pela política partidária e mais por política de comportamento — meio ambiente, liberdade sexual, racismo, etc. Há mais pontos na agenda do que havia na minha época, quando tudo convergia para a luta contra a ditadura. Hoje as pessoas podem viver mais sem fazer a política tradicional. Naquela época, elas eram obrigadas a fazer política diretamente para não serem esmagadas. TRIP: Deixar de lado Brasília e a política dos partidos não pode ser em certa medida uma atitude perigosa? Franklin Martins: É um risco sério. A política tradicional é muito chata e, especialmente no Brasil, tem códigos muito defasados e com apelo quase nenhum. Isso é um problema em todo o mundo. Acontece que ainda não inventaram coisa melhor para você, periodicamente, sacudir o balaio e definir mais ou menos a cara do jogo do que o processo eleitoral, a participação e a representação política. Se você disser que só vai cuidar do meio ambiente, ou ficar naquela de que "não quero saber de Congresso", "Brasília é um nojo", vai ficar fazendo política de forma periférica. Não adianta: o poder se decide nas instituições. A gente não pode querer substituir a democracia, ou achar que as ONGs, tocadas por iluminados, conduzem o mundo. Isso não existe. É preciso entrar na questão política propriamente dita. TRIP: Então vamos a ela. Você acha que, no caso específico de um candidato a presidente, uma pessoa que vai representar o povo em sua máxima instância, o marketing político é um jogo válido? Não é anti-ético o candidato se esconder atrás de um layout como um produto? Franklin Martins: Eu não acredito nisso do jeito que se fala. Os marqueteiros políticos são excepcionais fazendo marketing deles próprios. Criaram um mercado de trabalho extraordinário para eles, dando a entender que decidem eleições. Não decidem coisa nenhuma. Eles lêem as pesquisas, tiram determinadas conclusões do que o eleitorado está querendo — exatamente como se faz com sabonete, refrigerante e margarina — e devolvem um produto. São ferramentas muito inte-ressantes, tudo bem. Só que alguma vez perguntaram para o público se ele estava precisando de um disk-man? Se perguntassem, ele diria: "Não e jamais compraria um disk-man". No entanto, quando lançaram o disk-man, foi um sucesso. O marqueteiro, de modo geral, responde à demanda, àquilo que o eleitor diz que quer. Mas quem disse que o que esse eleitor diz é o que ele quer? TRIP: Então você não acredita na eficiência do marketing? Franklin Martins: Quando você está vendendo sabonete, é um sabonete contra outro. Os sabonetes não são vivos, não brigam entre si. Meu pai sempre dizia que o bom de campanha política para a democracia é que existe o adversário — o povo esquece dos defeitos do candidato, o adversário lembra. Então, o Serra vira o candidato do emprego por obra de um marketing bem-feito. Mas vêm os adversários para lembrar: ele é o candidato do governo. Quando os marqueteiros são competentes, atuam nas janelas de oportunidades. Mas as grandes decisões cabem aos políticos mesmo. O cara não consegue se esconder durante toda a campanha. TRIP: Os candidatos que a gente está vendo hoje são eles de verdade ou tem alguém conseguindo se esconder? Franklin Martins: Quem é quem? Ninguém sabe. A quantidade de mulheres que só descobre quem é o marido depois de décadas de convívio é enorme. Mas os políticos que disputam o cargo de presidente estão superexpostos, levando porrada de tudo que é lado, com adversários pulando na jugular deles, cachorros perdigueiros correndo atrás - os podres tendem a vir à tona. Cabe ao eleitor fazer a triagem. E ele faz. Não tem um tipo em São Paulo que diz: "Não me importa se o Maluf é ladrão, mas é um cara que faz"? Ele escolheu um defeito com o qual convive e uma qualidade que acha importante. TRIP: Nesse sentido, você acha que a baixaria no debate é uma coisa bem-vinda, reveladora? Franklin Martins: Não gostei daquele debate na Record [com os presidenciávies, em 2 de setembro], achei a baixaria demais. Um pouco de sangue quente é bom, mas aquilo ali foi usado intencionalmente por quase todos os candidatos para fugir das questões. O Lula ficou limpo, na linha paz e amor, não respondeu sobre nada — só falou que o Brasil é grande, o povo é maravilhoso, o que também é uma forma de fugir das perguntas. Isso irritou a muitos telespectadores. É verdade que o povo gosta de porrada. Se tiver duas mulheres rolando na lama, ele pára para ver, morre de dar risada. Depois vai dizer: "São umas vagabundas". Os candidatos rolaram ali, a gente morreu de dar risada, mas saiu dizendo: "Pô, são uns vagabundos, será que algum deles merece ser presidente do Brasil?". Nesta campanha, as promessas são mais ou menos iguais. Para poder escolher entre um e outro, você é obrigado a fazer o que chamo de uma sintonia fina. Isso o obriga a ser mais crítico, o que faz destas eleições um processo mais maduro e politizado. Tem menos espaço para salvador da pátria na parada. TRIP: Você acha que os candidatos são preparados para descascar o abacaxi que é o Brasil? Franklin Martins: Ninguém está totalmente preparado para enfrentar esse abacaxi, embora o Brasil tenha uma sociedade capaz de lidar com problemas e rapidamente se capacitar a respondê-los. De qualquer forma, os quatro candidatos são pessoas preparadas. O Lula, por exemplo, é extremamente preparado. Querer desqualificá-lo por não ter diploma de curso superior é uma idiotice. Ele foi capaz de construir um partido que é o maior do Brasil, uma grande central sindical [a CUT], relaciona-se com diferentes setores da sociedade. Tudo bem, erra na colocação dos pronomes. Mas e daí? O Fernando Henrique, que é brilhante (há muito tempo o mundo não tinha um presidente academicamente tão preparado), vive tropeçando nas palavras. O objeto direto fica para cá, as preposições saem erradas. Aí aparece um advogadozinho de porta de xadrez e porque tem um diploma acha que é mais preparado do que o Lula. É brincadeira... TRIP: E em relação aos outros candidatos? Franklin Martins: O Garotinho talvez seja menos preparado. Está nos bancos escolares passando sebo nas canelas para entrar na próxima corrida. O Serra é um sujeito preparadíssimo. Seu sucesso no Ministério da Saúde não é uma coisa à toa. Ele sabe cobrar, definir prioridades. O Ciro foi bom governador e bom prefeito. Do ponto de vista do preparo, até que temos sorte. TRIP: O programa eleitoral é um espetáculo muitas vezes bizarro, principalmente na esfera dos que postulam uma cadeira no Congresso. Aquilo é mesmo o espelho do Brasil? Franklin Martins: Outro dia estava vendo uma fita da eleição passada aqui na TV Globo e tinha um sujeito que prometia acabar com a menstruação. Vê se pode... O nível é muito baixo, mas é um retrato, sim, do brasileiro e de suas ambições. Acontece que você acha normal a maneira como o camelô vende bugiganga, mas acha estranho como um camelô da política vende um projeto para o país. Agora, o nosso sistema de representação proporcional no Congresso está falido. Ele só existe no Brasil e na Finlândia. E, como tudo que só existe no Brasil e não é jabuticaba, não dá certo. TRIP: Uma pergunta que desconfio que você não vai responder: em quem você vai votar? Franklin Martins: Não vou te responder mesmo. TRIP: Em quem não votaria de jeito nenhum? Franklin Martins: Em um sujeito fascista, ou esses tipos que defendem tortura, em racistas ou pedófilos. TRIP: Quem vence as eleições? Franklin Martins: Vence a idéia de que o Estado tem de ter uma participação mais ativa na sociedade. O mercado é importante, mas precisa haver um Estado para contrabalançar o seu papel — porque o mercado fortalece quem é mais forte e sempre enfraquece quem é mais fraco. Sai fortalecida a idéia de que a nossa inserção no mundo globalizado não pode ser passiva, tem de ser soberana. Sai fortalecida a idéia de que o Brasil tem de passar por reformas que não estão apenas na instância econômica. A mudança, seja qual for, é a grande vencedora. Você pode dizer: "E se o Serra ganhar a eleição?". Se ganhar, é porque conseguiu convencer o eleitorado de que está comprometido com a mudança, e depois terá de mudar. Mas ninguém está querendo chutar o pau da barraca. Agora, a idéia de que chega de mediocridade é muito forte. TRIP: Sua negativa em dizer em quem vai votar, é claro, tem ligação com sua posição profissional. Mas você se transformou naquele comentarista de futebol que de tão próximo dele já não torce mais para o time que torcia? Franklin Martins: Nunca conheci um comentarista de futebol assim, todos torcem pra burro. Existe gente de todo o tipo, mas, de modo geral, a cobertura política [pela imprensa] não é promíscua com o poder. Um exemplo: o Tancredo ficou doente às vésperas de assumir o poder e 24 horas depois todo o mundo sabia o que ele tinha tido, embora tentassem esconder. Até hoje não sabemos o que houve com o Ronaldinho na véspera do jogo com a França. A política tem algo muito mais contraditório dentro dela, tem sempre o adversário que finge que é amigo mas é inimigo. No Congresso, tem muita cabeça diferente, muito cara vendendo a alma ao diabo para te dar uma informação e aparecer. Outra coisa: eu não tenho ídolos. Não sou tiete de nenhum político, e comentarista de futebol é tiete. Como é que vou falar mal do Zico? Sou Flamengo, sou tiete dele. Agora, não tenho dificuldade em falar mal do Lula, do Fernando Henrique, do Ciro, do ACM. São gente de carne e osso, não ídolos. TRIP: Mas você teve passado de militante na esquerda. Isso não fica como fica um clube de futebol? Franklin Martins: Na minha juventude, tive ídolos. Che Guevara foi um. Aqui no Brasil, Brizola e Arraes. Mas vejo o Brizola de hoje em dia, vejo o Arraes. Não vejo o Che porque o Che morreu. Conseguiu o que é o mais fantástico para qualquer mito: não ser confrontado com a realidade mais tarde. TRIP: Che sobreviveu para você como um ídolo? Franklin Martins: Che teve uma coisa extraordinária: a capacidade de brigar pelas idéias em que acreditava, jogar-se inteiramente atrás delas e pagar todo o preço por isso. Um sujeito que podia continuar ministro, mas não quis ser nada disso. Quis se meter no meio do mato e continuar a brigar. Ele mostrou que os homens existem para algo mais do que conquistar postos e consumir coisas. Foi por isso que simbolizou tanta coisa. Mas, se eu cobrisse o Che Guevara como político aqui no Congresso durante 20 anos, dificilmente ele continuaria com essa bola toda. TRIP: Por que você entrou na luta armada? Foi um misto da história política do seu pai [Mario Martins, jornalista e senador, político de oposição, morto em 1994] com um tanto de Che Guevara? Franklin Martins: Sou um pouco neto da luta antifascista, meu pai se formou nisso e passou para mim. Se há uma coisa com que não consigo conviver, é a idéia da superioridade racial, a truculência, essa coisa de quebrar a resistência de quem não concorda com você pela violência. Não é à toa que me chamo Franklin — é por causa de Franklin Roosevelt. Poderia ter sido Stalin ou Churchill, os três grandes que lutaram contra o nazifascismo. Mas, se sou neto da luta antifascista, sou filho da luta contra a ditadura. Tive uma participação grande no movimento estudantil nos anos de 67 e 68. Ali foi minha escola política. Era uma época de extraordinária ebulição. Tinha a revolução cubana, a idéia da revolução na América Latina, a guerra do Vietnã. Tinha o caldeirão internacional, mas o que me levou à militância política foram as condições da ditadura no Brasil. Você ia fazer um jornalzinho de escola, diziam: "Isso não pode escrever". Aí você retrucava: "Não pode escrever? Então vai ficar em branco para todo o mundo saber que houve censura". Aí chamavam você lá: "O jornal está proibido de circular". "Então vamos fazer greve." Com 15, 16 anos, eu já começava... TRIP: Você participou do seqüestro do embaixador norte-americano e foi procurado na época como assaltante de banco. A que ponto chegou sua militância? Franklin Martins: É preciso botar as coisas no ambiente da época. Por exemplo, nunca usamos a palavra seqüestro — isso apareceu depois. Nós fizemos uma operação de captura do embaixador americano para em seguida promover uma troca de prisioneiros. Seqüestro foi como a operação passou a ser chamada pelos jornais. Tem hoje outra finalidade, outra conotação... Hoje, quem seqüestra é bandido. Na época, o que existia eram centenas, milhares de pessoas, militantes da luta contra a ditadura, dirigentes sindicais e estudantis, intelectuais que estavam sendo presos, torturados e mortos. O Sobral Pinto, advogado católico, dizia que o seqüestro foi o único habeas corpus eficiente que existiu durante a ditadura. Então, para nós, não havia seqüestro, mas uma troca de prisioneiros, como não se roubava uma metralhadora — você expropriava uma arma. Não se roubava banco, expropriava-se um banco. Roubar banco dá impressão de apropriação pessoal do dinheiro. Nas expropriações, esse dinheiro ia direto dos cofres do banco para financiar a guerrilha, comprar armamento etc. Não participei de assalto a banco, mas participei de expropriação de carro pagador, por exemplo. TRIP: Você participou logisticamente ou foi com arma na mão e tudo? Franklin Martins: Não gosto de entrar em detalhes, não gosto da idéia de fazer de minha participação na luta contra a ditadura um troféu. Não gosto desse tipo de comportamento. O que fiz, se eu tivesse 20 e poucos anos e o Brasil vivesse sob uma ditadura, provavelmente faria de novo. Não me arrependo, tenho orgulho, foram talvez os anos mais fecundos da minha vida. Mas não gosto de ficar dizendo: "Eu fiz isso, fiz aquilo, fiz mais do que você". Quem arriscou a vida naquele momento, independente se fez mais ou menos, fez o bastante, o que tinha de ser feito. Posso contar tudo o que fiz para os meus filhos e um dia vou poder contar para os meus netos. Já as pessoas que operavam os centros de tortura se escondem. Eu posso falar livremente. Queria saber quantos dos que estavam do outro lado podem fazer o mesmo. Eles vão viver eternamente na clandestinidade. TRIP: Você chegou a ser torturado? Franklin Martins: Não. Só fui preso. TRIP: Você treinou guerrilha em Cuba. Como foi a experiência? Franklin Martins: Foi um período duríssimo. Fiquei 11 meses em Cuba, dos quais oito ou nove no meio do mato, na província de Pinar del Rio, tendo aulas de armamento, explosivo, túneis e principalmente tática militar. Aquilo tudo ali, se for trocar em miúdos, não adiantou grande coisa. Somente descobri uma coisa: que seria capaz de sobreviver na selva. Da minha turma de treinamento, que eram 29 pessoas, 15 morreram sob tortura ou em combate no Brasil. Tudo num espaço de tempo muito pequeno. Sobrevivemos alguns. O Zé Dirceu é um deles. TRIP: O presidente do PT? Franklin Martins: Sim. Treinei guerrilha e estive preso com ele. O Dirceu era um guerrilheiro marca barbante [risos]. TRIP: Guerrilheiro marca barbante? Franklin Martins: É uma expressão antiga, significa de "qualidade duvidosa". Eu também era marca barbante [risos]. TRIP: De Cuba você veio direto para o Brasil? Franklin Martins: Morei um tempo no Chile, na época do Allende, e depois voltei para o Brasil, fiquei clandestino algum tempo. Daí as coisas começaram a cair muito perto de mim e fui para a França. Fiquei três anos, voltei para o Brasil, de novo clandestino. Ao todo levei cinco anos e meio no exílio. TRIP: É verdade que você só saía durante a noite em São Paulo quando esteve clandestino? Franklin Martins: No final, em 78 e 79, já saía mais de dia. Mas em 73 e 74, só saía à noite, durante duas horas, e voltava. Vivia num apartamento fechado, uma coisa extremamente difícil, solitária, doída. O exílio na França, porém, foi o mais difícil. Lá me formei na Escola de Altos Estudos em ciências sociais da Universidade de Paris, mas para mim não teve importância nenhuma — é um diploma que hoje está na gaveta, nem uso. Levei 15 anos para voltar a Paris. Virou trauma. TRIP: De militante da esquerda na luta contra a ditadura, você se transformou hoje no comentarista político mais importante da Rede Globo. Você sente isso como alguma coisa contraditória na sua existência? Franklin Martins: É uma coisa que tenho extremamente bem resolvida. Em 81 ou 82, saí da clandestinidade, mas ainda era uma vida semiclandestina — não sabia se a ditadura voltava ou não. Nessa época, cheguei à conclusão de que tinha cometido durante a minha militância alguns erros. De certa forma, eu havia errado porque não tinha contato de verdade com a realidade. Daí tomei uma decisão: “Vou ter uma vida o mais normal possível a partir de agora”. TRIP: Você falou em erros que cometeu. Quais erros foram esses? Franklin Martins: A luta armada foi um erro. Em vez de ter ajudado o povo a se organizar, ela colocou uma forma de luta em que o povo não podia participar, só assistir. Quem havia de mais disposto, decidido e determinado foi para a luta armada, mas era uma minoria, afastou-se do povo e foi massacrada. TRIP: Tem algum erro pontual que você tenha cometido, tipo matado alguém? Franklin Martins: Tive dois privilégios. Primeiro, nunca fui torturado, embora estivesse submetido a uma tortura interna o tempo todo — vivia me preparando para ser preso e ser capaz de morrer na tortura sem abrir a boca. Segundo, nunca tive de atirar em alguém. Seria uma violência terrível: racionalmente, você pode ter resolvido isso, mas emocionalmente ninguém sabe como se comportará se o problema for colocado, e tampouco como reagirá posteriormente. TRIP: Voltando à pergunta: há alguma contradição entre o seu passado e o seu presente? Franklin Martins: É muito difícil a readaptação de quem vem do exílio. É uma geração, repito, que tentou assaltar o céu e de repente tem que viver as mazelas do cotidiano, volta para o Brasil achando que vai ser recebida como herói e descobre que terá de levar uma vida comum, sem maiores reconhecimentos. Muitas pessoas tiveram dificuldade de adaptação. Eu decidi o seguinte: "Não vou ficar marginal, a vida está recomeçando". Hoje, sou muito tranqüilo e bem resolvido: acho que a Globo, como eu, também mudou. Sou um bom profissional e a Globo é um bom lugar para se trabalhar. TRIP: Seus companheiros de antigamente já o questionaram pela sua escolha? Franklin Martins: Pode ser que um ou outro tenha reparos a isso, mas nunca vieram me dizer. Se viessem, eu retrucaria: "Por que não posso trabalhar na Globo e você pode ser professor de uma universidade?". Não vejo diferença. "Por que não posso trabalhar na Globo e você pode ser de uma ONG financiada por uma igreja presbiteriana?" O que importa é que faço o meu trabalho com dignidade. Boto a cabeça no travesseiro e durmo. Não vejo problema, não me considero um sujeito que passou por cima do que fez. Ao contrário, de certa forma continuo fazendo na minha profissão o que sempre fiz. Continuo indignado com a injustiça social. TRIP: Você acha que a Globo tem o poder que se diz a respeito dela na decisão do jogo político? Franklin Martins: Jornais, rádios e televisões vivem da audiência que têm, da vendagem, da publicidade. Todos disputam o mesmo público. Portanto, têm de vender o jornal para quem é do PT, do PSDB, do PTB, do PMDB, para quem não tem partido, para quem acha todo partido uma nojeira. Se não fazem isso, se dão mal e percebem logo, porque perdem público. A Globo tem um enorme poder porque é líder de audiência num país que vive grudado na televisão. Uma entrevista com os candidatos a presidente é assistida por 30 e poucos milhões de pessoas, uma coisa impressionante. Mas não creio que ela faz presidente. Se fosse isso, o Brasil não tinha tido o percurso que teve. TRIP: Você comentou há pouco que a Globo também mudou. Você acha que a história da edição do último debate entre Lula e Collor pela Globo [veiculada no Jornal Nacional] foi decisiva para o resultado daquela eleição? Franklin Martins: Eu não estava na Globo na época e, portanto, não posso falar sobre o assunto. Mas pessoalmente não acho que o Lula perdeu a eleição por causa da edição do debate. Aliás, o Lula foi melhor do que o Collor no primeiro debate e pior no segundo, no último. A meu ver, ele perdeu a eleição porque um segmento dos eleitores que estava encarando seriamente a possibilidade de votar no candidato do PT, na hora H, recuou, ficou com medo, não se sentiu seguro e acabou apoiando Collor. Não era tanta gente, talvez uns 2% ou 3% do eleitorado, mas esse segmento decidiu a eleição. Voltando à Globo, o que percebo é que ela, como qualquer emissora, qualquer jornal, qualquer rádio, tem consciência de que precisa ser plural. A cobertura que ela está fazendo das eleições deste ano mostra isso. É muito boa, jornalismo de primeira qualidade. TRIP: Franklin, você se sente poderoso? Franklin Martins: Não. Vou contar uma história que me deu muita humildade. Fazia um ano ou dois que eu estava fazendo comentários na Globo. Um dia fui tomar um mate gelado, o vendedor olhou para mim e perguntou: "O senhor não é o Joelmir Betting?". Eu: "Não, não sou não, você está enganado". Ele olhou, foi lá, pegou o mate e voltou: "O senhor me desculpe, mas o senhor é a cara do Joelmir Betting". "Mas não sou o Joelmir Betting." Paguei, o cara foi lá, pegou o troco, virou e disse assim: "Sabe o que mais impressiona? A sua voz é igualzinha à do Joelmir Betting". Aí eu disse "tchau", ele disse "tchau" e emendou: "O senhor pode dizer que não, mas para mim o senhor é o Joelmir Betting". Ele tinha gravado a minha imagem, mas não sabia quem era eu, o que tinha falado, não lembrava nada. Aprendi ali que você não é poderoso, quem é poderoso é o instrumento. TRIP: Você sofre alguma censura interna da empresa? Franklin Martins: Nenhuma. Raríssimas vezes algum comentário meu provocou alguma reação e, quando provocou, foi sempre um comentário, uma troca de idéias — "Você pegou muito pesado aqui, eu não concordo com você naquilo". Nunca foi uma censura ou um reparo. Como colunista, minha liberdade é total na Globo. O mais difícil para um comentarista político como eu não é ficar contra quem é poderoso. Difícil é ficar contra a opinião pública, porque a pressão é imediata e vem uma tentação danada de a gente se acovardar. Procuro me manter íntegro, dizer o que penso, mesmo quando sei que vou levar porrada do leitor, do telespectador. Prefiro apanhar dele a seguir a opinião pública, quando discordo dela. Se você acha que ela está errada, é muito medíocre abaixar a cabeça. TRIP: Qual foi o candidato a presidente que mais deu trabalho a você e à Ana Paula Padrão no ciclo de entrevistas que fizeram com eles? Franklin Martins: O sujeito que chega a candidato a presidente da República é cobra criada, então é sempre difícil entrevistá-lo. Mas para eles também não é fácil ser entrevistado no Jornal da Globo ou no Jornal Nacional. O sujeito senta numa bancada ali no telejornal, na casa dos outros, cercado por uma parafernália que não domina, que de certa forma é hostil, sabendo que vai ser submetido a perguntas incômodas e do outro lado tem milhões de pessoas — algumas querendo te ajudar, outras querendo ver teu sangue. Por isso todos os candidatos estavam muito tensos. O Lula, quando acabou a entrevista, comentou: "Vocês não sabem como é difícil estar aqui, sentado dentro da Globo, dando uma entrevista para vocês, para duas feras do jornalismo". Depois que acabou, ele demorou uns 30 segundos para se levantar da cadeira. TRIP: E você, como se sentiu? Missão cumprida? Franklin Martins: Foi cansativo e tenso, mas também interessante. Profissionalmente, aprendi muito naqueles dias. Mas nada de missão cumprida. No segundo turno, tem mais. E depois vem a posse do novo presidente, a formação do ministério, o funcionamento do Congresso, os primeiros cem dias, e aí começam as crises, as negociações, uma nova etapa da luta política, e por aí vai. E eu continuarei correndo atrás de notícias. Não posso me queixar. Gosto do que faço.

Governo Lula: coalizões políticas e urgências sociais


01.12.2002



Há muito tempo, logo depois da queda do presidente Fernando Collor, o deputado Ibsen Pinheiro - na época ele era presidente da Câmara dos Deputados, depois foi cassado naquela leva do escândalo dos anões do Orçamento, era um político brilhante e um grande analista político - disse, durante um almoço com jornalistas, algo que me pareceu surpreendente: embora Collor tivesse sofrido um impeachment, sua agenda continuava na mesa e teria de ser cumprida pelo próximo governo, fosse ele qual fosse. E acrescentou: a política é uma coisa curiosa; às vezes quem realiza um programa não é o partido que o propõe, mas seus adversários - às vezes os fatos e a dinâmica da política têm uma força tal que se impõem a todos os partidos. Ou seja, os políticos não fazem exatamente aquilo que publicamente dizem que farão - muitas vezes até com sinceridade, honestamente, mas sim aquilo que o jogo político, o amadurecimento da sociedade e o conflito entre os diferentes interesses permitem. Pessoalmente, estou convencido de que Lula, se for bem-sucedido, fará aquilo que Fernando Henrique gostaria de ter feito e não fez: um governo social-democrata. Não falo isso para diminuir a importância do que Lula poderá ou não fazer, até porque, se tivermos um governo social-democrata sério durante quatro anos, o país poderá passar por transformações importantíssimas. Na prática, o programa do PSDB - o Partido da Social Democracia Brasileira - ficou em segundo plano no governo Fernando Henrique, porque a tarefa que ele cumpriu de fato foi aquela que o governo Fernando Collor deixou pendente: o processo de ajuste da economia, da reforma do Estado e de abertura do país. Embora a agenda de Fernando Henrique não fosse a de Collor, ele teve de cumpri-la. A meu ver, a agenda que Fernando Henrique gostaria de ter cumprido ficou para Lula - e é uma agenda social-democrata. E o que é uma agenda social-democrata num país como o nosso? Em primeiro lugar, implica o Estado voltar a ter muito mais peso na vida social e na vida econômica do que nos últimos tempos, funcionando, de certa forma, como um contrapeso às forças livres do mercado. O mercado produz desigualdade o tempo todo. É da natureza do mercado, ele fortalece quem já é forte e enfraquece quem já é fraco. No mercado, as pessoas não valem a mesma coisa, valem quanto têm, quem tem um milhão vale mil vezes mais do que quem tem mil reais. O mercado, portanto, reproduz e acelera a desigualdade. Já o Estado intervém justamente para equilibrar essa situação. Pelo menos teoricamente, na composição da direção do Estado, ou seja, na formação do governo, todos nós valemos a mesma coisa: o meu voto vale a mesma coisa que o de um gari, ou o do Antônio Ermírio. Tudo bem, na prática, as coisas não funcionam exatamente assim, mas, de qualquer forma, nos mecanismos políticos, as multidões têm mais espaço para fazer valer sua opinião. Posto isso, pode-se dizer que haverá maior presença do Estado, contrabalançando um pouco a liberdade sem freios do mercado. Em segundo lugar, a intervenção do Estado deverá ter o objetivo de promover distribuição de renda. Em terceiro lugar, o Estado trabalhará para diminuir a desigualdade regional. Por último, o Estado brasileiro provavelmente se comportará de forma mais ativa e soberana no processo de inserção do nosso país no mundo globalizado, porque não adianta discutir se vamos ou não aceitar a globalização, que é um processo objetivo, a questão está em como vamos nos inserir neste processo de globalização: se de uma forma passiva, deixando que as forças do mercado atuem livremente - e nesse caso, vamos fortalecer quem já é forte, os Estados Unidos, a União Européia e o Japão, ou se de uma forma ativa, brigando de forma mais aguerrida pelos nossos interesses do país, com o objetivo de incrementar o emprego, a renda, a produção. Tudo somado, a meu ver, o que podemos esperar dos quatro anos do governo Lula é uma inflexão de natureza social-democrata no Estado, nos termos em que eu mencionei antes. No entanto, o governo Lula viverá uma importante contradição, que não sei como será resolvida. Na campanha eleitoral, Lula e seus colaboradores mais próximos diziam de maneira muito clara: Não seremos um governo de esquerda, mas um governo de centro-esquerda dirigido pela esquerda". Lula falou isso não sei quantas vezes, e é o que o José Dirceu vive falando. Apesar disso, Lula a trajetória de Lula aponta noutra direção e ela tem um impacto brutal no imaginário da sociedade. Lula é o metalúrgico que se fez líder sindical, que dirigiu as primeiras greves importantes do fim da ditadura, que construiu as bases de um novo sindicalismo e que estruturou o PT, que veio a se converter no mais importante partido do país. Por tudo isso, no imaginário da sociedade, o triunfo de Lula, na sua quarta tentativa numa eleição presidencial, desatou uma onda de expectativa extraordinária. Não é à toa que estamos vendo o Lula virar pop star. Aonde ele vai ,é agarrado, beijado, distribui autógrafos etc, é uma relação extremamente forte. Por que? Porque existe uma expectativa tremenda na sociedade. É mais ou menos como se o povo pensasse assim: "Se fomos capazes de botar na Presidência um sujeito que tinha tudo para não estar lá, também podemos mudar o país." Porque Lula tinha tudo para não dar certo. Mas deu. É um sujeito que nasceu pobre no Nordeste, imigrou, não teve uma família estruturada – pelo menos do ponto de vista convencional, com pai e mãe –, não cursou universidade, foi trabalhador braçal. Em princípio, nas condições do Brasil, estatisticamente, não era para ele ter chegado muito longe. Assim, chegar à presidência da República é um acontecimento extraordinário. E mais: chegar à presidência da República esbanjando confiança, proposta, capacidade de liderança e reconhecimento público, é algo espetacular. Tudo isso desperta, a meu ver, no imaginário da sociedade esperanças bem maiores do que o que Lula poderá realizar dentro dos limites sociais-democratas de seu governo. Mesmo que ele diga que seu governo é de centro-esquerda, na cabeça do povão o que existe é a idéia de um governo que vai mudar pra valer. Essa contradição gera um problema delicado. Em hipótese alguma o governo Lula será capaz de satisfazer, primeiro, a demanda social reprimida no país, que é brutal; e segundo, a expectativa de que agora vamos ter um Brasil novo. Por mais fantástico e competente que venha a ser o governo Lula, ele será incapaz de corresponder a esses anseios. Não vamos ter um Brasil novo daqui a quatro anos. Essa tensão, a meu ver, será permanente ao longo do governo. No início, ela não aparecerá em toda sua força - o primeiro ano de governo é sempre um ano de graça, um período em que todo mundo torce pelo presidente, quem votou nele aplaude entusiasticamente e quem não votou dá um voto de confiança. Não é à toa que recente pesquisa do Ibope registrou - o número pode não ser exatamente este - que 74% dos entrevistados confiam no Lula. Como ele obteve 60% dos votos nas eleições, já teria conquistado mais 14 pontos em termos de confiança. É bom lembrar que Fernando Henrique, nos seus melhores momentos, teve 55% de aprovação. O que Lula tem agora, 74%, é quase unanimidade. É extraordinário. Mas a realidade é sempre mais complicada do que o sonho. Ela oferece limites, os sonhos não. E a realidade é que o governo Lula inicia-se, a meu ver, com um quadro de restrições extremamente fortes. Primeiro, restrições de ordem econômica - estamos numa situação em que a economia está no fio da navalha, não se sabe se avança ou se recua. Temos também restrições de ordem orçamentária - o que o Governo Federal tem de recursos para mexer, para promover programas sociais é muito pouco. Há ainda restrições de natureza política e parlamentar - o governo, com uma maioria frouxa, não poderá fazer tudo o que quiser. E, por último, existem as restrições do cenário internacional - estamos com um louco na Casa Branca, ninguém sabe o que ele vai fazer, mas está claro que ele está doido para iniciar uma guerra contra o Iraque, uma guerra que ninguém pode prever como acabará, se será rápida ou longa, se será vitoriosa ou não, em que patamar jogará o preço do petróleo, que impacto terá no comércio internacional e na economia mundial. Ou seja, são imensas as restrições com que se defronta o governo Lula. Pelo que já deu para sentir até agora, Lula e seus principais colaboradores sabem das dificuldades e fixaram uma estratégia inteligente: escolher dois alvos que ofereçam a possibilidade de resultados significativos a curto prazo, já em 2003 - o programa Fome Zero e o combate ao crime organizado. Colocando o foco e concentrando recursos nesses dois alvos, é possível mobilizar a sociedade e avançar significativamente em áreas de grande impacto. Pessoalmente, acho bastante possível que se obtenha avanços significativos nessas duas áreas. Primeiro, a questão da fome. Não acredito que no Brasil existam quarenta milhões de pessoas passando fome. Essa é daquelas estatísticas em que se chuta tudo lá para o alto para fazer propaganda, o que, na verdade, só dificulta equacionar o problema. Se forem mesmo quarenta milhões, é difícil resolver; mas, se for alguma coisa na faixa de dez ou doze milhões - ainda assim uma indecência, num país como o Brasil, podemos perfeitamente ter os recursos e concentrar as energias para solucionar o problema. Assim, é possível um programa de combate à fome ter êxito num período de quatro anos e dar sinais de que vai deslanchar no primeiro ano, o que teria um grande peso simbólico e daria bastante gás ao governo Lula. Na questão do crime organizado, apesar de não ser minha especialidade, penso que, se o Governo Federal fizer o que não foi feito nos últimos anos, ou seja, oferecer liderança política, o quadro pode mudar bastante. Claro que quem vai operar a polícia são os estados, mas o fato de o Governo Federal chamar para si o problema da violência e colocá-lo como uma questão-chave, pode acarretar uma mudança crucial. Estou convencido de que, mais do que crime organizado, o que existe mesmo no Brasil é polícia desorganizada, isto é, a incapacidade do aparelho do Estado de exercer o monopólio da violência. Quando a questão do combate ao crime fica pulverizada entre estados e municípios, abre-se uma "terra de ninguém". Foi por aí que o crime organizado conseguiu crescer, florescer e ganhar expressão. Eu acho que a decisão política, evidentemente acompanhada de recursos e de uma intervenção séria do Governo Federal, pode produzir mudanças importantes nesse quadro. Isso dá pra fazer. No entanto tudo depende da recuperação da economia. Por que, nesse momento de transição, Lula está pegando tão leve, está tão cauteloso, tão devagar? O senador Aloísio Mercadante elevou o tom outro dia, mas recebeu imediatamente um puxão de orelha e a recomendação para baixar o tom. Na verdade, o núcleo do governo avalia que o Brasil está numa zona fronteiriça; tanto a situação pode "ir para o vinagre" como pode se abrir um círculo virtuoso na economia. O raciocínio é de que, para se abrir um círculo virtuoso na economia, é necessário dar um choque de credibilidade, isso é condição para o dólar cair. Com o dólar caindo, as pressões inflacionárias diminuiriam; diminuindo as pressões inflacionárias, poderia se passar para uma derrubada gradativa dos juros. Só assim se retomaria níveis mais intensos de atividade econômica lá para o final do ano de 2003. Se isso acontecer, o país voltará a crescer, porque fizemos um brutal ajuste das contas externas e as contas públicas estão razoavelmente saneadas - é assombrosa a capacidade de adaptação do Brasil a novas circunstâncias. Se a economia crescer 3% ou 3,5% já em 2004, o governo Lula, do ponto de vista da sustentação política, decolará. Se acontecer o inverso, se a economia começar a entrar num círculo vicioso, se não sair do buraco, serão geradas novas tensões: não haverá dinheiro, não haverá arrecadação etc. Se acontecer uma situação desse tipo, quando chegar o início de 2004, o governo Lula estará com a língua do lado de fora. Então, o desempenho da economia nesse ano de 2003 vai ser crucial para sabermos como o novo governo chegará a 2004. Concluo com a questão da maioria política. Lula terá maioria no Congresso, maioria para votar as questões ordinárias. Os partidos aliados de Lula reúnem, na Câmara, em torno de cento e noventa e poucos deputados. Juntando com o PTB e o PMDB, que, no frigir dos ovos, apoiarão o governo, Lula deverá contar com uma base de 270 a 280 deputados. No Senado, se registrará mais ou menos a mesma proporção. No entanto não será uma maioria sólida, aquela maioria granítica que existia no começo do governo Fernando Henrique. Será uma maioria frouxa, a ser costurada o tempo todo. Quem vai costurar isso? A competência do José Dirceu, do Aloísio Mercadante ou do líder João Paulo? Não. Quem será responsável por essa costura será o estado de espírito da opinião pública. Enquanto a opinião pública estiver dando 74% de aprovação para Lula, a maioria estará garantida - quem tem experiência de casa parlamentar sabe disso, pois o parlamentar, que vive de votos, tende a não trombar com a opinião pública. Então, se o clima se mantiver parecido ao atual, Lula terá maioria tranqüila. Já se o clima desandar, a maioria "vai para o vinagre". O que será crucial para a definição desse clima? O desempenho da economia. Por isso Lula está tão cauteloso. Ao "Lulinha paz e amor" da campanha, sucedeu o "Lula devagar com o andor" do período de transição - calma porque o santo é de barro, pode quebrar. Ou seja, não dá pra fazer muita pirueta. É necessário ir aos poucos ajeitando a situação e fazendo aquilo que os americanos chamam de "soft landing". É preciso aterrissar devagarzinho; tocar no chão suavemente, porque, se despencar e der uma porrada firme no chão, pode desandar. Assim, viveremos em 2003 um ano incerto. O PT, que não tem experiência de direção macroeconômica, terá de dirigir a economia - e o desafio não é fácil nem pequeno. Terá de operar, por um lado, a aterrissagem suave a que me referi antes, mas terá também de produzir ações sociais de envergadura, de impacto, que mantenham viva a relação poderosa de Lula com o imaginário da sociedade. Daí vem sua força na opinião pública. Se ele fizer bem essa química, que é muito complicada, entrará em 2004 embicado para cima. Mas se não tiver sucesso na empreitada, 2003 poderá ser apenas o prelúdio de um 2004 muito agitado. Vamos ver o que acontece.

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