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13.As duas morte de Jonas

As duas morte de Jonas


10.05.1997



Jonas, o profeta, viveu duas vezes. Uma não foi suficiente para que ele cumprisse sua missão e, por isso, o Deus em que ele acreditava deu-lhe outra vida, arrancando-o do ventre de um peixe. Já com Jonas, o guerrilheiro que comandou o seqüestro do embaixador norte-americano Charles B. Elbrick, passou-se o contrário. Morreu duas vezes: uma acabou com seu corpo, a outra quis suprimir sua alma. A primeira morte de Jonas, o guerrilheiro, ocorreu nas mãos dos agentes da Operação Bandeirantes, centro de terror que funcionava nas dependências da Polícia do Exército, na rua Tutóia, em São Paulo. Preso no dia 29 de setembro de 1969, cerca de três semanas depois do seqüestro, Jonas foi barbaramente torturado numa sessão de dez horas de pau-de-arara, afogamentos, choques elétricos, espancamentos, queimaduras etc. Recusou-se a ceder qualquer informação a seus torturadores, enfrentando-os a socos, pontapés e xingamentos. Como não puderam vencê-lo, os torturadores resolveram destruí-lo. Mataram-no selvagemente, batendo sua cabeça contra a parede até reduzi-la a uma pasta. No local do crime, restou uma poça de sangue, que os torturadores, eufóricos e excitados, exibiram a outros presos políticos como troféu de guerra. O corpo sumiu. Até hoje está desaparecido. A segunda morte de Jonas é mais recente. Está acontecendo, com estardalhaço, no filme O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto, com roteiro de Leopoldo Serran. Não se trata de uma morte física, mas de uma execução moral. Jonas é apresentado ao mundo inteiro como um monstro, um primata, um boçal, um desequilibrado, quase um psicopata. Entra em cena recusando o cumprimento de um companheiro, como se fosse um campeão dos maus modos. Logo em seguida, reúne os guerrilheiros que vai chefiar e adverte-os: a primeira bala de sua arma está destinada ao companheiro que não cumprir suas ordens; a segunda, àquele que sair em defesa do indisciplinado. E completa com algo mais ou menos assim: “Estamos entendidos?” Só faltou rosnar. No interrogatório de Elbrick, Jonas parece um alucinado. Encostando o cano da pistola na cabeça do embaixador, aos gritos, ameaça diversas vezes matá-lo, num misto de gozo e desequilíbrio que deixa a platéia em pânico - afinal, um assassino está no comando de um grupo de guerrilheiros de araque. Mas o Jonas do filme não se limita a ser um animal feroz com os inimigos. É também um tremendo mau caráter com os companheiros. A versão de Barreto/Serran é que Jonas passava o tempo todo fazendo intrigas e tentando desqualificar aqueles que não pertenciam a seu grupo. Como se isso fosse pouco, ainda teria manipulado a escala da guarda do diplomata, para que o turno da possível execução de Elbrick tocasse ao guerrilheiro-intelectual que, desde o primeiro momento, ele odiou e perseguiu. Não há dúvida: tratava-se de um sujeitinho ordinário, um recalcado da pior espécie. Terá o Jonas do filme algo a ver com o Jonas da realidade? Conheci este último durante um período curto, de 2 a 7 de setembro de 1969, quando participamos juntos do seqüestro do embaixador norte-americano. Nossa convivência foi curta, mas devido às circunstâncias, intensa. Posso assegurar que o Jonas do filme é um insulto ao Jonas da vida real. A sessão inicial de advertência nunca existiu, em momento algum do interrogatório o embaixador foi ameaçado com uma arma na cabeça; as intrigas e mudanças de escala atribuídas a Jonas não passam de invencionices. Durante todo o seqüestro, ele comportou-se como deveria se comportar à testa de uma ação como aquela. Era um homem valente e determinado, tranqüilo e atento, entusiasmado mas com os pés no chão. Tudo bem: ele não havia lido Gramsci e Lukács, provavelmente não amava os Beatles e os Rolling Stones e não freqüentara as sessões de cinema de vanguarda do Paissandu ou do Belas Artes. Não tinha a sofisticação intelectual de outros guerrilheiros. Mas em matéria de estatura pessoal, condição moral e experiência de vida, não ficava a dever nada a nenhum dele. Jonas - nome de guerra de Virgílio Gomes da Silva - tinha uma longa militância política. Nasceu no interior do Rio Grande do Norte e, como tantos nordestinos, migrou para São Paulo, onde tornou-se operário têxtil, ativista sindical e militante do Partido Comunista Brasileiro. Em 1962, durante um comício pelo 13°salário, foi ferido a bala. Em 1967, deixou o PCB junto com Carlos Marighella, fundando a Ação Libertadora Nacional. Fez treinamento de guerrilha em Cuba e, ao voltar, tornou-se um dos mais destacados chefes militares da ALN, tendo comandado dezenas de ações armadas. Ninguém é obrigado a considerar Jonas um herói pelo fato de ele ter pago por suas idéias e por sua militância um preço que poucos aceitariam pagar. Talvez ele fosse um homem mais rico interiormente do que admitem os preconceitos elitistas dos inventores do Jonas do filme. Ou talvez ele desse maior valor à liberdade e à dignidade que outras pessoas, e não fosse de regatear ou barganhar quando elas estavam em jogo. Nos tempos da luta armada, essa qualidade era chamada de “firmeza ideológica”. Hoje, com mais simplicidade, eu a chamaria de caráter. Jonas tinha caráter. O filme, porém, sentiu-se na obrigação de caluniá-lo, pintando-o como a besta-fera. Não vale tirar o corpo fora, alegando que se trata de uma obra de ficção, sem preocupação de correspondência com a realidade. Afinal, na vida real, o comandante do seqüestro atendia pelo nome de Jonas, pertencia à ALN e viera de São Paulo. No filme, também. É evidente que houve a intenção deliberada de superpor realidade e ficção, confundindo uma com a outra. Qual a razão? Preguiça mental, como ironizou o roteirista? Claro que não. Trata-se de uma escolha: o filme quis ter a liberdade da ficção, mas sem abrir mão do lastro da realidade. Afinal, o seqüestro do embaixador norte-americano tem presença difusa mas forte no imaginário da sociedade. Vende entrada de cinema. Um sucedâneo, talvez não. Assim, contatos de primeiro e segundo graus com fatos acontecidos e pessoas que viveram o episódio são indispensáveis. Sem isso ficaria muito difícil badalar o filme. Como nos programas humorísticos, é preciso que alguém faça as vezes de escada, para o comediante principal brilhar. Em O que é isso, companheiro?, a realidade é a escada. Cabe à ficção arrancar gargalhadas. A fórmula deu certo no livro. Por que não daria na tela? Isso explica por que há personagens no filme que se chamam Elbrick, Toledo, Jonas etc. Não explica, porém, por que é feita uma adulteração tão agressiva do caráter e do papel do comandante da operação. O que faz Jonas descer ao inferno é outra coisa: a síndrome do politicamente correto. O filme parte de um preconceito - não tomar partido em nada - que se transforma numa obsessão, às vezes beirando o ridículo. Por exemplo: se um guerrilheiro telefona para o Jornal do Brasil informando o local onde está a lista dos presos políticos a serem libertados, outro guerrilheiro está obrigado a pedir, logo em seguida, em alto e bom som, ao jornaleiro da esquina um exemplar de O Globo. É preciso contentar a todo mundo e nunca se expor tomando posição. É isso o tempo todo: uma no cravo, outra na ferradura. Barreto/ Serran julgam que essa atitude é sinônimo de isenção e apartidarismo. Não é. É indício de superficialidade, de insegurança, de dificuldade para tirar conclusões próprias. Quiseram fazer um filme equilibrado, fizeram um filme equilibrista. A obsessão dos autores pelo muro é a condenação de Jonas. Ele é animalizado para que o torturador possa se humanizar. Ou terá sido ao contrário, numa nova versão do enigma do Tostines? Pela mesma razão, os guerrilheiros são convertidos em doidivanas, enquanto os militares mais graduados aparecem como homens sensatos, que tentam conter os excessos dos oficiais envolvidos diretamente na tortura. É notável o esforço para dissolver fronteiras. Com isso, tenta-se afastar a necessidade de que o cineasta, atrás da câmara, e o espectador, em frente da tela, tenham de se colocar diante dos dilemas da época. Se todos os gatos são pardos, e ninguém está certo e ninguém está errado, para que tomar posição? Em vez de reflexão, digestão. É a receita de uma época: a atual. Não era a dos tempos que o filme pretendeu retratar. Apesar de tudo isso, não creio que O que é isso, companheiro? absolva a ditadura. Seria tarefa acima de suas forças. Tampouco o filme justifica a tortura. Se a classe média de baby-doll não caiu nessa, na época do terror de Estado e da propaganda maciça, não serão nossos jovens de bermudão hoje, com democracia e liberdade, que comerão gato por lebre no escurinho do cinema. O personagem do torturador não passa de uma tentativa; é um arremedo, raso e sem consistência. Não convence ninguém. Que diferença para filmes como A história oficial ou A batalha de Argel, em que a tortura tinha cara, alma e lógica. Mas, nesses casos, os cineastas podiam arriscar-se no mergulho. Não tinham medo, ao mesmo tempo, de condenar a tortura. Assim, de equilibrismo em equilibrismo, o filme acaba desequilibrado. Tem seqüências fortíssimas, como aquela em que Elbrick busca adivinhar a personalidade de seus captores a partir de suas mãos, e cenas infantis, como o ritual de entrada dos militantes na organização revolucionária - “todos contra a parede!”. Alterna ótimos diálogos, como o que é travado entre o guerrilheiro e o ator na porta do teatro, com falas ridículas, como as do treinamento na praia. É arrastado e chatíssimo no começo, mas ganha ritmo vertiginoso no final. Tudo somado, como cinema, não é nem uma obra-prima nem uma porcaria. É um filme médio. Um resultado previsível para quem cravou todas as suas apostas na coluna do meio. A qualidade da matéria-prima - refiro-me ao episódio, bem entendido - e a competência do cineasta permitiriam que o filme tivesse ido mais longe. Para finalizar, continuo achando, como sempre achei, pouquíssimo importante a exegese das minúcias da ação. A discussão sobre quem fez isso ou aquilo ou sobre quem foi mais importante numa operação militar é simplesmente ridícula. Todos os que participaram da ação estavam no mesmo barco e arriscaram suas vidas por igual. No mais, cada um sabe de si. Como não vivo no passado e, muito menos, do passado, não tenho o menor interesse em polemizar a respeito de minudências. O caso de Jonas, por certo, não é uma minudência. Ele está sendo morto pela segunda vez. Como na primeira, sem direito a defesa. É terrível como o homem não consegue conviver com a diferença. “(...) Narciso acha feio o que não é espelho”, já iluminou Caetano, e tem a necessidade de destruir o que não entende. (*) Este artigo, originalmente publicado no jornal “O Globo”, em 10 de maio de 1997, foi reproduzido no livro “Versões e ficções: o seqüestro da história”, coletânea de textos de diversos autores sobre o tema, editado pela Editora Fundação Perseu Abramo, 1997.

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