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63.Um alemão nas mãos dos devoradores de homens (1556)

Um alemão nas mãos dos devoradores de homens (1556)


01/01/1556



Em 1556, foi publicado o livro “A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens, encontrados no Novo Mundo, a América” (*), escrito por Hans Staden, marinheiro alemão que, tendo sido soldado num forte português em Bertioga, foi feito prisioneiro pelos índios tupinambás. Com eles viveu durante meses, esperando o dia em que seria comido pelos selvagens. Conseguiu escapar graças a truques, felizes acasos e muita sorte. Quando saiu, o livro foi um best-seller - para as condições da época, evidentemente. Era imensa no Velho Mundo, então, a curiosidade em relação à América, e os relatos de Staden tinham tudo para cair no gosto do público letrado europeu. Primeiro, descreviam com minúcias como viviam os selvagens: suas comidas, bebidas, cerimônias, rituais de guerras, crenças e lendas, organização familiar e tribal, namoros e casamentos, relações familiares, forma de contar objetos, fabricar armas e panelas, fazer fogo etc. Como se isso fosse pouco, contavam em detalhes por quê e como os tupinambás comiam os adversários capturados nas batalhas. Em segundo lugar, as aventuras de Staden eram reais. Cheias de peripécias, espertezas e horrores, incendiaram facilmente o imaginário do europeu civilizado do século XVI. A obra de Staden é dividida em dois livros, publicados num só volume. No primeiro, ele conta sua história. No segundo, descreve como viviam os tupinambás. Selecionamos 25 dos 36 curtos capítulos da última parte. Segundo Monteiro Lobato, a obra “devia entrar nas escolas, pois nenhuma dará melhor aos meninos a sensação da terra que foi o Brasil em seus primórdios”. Embora o livro do marinheiro alemão não seja diretamente político, sua inclusão nesta “Estação História” justifica-se pela mesma razão que levou à seleção da carta de Pero Vaz de Caminha. Trata-se de um texto indispensável para se entender o ambiente em que começou a se formar o Brasil e o caráter dos brasileiros. Para quem quiser ler o livro inteiro, há uma edição recente - excelente - da Livraria Editora Por mares nunca dantes navegados. Capítulo 4 Como os Tupinambá, de quem fui prisioneiro, constroem suas moradias. Os Tupinambá moram em frente à serra já mencionada, na beira do mar; mas o seu território ainda se estende por cerca de 60 milhas por trás dela. Residem na margem do Paraíba, um rio que vem das montanhas e deságua no mar, e ocupam uma faixa de aproximadamente 28 milhas de extensão na costa. Os inimigos são uma ameaça por todos os lados. Ao norte, seu território faz fronteira com a dos hostis Guaiataca; os inimigos no sul são os Tupiniquim, e, na direção do interior, os Carajá. Os Guaiana da serra vivem nas proximidades dos Tupinambá, que são perseguidos terrivelmente por uma tribo fixada entre eles e os Guaiana, a dos Maracaia. Todas as tribos mencionadas estão permanentemente em guerra entre si e todas comem os inimigos aprisionados. Os Tupinambá gostam de fazer suas cabanas próximas a locais providos de água e lenha, assim como peixes e caça. Quando se esgotam os recursos do território escolhido, eles estabelecem suas moradias em outro local. Sendo preciso erguer cabanas, cada chefe reúne um grupo de aproximadamente 40 homens e mulheres, ou tantos quantos estiverem disponíveis. Esse grupo costuma ser constituído por amigos e parentes. Então constroem uma cabana que - dependendo do tamanho do grupo – chega a ter 14 pés de largura e até 150 pés de comprimento. A cabana mede cerca de duas braças de altura, sendo arredondada em cima como a abóbada de uma adega. Cobrem-na espessamente com folhas de palmeira, para proteger da chuva o seu interior. Ninguém tem um quarto separado na cabana, que por dentro consiste num único cômodo enorme, onde cada casal, homem e mulher, possui um espaço com cerca de 12 pés de comprimento em um dos lados, de frente para um outro casal que possui seu espaço no outro lado. Assim as cabanas são preenchidas, cada família tendo sua fogueira própria. O chefe é dono do espaço central. Normalmente a cabana tem três entradas pequenas, uma de cada lado e uma no meio, tão baixas que é preciso curvar-se para passar. É raro uma aldeia contar com mais de sete cabanas, entre as quais deixam um espaço livre. Onde matam seus inimigos aprisionados. As aldeias costumam ser protegidas do seguinte modo: em torno das cabanas ergue-se uma cerca feita com troncos cortados de palmeiras, com mais ou menos uma braça e meia de altura e tão grossa que nenhuma flecha possa penetrá-la. Há nela pequenos buracos pelos quais atiram suas flechas. Em volta dessa cerca erguem ainda uma outra, feita com varas longas e grossas, presas não próximas umas às outras, restando no meio uma separação que não permite a passagem de um homem. Em algumas tribos, é costume espetar as cabeças dos inimigos comidos em estacas, na entrada da aldeia. Capítulo 5 Como eles acendem o fogo Eles possuem um determinado tipo de madeira, chamado uraçu-iba, que secam. Pegam duas varetas da grossura de dedos e esfregam uma na outra. Com isso, produz-se um pó cinza que é aquecido pelo calor proveniente do atrito. É assim que acendem o fogo. Capítulo 6 Onde Dormem Eles dormem em redes penduradas, a que dão o nome de ini, em sua língua. Elas são trançadas com fios de algodão e amarradas sobre o chão em duas estacas. Durante a noite, uma fogueira permanece acesa ao lado da rede. E, mesmo para fazer suas necessidades, os selvagens não gostam de sair das cabanas sem levar uma tocha, tamanho o medo que sentem do demônio chamado por eles de Anhangá, que acreditam ver com freqüência. Capítulo 7 Como eles são habilidosos em caçar animais selvagens e peixes com flechas Aonde quer que vão, seja na floresta, seja na água, sempre carregam seus arcos e flechas. Quando estão caminhando na floresta, têm o olhar atento dirigido para as copas das árvores, observando bem. Se descobrem um pássaro grande, um macaco ou outro animal que habita em árvores, ficam de tocaia e tentam atingi-lo. Perseguem sua presa até que ela seja abatida. É raro que um deles saia para caçar e retorne de mãos vazias. Da mesma maneira, eles percorrem a beira do mar atrás de peixes. Seus olhos são aguçados, de modo que, quando um peixe surge em qualquer ponto da superfície, atiram uma flecha na sua direção, e quase não erram. Tendo atingido um peixe, pulam na água e nadam atrás dele. Alguns peixes grandes vão para o fundo quando sentem a flechada. Os caçadores mergulham até uma profundidade de mais ou menos seis braças para apanhá-los. Também utilizam pequenas redes. O fio com que estas são feitas é retirado de folhas pontuadas e longas, a que dão o nome de tucum. Quando querem pescar com as redes, alguns deles se juntam formando um círculo na água rasa. Cada um segura numa parte da rede, depois eles batem na água, fazendo os peixes fugirem para o fundo e ficarem presos nos fios. Quem pega muitos peixes dá uma parte para os outros. Pessoas que moram longe do mar viajam para capturar um bom número de peixes, torrá-los sobre o fogo, depois amassá-los até fazer uma farinha, que secam muito bem; assim ela se conserva por longo tempo. Levam-na de volta para casa e vão comê-la junto com farinha de mandioca. Se os peixes fossem levados para casa assados, não se conservariam por tanto tempo, pois não os salgam. Além disso, cabe mais farinha de peixe num pote do que peixes inteiros assados. Capítulo 8 Qual é a aparência das pessoas? Trata-se de um povo em que homens e mulheres são tão belos, no corpo e na aparência, como aqui em nossa terra; só que eles são bronzeados pelo sol, visto andarem todos nus – tanto os jovens quanto os velhos - , sem nunca cobrirem as partes vergonhosas. Alteram suas feições por meio de pinturas e também não possuem nenhuma barba, já que as arrancam com a raiz assim que começam a crescer. Eles perfuram seus lábios e orelhas e põem pedras pelos furos: é este o seu ornamento. Além disso, enfeitam-se com penas. Capítulo 9 O que eles usam para capinar e cortar nos territórios em que não trocam machados, facas e tesouras com os cristãos Antigamente, antes da vinda das naus comerciantes para essa terra, os selvagens utilizavam uma pedra preta azulada, como ainda hoje fazem nos locais que não são alcançados pelas embarcações. Pegam pedras com o formato de cunhas e afiam a aresta mais longa. Tais cunhas têm mais ou menos um palmo de comprimento, a grossura de dois dedos e são largas como a mão. Algumas maiores, outras menores. Depois eles apanham uma vara fina e vergam na parte superior, ao redor da cunha, amarrando-a com uma fibra. As cunhas de ferro, conseguidas em alguns lugares por meio de trocas com os cristãos, têm a mesma forma. Só o cabo é feito por eles de uma maneira diferente: perfuram a madeira e encaixam a cunha no buraco. É feito assim o machado com o qual cortam a lenha. Também pegam dentes de porcos do mato, amolam no meio até ficarem bem afiados e os amarram entre dois tocos. Com esse instrumento é que eles aparam suas flechas e seus arcos, deixando-os redondos, como se tivessem sido torneados. Além disso, usam os dentes de um animal chamado paca, afiados na frente. Quando têm alguma doença do sangue, arranham o local dolorido até sangrar. Essa é a maneira deles de fazer uma sangria. Capítulo 10 O que selvagens comem em lugar do pão, como chamam os seus frutos, como eles os plantam e como os preparam Nos lugares em que pretendem fazer plantações, os selvagens derrubam as árvores e deixam-nas secando cerca de três meses. Depois ateiam fogo, queimando-as totalmente. Entre os tocos das árvores, então, plantam a raiz que lhes serve como alimento. Ela se chama mandioca, um arbusto que chega mais ou menos a uma braça de altura e forma três raízes. Quando querem colher, arrancam os arbustos e amassam as raízes, depois tiram ramos da planta e os enterram mais uma vez. Esses ramos dão origem a novas raízes, sendo que em três meses elas estão grandes o bastante para outra colheita. As raízes são preparadas de três maneiras. Primeira: trituram as raízes sobre uma pedra, obtendo pequenas migalhas. Estas são espremidas com um assim chamado tipiti, que é feito da casca da palmeira, para tirar o suco. Assim, a massa fica seca, depois é passada por uma peneira, produzindo uma farinha que serve para assar bolos bem finos. O pote em que eles secam e assam sua farinha é feito de barro e tem a forma de uma bacia. Segunda maneira: apanham as raízes frescas e as colocam na água, deixando que fermentem, depois as secam no fogo. Essas raízes secas chamam-se carima e são conservadas por muito tempo. Para o uso, a carima é socada em um pilão de madeira, produzindo com isso uma farinha branca semelhante à nossa farinha de trigo. Dela fazem bolos chamados beiju. Terceira: pegam a mandioca apodrecida mas não a secam, e sim misturam-na com mandioca seca e verde. Torrando o produto, fazem dele uma farinha que se conserva pro um ano inteiro. Ë igualmente boa para comer e chama-se uiatam. Eles também preparam peixe e carne de maneira semelhante, para fazer farinha, assando o peixe ou a carne na fumaça, sobre o fogo, deixando-os completamente ressecados. Depois despedaçam a carne seca e torram-na mais uma vez sobre o fogo nos assim chamados inhepoan, potes de barro queimados justamente para isso. Por fim, o alimento torrado é moído em um pilão e peneirado até ficar bem fino, resultando disso uma farinha duradoura (e entre eles não se usa salgar o peixe e a carne). Come-se essa farinha junto com farinha de mandioca, e ela é bem gostosa. Capítulo 11 Como eles cozinham seus alimentos Entre os povos selvagens há muitas tribos que não comem sal. No território daqueles de quem fui prisioneiro, encontram-se alguns que conheceram o sal a partir do comércio com os franceses. Porém eles me contaram que a tribo dos Carajá, cujo território fica no interior, afastado do mar, e faz fronteira com o deles, retira sal da palmeira para comer. Mas afirmaram que quem se habitua a comer muito sal não tem vida longa. Eu mesmo vi a maneira como retiram o sal e ajudei-os nisso. Derrubam uma palmeira grossa e cortam-na em pequenas lascas. Depois, erguem uma armação com madeira seca, colocam as lascas nela e queimam junto com a madeira, reduzindo-as a um pó cinza. Esse pó é cozido, dando origem a uma barrela da qual, depois de fervida, separa-se algo que parece sal. Primeiro achei que era salitre e experimentei no fogo, mas não era. É cinzento e tem gosto de sal. No entanto, a maioria dos selvagens não come sal nenhum. Ao cozinharem alguma coisa, seja peixe ou carne, na maior parte das vezes acrescentam pimenta verde. Quando a comida está quase pronta, retiram-na do caldo e fazem uma papa fina que se chama mingau e é bebida em potes feitos de cabaças. Querendo preparar uma refeição com peixe ou carne que fique conservada por algum tempo, põem a carne em pequenas varas de madeira, localizadas mais ou menos a quatro palmos acima do fogo forte, onde vão assando e defumando a carne até ela ficar totalmente seca. Quando querem come-la, cozinham-na novamente. Este alimento chama-se moquém. Capítulo 12 Qual o governo e a autoridade que eles têm e o que entendem por direito e ordem Eles não têm nenhum direito estabelecido e também nenhum governo próprio. Cada cabana possui um chefe que é, por assim dizer, um rei. Todos os chefes são da mesma linhagem, tendo poderes iguais de mando e de governo – independente de como se queira chamá-los. Se um deles destacou-se especialmente por seus feitos guerreiros, este, quando os selvagens vão a caminho da guerra, é mais obedecido do que os outros, como no caso do já mencionado chefe Cunhambebe. Não ouvi falar de nenhum privilégio especial entre eles, a não ser a obediência dos mais novos aos mais velhos, conforme seu costume. Quando um deles mata o outro, com um golpe ou uma flechada, os parentes do morto tomam providências para vinga-lo. Mas isso acontece raramente. Todos na cabana obedecem ao chefe, fazendo aquilo que ele ordena de boa vontade, sem constrangimento e sem temor Capítulo 13 Como eles queimam os potes e panelas que utilizam Os potes que eles utilizam são produzidos pelas mulheres da seguinte maneira: pegam o barro e amassam, moldando a partir dele os potes desejados; depois, deixam secar por algum tempo e fazem pinturas artísticas. Se os potes precisam ser queimados, apóiam-nos em pedras, botam muita cortiça seca em torno e acendem o fogo. É assim que os potes são queimados, ardendo como ferro quente. Capítulo 14 Sobre seus costumes para beber e como preparam suas beberagens encantadas As mulheres fazem as bebidas. Elas pegam raízes de mandioca e fervem grandes panelas cheias. Quando as raízes estão bastante cozidas, são retiradas e despejadas em outros potes, para esfriar um pouco. Depois disso, as mulheres jovens sentam-se, mastigam a mandioca e devolvem o que mastigaram para potes especiais. Quando todas as raízes cozidas já estão mastigadas, aquilo tudo volta para uma panela cheia d’água, que é misturada com a papa das raízes. O produto todo é aquecido mais uma vez. Eles possuem potes especiais, que são enterrados no solo pela metade e têm o mesmo propósito dos barris usados aqui para vinho e cerveja. Despejam todo o líquido nesses potes e os fecham bem. A beberagem começa a fermentar por si mesma, tornado-se forte. Permanece dois dias fechada, depois bebem dela e embriagam-se. Trata-se de uma bebida grossa e nutritiva. Cada cabana prepara sua própria bebida. Devendo-se celebrar uma festa na aldeia – normalmente uma vez por mês -, todos se encaminham para uma primeira cabana e ali bebem toda a bebida. Seguem assim em círculo, até que todas as bebidas de todas as cabanas tenham acabado. Sentam-se em volta das panelas, alguns sobre a lenha, outros no chão. As mulheres servem as bebidas, como é o costume entre eles. Alguns se levantam, cantando e dançando em torno dos potes. Aliviam-se de suas águas no mesmo lugar em que bebem. O banquete dura a noite inteira. Eles dançam entre as fogueiras, gritam e sopram seus instrumentos. Quando ficam bêbados, fazem uma gritaria medonha. É raro observar alguma briga nesses momentos. São muito prestativos entre si, portanto, quando alguém tem mais comida do que o outro, dá um pouco a este. Capítulo 15 Como os homens se enfeitam e se pintam e que tipo de nome têm Eles raspam a cabeça, deixando apenas uma coroa de cabelo, semelhante à de um monge. Perguntei-lhes diversas vezes como é que tinham chegado a esse tipo de cabelo e eles contaram que seus antepassados tinham-no visto em um homem de nome Meire Humane, que realizara muitas maravilhas entre eles. Era considerado um profeta ou apóstolo. Continuei a perguntar, querendo saber o que eles usavam para cortar os cabelos antes da vinda das naus com tesouras. Esclareceram que isso era feito com duas cunhas de pedra, batendo no cabelo uma por cima da outra, sendo a parte do meio cortada com auxílio de uma lasca feita de cristal. Essa raspadeira é muito empregada por eles para cortar. Além disso, fazem um enfeite de penas vermelhas chamado acangatara, que é amarrado em volta da cabeça. No lábio inferior, eles têm um furo grande, desde a juventude. Quando são ainda jovens, perfuram o lábio com uma ponta de chifre de cervo, colocam no furo uma pedrinha ou pedaços de madeira e untam-no com um de seus ungüentos. O pequeno furo permanece aberto assim. Depois, quando ficam maiores ou capazes de feitos de bravura, a abertura é aumentada e o jovem coloca através dela uma grande pedra verde. A parte superior da pedra, que tem uma forma especial, mais estreita, fica voltada para dentro e a parte grossa para fora. Seu peso faz o lábio inferior pender para baixo o tempo todo. Também usam duas pedras pequenas atravessadas nas bochechas, nos dois lados da boca. Alguns, em vez de pedras, usam cristais longos e delgados. Um outro enfeite é produzido a partir do casulo de grandes caracóis marinhos, os matapus. Chama-se bojeci e tem a forma de uma meia-lua, branco como a neve, sendo usado em volta do pescoço. Ainda a partir do casulo de caracóis marinhos, fazem disquinhos brancos, mais ou menos da grossura de uma haste de palha, que penduram no pescoço. A feitura desses disquinhos é muito cansativa. Também se enfeitam com feixes de penas amarradas em torno dos braços e pintam-se de preto. Penas vermelhas e brancas são coladas ao corpo, misturando as cores. A cola para isso é retirada de árvores. Esfregam-se nos pontos que querem emplumar, depois apertam as penas por cima. Costumam pintar um braço de preto e o outro de vermelho, fazendo o mesmo com as pernas e o tronco. Um outro enfeite é obtido de penas de ema. Trata-se de uma coisa grande e redonda, feita de penas, chamada enduape. Quando vão para a guerra ou fazem uma grande festa, amarram tais enfeites nas costas. Seus nomes são escolhidos a partir dos animais selvagens. Dão-se muitos nomes, mas com determinadas distinções: no nascimento, um menino recebe um nome que conservará até crescer e mostrar-se um guerreiro valoroso, capaz de matar inimigos. Depois, cada um deles recebe tantos nomes quantos forem os inimigos que tiver matado. Capítulo 16 Quais são os enfeites das mulheres As mulheres pintam a metade inferior do rosto e todo o resto do corpo do mesmo modo que já foi descrito a respeito dos homens. Todavia, elas deixam os cabelos compridos, como as mulheres de outros lugares. Além disso, não têm nenhum enfeite especial; só nas orelhas é que possuem furos para um tipo de brincos, mais ou menos da grossura de um polegar, produzidos a partir de caracóis marinhos. Desde a infância elas têm apenas um nome, que tiram de pássaros, peixes e frutas. Se forem casadas, recebem tantos nomes quantos forem os inimigos mortos por seus maridos. Quando catam piolhos, elas os comem. Perguntei-lhes muitas vezes por que fazem isso e elas responderam que os piolhos eram seus inimigos e devoravam alguma coisa das suas cabeças, portando queriam vingar-se deles. Entre esses selvagens não há parteiras determinadas. Quando uma mulher deve dar à luz, quem estiver mais perto vem correndo, seja mulher ou homem. Vi mulheres que já estavam passeando novamente no quarto dia após o parto. Carregam seus filhos nas costas, seguros em panos de algodão. Desse modo, levam-nos para o trabalho e as crianças ficam satisfeitas, dormindo, mesmo que a mãe se abaixe e se movimente muito. Capítulo 17 Como as crianças recebem seu primeiro nome A mulher de um dos selvagens que me capturaram dera à luz um filho. Alguns dias depois, o pai estava discutindo na cabana com os vizinhos mais próximos a respeito do nome que devia dar a seu filho, um nome que soasse corajoso e amedrontador. Sugeriram muitos nomes que não o agradaram, então ele disse que pretendia dar ao filho o nome de um dos seus quatro antepassados. Crianças com tais nomes são prósperas e bem sucedidas na captura de escravos, segundo disse, pronunciando em seguida os quatro nomes. O primeiro chamava-se Kirima, o segundo Eiramita, o terceiro Coema, e o nome do quarto eu não guardei. Quando ele disse Coema, pensei que podia ser Cham ou Ham, mas Coema significa ‘manhã’ na língua deles. Sugeri que desse ao filho aquele nome, pois certamente pertencia a um de seus antepassados. A criança recebeu um dos quatro nomes mencionados por ele, o que acontece sem batismo ou circuncisão. Capítulo 19 Como eles combinam os casamentos Eles prometem as suas filhas como noivas quando elas ainda são muito novas. Ao chegar a idade propícia para o casamento, cortam-lhes fora os cabelos, fazem determinados talhos nas suas costas e amarram alguns dentes de feras em volta do pescoço. Quando o cabelo volta a crescer e as feridas saram, ainda é possível reconhecer a forma dos cortes, pois eles põem algo na ferida recente que torna preta quando sara. Esses sinais são considerados uma honra. Realizadas tais cerimônias, entregam a moça àquele que deve tê-la como esposa, mas sem festividades. Marido e esposa comportam-se decentemente, fazendo suas coisas em segredo. Também observei como um dos chefes vai passando por todas as cabanas durante a manhã e arranha as pernas das crianças com um dente de peixe. Isso é para fazê-las ficar com medo. Se desobedecem alguma vez, os pais a ameaçam dizendo que aquele homem vai voltar se elas não forem bem comportadas. Capítulo 20 Seus haveres Os selvagens não praticam, entre eles, nenhum tipo de comércio e não conhecem nenhum dinheiro. Seus únicos tesouros são penas de pássaros, sendo visto como rico aquele que possui muitas delas. Quem usa uma pedra no lábio inferior também tem muito prestígio. Cada família possui sua própria plantação de mandioca, que lhe basta para viver. Capítulo 21 Qual é a maior das honras para eles O que vale como uma honra entre eles é ter aprisionado e matado muitos inimigos, pois é esse o seu costume. O número de inimigos que um homem matou equivale ao número de nomes que ganha. Aqueles que têm mais nomes são os mais distintos entre eles. Capítulo 22 Sobre as suas cabeças Os selvagens cultivam uma planta de abóbora que tem mais ou menos o tamanho de meia panela e é oca por dentro. Espetam uma vareta através dela, cortam uma abertura semelhante à boca e enchem-na com pedrinhas, de modo que faça barulho. Essa coisa é denominada maracá e eles a chacoalham quando estão dançando e cantando. Cada homem possui sua própria maracá. Entre eles, há alguns homens a que dão o nome de pajé. Trata-se de adivinhos, que são muito estimados por todos, da mesma maneira como aqui. Uma vez por ano eles andam pelas terras da tribo contando que lhes apareceu um espírito vindo de lugares muito distantes. Tal espírito teria dado a eles o poder de fazer com que todas as maracás falem e de lhes emprestar esse seu poder quando quiserem. Basta pedir a eles. Naturalmente, todos desejam que seu chocalho receba o poder e preparam uma grande festa, em que cantam e dançam. Os pajés prevêem o futuro e realizam muitas cerimônias bizarras. Após a festa, o adivinho escolhe uma cabana que precisa ser abandonada em determinado dia. Nenhuma mulher nem criança tem permissão para ficar lá dentro. Eles ordenam que todos os homens venham com suas maracás; depois de pinta-las de vermelho e enfeita-las com penas, então os chocalhos devem receber o poder de falar. Quando os homens já estão reunidos na cabana, os adivinhos sentam-se lá dentro, na parte mais alta, e fincam suas maracás no chão, ao seu lado. Os outros homens o imitam. Cada um dá presentes aos pajés, como por exemplo arcos e flechas, penas ou brincos, para que sua maracá não seja esquecida. Nessa reunião, o adivinho pega a maracá de cada um em particular e incensa na fumaça de uma erva a que dão o nome de pitim. Depois ele a segura bem perto da boca e diz: “Ne cora – Agora fale e se faça ouvir, se está aí.” Em seguida, fala uma palavra tão depressa que não é possível distinguir se é o chocalho ou ele quem está falando. As pessoas acreditam que é o chocalho, mas na realidade é o pajé quem fala. Ele faz assim com todos os outros chocalhos, e cada homem acredita que sua maracá tem grande poder. Por fim, os adivinhos lhes ordenam a partida para a guerra e a captura de muitos prisioneiros, pois os espíritos nas marcas têm apetite de comer carne de escravos. Depois disso, eles vão guerrear. Depois que o pajé transforma todos os chocalhos em divindades, cada homem retoma o seu e passa a chamá-lo de “filho querido”, chegando mesmo a fazer uma cabaninha onde o chocalho fica, com sua comida em frente. É para as maracás que pedem tudo de que têm necessidade, do mesmo modo como nós suplicamos ao verdadeiro Deus. Portanto, são esses os deuses deles. Não se preocupam com o Deus verdadeiro, criador do céu e da Terra, visto acreditarem, segundo sua tradição, que o céu e a Terra sempre existiram. Também não sabem nada a respeito do começo do mundo. Todavia, contam que houve certa vez uma grande enchente em que todos os seus antepassados morreram afogados; segundo eles, apenas uns poucos sobreviveram num barco, alguns também em cima de árvores altas. Acredito que se refiram ao Dilúvio. No início, logo que comecei a viver entre eles, ao me contarem sobre as maracás, fiquei pensando que se tratava de uma artimanha do diabo, pois eles asseguravam muitas vezes que os chocalhos podiam falar. Entretanto, ao entrar na cabana onde todos são obrigados a sentar, quando estavam lá os adivinhos que deviam fazer os chocalhos falarem, reconheci a farsa e então saí da cabana pensando comigo: ‘Que pobre povo ludibriado’. Capítulo 23 Como eles tornam as mulheres adivinhas Em seguida, os selvagens vão a uma cabana e incensam com fumaça todas as mulheres lá dentro, uma a uma. Depois, todas elas têm de se agachar, saltar e andar em volta da cabana, até ficarem exaustas e caírem por terra. É quando o adivinho diz: “Vejam, agora ela está morta, mas logo vou revivê-la. Ao voltar a si, ela será capaz de prever coisas futuras”. Quando os selvagens partem para a guerra, as mulheres precisam fazer previsões a respeito da expedição. A mulher do meu senhor (do selvagem a quem fui dado de presente, para que ele me matasse) começou a profetizar certa noite, dizendo a seu marido que um espírito vindo de uma terra distante lhe aparecera e queria saber quando eu seria morto. Segundo ela, o espírito também tinha perguntado onde se encontrava o porrete com o qual seria desferido o golpe mortal. A resposta de seu marido foi que não ia demorar muito, pois estava tudo pronto, embora ele achasse que eu não era português e sim francês. Quando a mulher havia terminado sua profecia, perguntei-lhe por que ameaçavam a minha vida daquele modo, visto que eu não era inimigo, e se não temia que meu Deus pudesse lançar uma praga sobre ela. Sua resposta foi que eu não devia mais me preocupar com aquilo, pois tratava-se de espíritos estrangeiros querendo obter informações a meu respeito. Os selvagens têm muitas dessas cerimônias proféticas. Capítulo 24 O que usam para viajar na água Na terra deles há um determinado tipo de árvore a que dão o nome de igaibira. Eles destacam a casca dessa árvore de cima abaixo, num único pedaço. Para consegui-la inteira, fazem uma armação extra em torno da árvore. Transportam essa casca das montanhas até a beira do mar, onde ela é aquecida sobre o fogo e então dobrada para cima, tanto na parte de trás quanto na da frente. Antes disso, amarram madeiras no meio para que não se distenda. É dessa maneira que fabricam barcos, nos quais até 30 homens podem ir em expedições de guerra. A casca é da grossura de um polegar, tendo mais ou menos 4 pés de largura e 40 pés de comprimento, algumas ainda mais longas, outras mais curtas. Com tais barcos, eles viajam o quanto quiserem, remando depressa. Se o mar está agitado, arrastam os barcos para a terra até que o tempo melhore novamente. Não ousam afastar-se mais de duas milhas no mar, mas navegam trechos muito grandes ao lado da costa. Capítulo 25 Por que eles comem seus inimigos Eles não comem seus inimigos porque têm fome, mas sim por ódio e grande hostilidade, sendo que, nos combates entre eles, durante a guerra, gritam cheios de raiva: “Debe Mara pa, xe remiu ram begue – Que todo infortúnio recaia sobre você, minha comida, minha refeição. Nde akanga juka aipota kuri ne – Quero arrebentar a sua cabeça ainda hoje. Xe anama poepika re xe aju – Estou aui para vingar em você a morte dos meus amigos. Nde rôo, xe mokaen sera kuarasy ar eyma rire. – Antes que o sol se ponha vou ter assado a sua carne.” E assim por adiante. Fazem tudo isso por causa de sua grande inimizade. Capítulo 26 Como eles conferenciam quando planejam uma expedição de guerra na terra dos seus inimigos Quando pretendem fazer uma expedição de guerra em território inimigo, reúnem-se todos os chefes e conferenciam a respeito do melhor procedimento. O resultado da conferência é anunciado nas cabanas, para que todos possam aprontar-se. Como eles não conhecem nenhuma divisão segundo dias ou anos, determinam o dia da partida, nomeando, por exemplo, a época de amadurecimento de certa fruta. Também costumam definir o ataque de acordo com a época de desova de peixes, como, por exemplo, o pirati. A época de desova é chamada de piracema. Para essas ocasiões, equipam-se com barcos, flechas e farinha grossa de raízes ( a uiatã) como mantimento. Então perguntam aos pajés, os adivinhos, se serão vitoriosos. Estes respondem afirmativamente na maioria das vezes, todavia os aconselham a prestar atenção nos sonhos em que os inimigos aparecem. Caso muitos deles sonhem que estão vendo a carne dos inimigos assando, isso é interpretado como uma vitória. Porém, se muitos vêem a própria carne assando, isso significa infortúnio, sendo portanto, melhor permanecer em casa. Assim que os sonhos lhes parecem animadores, aprontam-se. Bebidas são preparadas em todas as cabanas grandes, onde eles dançam e cantam com seus ídolos, as maracás, para as quais cada um deles pede que o ajude a capturar um inimigo. Depois partem. Chegando bem perto do território dos inimigos, na última noite antes da invasão, os chefes ordenam que todos notem bem os sonhos que tiverem. Eu estive presente em uma dessas expedições de guerra. Quando nos encontrávamos bem próximos da terra inimiga, na véspera do ataque, o líder andou à tarde pelo acampamento. Ordenou a todos que guardassem seus sonhos dessa noite. Aos homens jovens, deu instruções para caçarem animais e pegarem peixes ao raiar do dia. Isso aconteceu. O chefe mandou cozinhar tudo, depois reuniu os outros chefes diante da sua cabana. Sentaram-se no chão em círculo, receberam algo para comer e, depois da refeição, contaram os sonhos favoráveis da noite anterior; em seguida, dançaram em celebração com suas maracás. Espreitam as cabanas de seus inimigos durante a noite e atacam ao alvorecer. Se aprisionam alguém gravemente ferido, matam-no de imediato e levam a carne já assada para casa. Os ilesos, por sua vez, são levados com vida para lá, até suas cabanas, onde eles os matam. Atacam gritando alto, batendo forte com os pés no chão e soprando instrumentos feitos de cabaças. Carregam muitos cordões amarrados, com os quais pretendem prender os inimigos, e enfeitam-se com penas vermelhas como um tipo de sinal de identificação. Atiram flechas depressa, usando também as incendiárias, com o propósito de atear fogo às cabanas dos inimigos. Possuem ervas medicinais para tratar de seus próprios feridos. Capítulo 27 Os equipamentos de guerra dos selvagens Eles possuem arcos e flechas com pontas feitas de pedaços afiados de ossos atados a elas. Também empregam para isso dentes de tubarões, peixes que capturam no mar. Para suas flechas incendiárias, pegam algodão embebido em cera e prendem nas pontas das flechas, depois acendem-nas. Fabricam escudos feitos de cascas de árvores e peles de animais. Além disso, enterram espinhos pontudos, da mesma maneira como fazemos aqui com armadilhas de pé. Ouvi dizer, mas não presenciei, que eles afugentam os inimigos das fortificações com pimenta (que realmente cresce em sua terra). Fazem isso do seguinte modo: quando sopra um vento favorável acendem uma grande fogueira e jogam dentro dela um monte de pimenta. Assim que a fumaça espessa chega às cabanas, os inimigos são obrigados a fugir. Acredito nisso, pois, certa vez, quando me encontrava na companhia dos portugueses, como já foi narrado, em uma província daquela terra chamada Pernambuco, aconteceu o seguinte. Nosso barco havia encalhado em uma borda de rio, na hora da maré baixa, e muitos selvagens vieram com a intenção de tomar a embarcação de assalto. Como não foram capazes, jogaram muitos arbustos secos entre a margem e o barco. Pretendiam nos espantar com a fumaça da pimenta, mas não conseguiram atear fogo à madeira. Capítulo 28 Quais são os costumes festivos que têm para matar e comer seus inimigos. O que usam para dar-lhe o golpe fatal e como lidam com eles. Quando os prisioneiros são trazidos para casa, as mulheres e os filhos dos selvagens têm permissão para bater neles. Depois os enfeitam com penas cinzas e raspam suas sobrancelhas. Dançam em volta do prisioneiro, bem amarrado para não escapar. Dão-lhe uma mulher, que cuida dele e é sua serva. Se ela fica grávida, criam o filho até estar grande, a fim de matá-lo e comê-lo posteriormente, quando lhes parecer melhor. Ao prisioneiro, dão boa comida, mantendo-o vivo por algum tempo, enquanto se preparam para a festa. Fabricam muitos potes para a bebida, além de outros especiais, em que guardam as coisas usadas para pintar e enfeitar o prisioneiro; também fabricam franjas de penas usadas no porrete com o qual vão matá-lo, assim como um longo cordão para amarrá-lo antes de morrer. Quando está tudo pronto, definem o dia em que o prisioneiro deve morrer e convidam gente de outras aldeias para a festa. Um ou dois dias antes do tempo determinado, a bebida é colocada nos potes. Porém, antes de preparar a bebida, as mulheres levam o prisioneiro algumas vezes até o local e dançam em volta dele. Após a chegada de todos os convidados, o chefe faz uma saudação e lhes dá as boas vindas com as seguintes palavras: “Venham agora e ajudem a comer nossos inimigos.” No dia anterior à bebedeira, eles amarram o cordão de mussurana em torno do pescoço do prisioneiro. Nesse dia, também pintam a ibira-pema, o porrete com o qual o matam, que mede mais de uma braça de comprimento. Untam a madeira com uma pasta grudenta, em seguida pegam a casca cinzenta dos ovos de um pássaro chamado macaguá, trituram-na até ficar reduzida a pó e fazem listras no porrete. Então, uma mulher senta-se e risca algo nessa poeira colada. Enquanto ela está desenhando, outras mulheres permanecem à sua volta, cantando alto. Já enfeitada com franjas de penas e outras coisas, como é o costume, a ibira-pema é pendurada em uma haste acima do chão de uma cabana vazia, em volta da qual os selvagens dançam e cantam durante a noite toda. O rosto do prisioneiro é pintado da mesma maneira, com as mulheres cantando em volta enquanto uma delas faz a pintura. Quando começam a beber, carregam o prisioneiro para o local e fazem-no beber junto, divertindo-se às custas dele. No dia seguinte ao da bebedeira, descansam. Constroem para o prisioneiro, no lugar onde ele vai morrer, uma pequena cabana em que, bem vigiado, passará a sua última noite. Chegando a manhã, ainda algum tempo antes do alvorecer, eles dançam e cantam em torno da ibira-pema até o raiar do dia, quando levam o prisioneiro para fora da sua cabaninha, que derrubam para abrir espaço. A mussurana é retirada de seu pescoço, amarrada em volta do corpo e retesada dos dois lados, de modo a ficar firme no meio. Muitas pessoas seguram o cordão em cada extremidade. Deixam-no ficar de pé assim por algum tempo e põem umas pedrinhas perto dele, para que possa jogá-las nas mulheres, enquanto elas correm à sua volta mostrando com vão comê-lo. As mulheres, todas pintadas, têm a tarefa de, assim que seu corpo for repartido, correr ao redor da cabana com os quatro primeiros pedaços, pois isso agrada aos outros. Então eles acendem uma fogueira a cerca de dois ou três passos do prisioneiro e obrigam-no a olhar para ela. Ë quando uma mulher vem correndo com a ibira-pema, levanta as franjas de penas, dá guinchos de alegria e passa perto do prisioneiro, fazendo-o ver o porrete. Finalmente, um homem pega o porrete e toma posição em frente ao prisioneiro, segurando a arma de maneira que este seja obrigado a olha-la. Enquanto isso, aquele que vai matá-lo sai com mais treze ou quatorze e eles colorem seus corpos com cinzas antes de voltarem ao lugar onde se encontra a vítima. O homem que segurava o porrete entrega-o ao matador; depois o chefe vem, pega dele a arma e a coloca entre as pernas, o que é visto como uma honra. A seguir, o responsável pelo golpe apanha o porrete novamente e diz: “Aqui estou eu, vou matar você, pois os seus companheiros mataram e devoraram muitos amigos meus.” O prisioneiro responde: “Se morro, também tenho muitos amigos que vão vingar-me.”Ao ouvir essas palavras, o outro golpeia por trás na cabeça, fazendo os miolos saltarem fora. Imediatamente as mulheres pegam o corpo, arrastam-no para o fogo e raspam sua pele. Fazem-no ficar completamente branco, tapando-lhe o traseiro com um pedaço de madeira para que não saia nada. Quando a pele está retirada, um homem pega o morto e corta as pernas acima do joelho e os braços junto ao corpo, então vêm quatro mulheres, apanham essas quatro partes e correm com elas em volta da cabana sob grandes gritos de alegria. Em seguida, os homens separam as costas com o traseiro da parte frontal e repartem a carne entre si. Mas são as mulheres que levam as vísceras, das quais, depois de cozidas, fazem uma papa denominada mingau, que elas e as crianças bebem. As mulheres comem as vísceras e também a carne da cabeça; os miolos, a língua e o que mais for aproveitável, são as crianças que recebem. Depois de tudo isso, cada um volta para sua cabana levando seu bocado. Aquele que matou o prisioneiro, por sua vez, escolhe mais um nome. O chefe risca uma marca na parte de cima do seu braço com o dente de um animal selvagem. Quando a ferida sara, a cicatriz é vista como um sinal de honra. O matador tem que ficar quieto em sua rede no dia da matança. Ele recebe um pequeno arco e flechas, a fim de passar o tempo atirando num alvo de cera. Fazem assim para que o braço não vá tremer devido ao horror do golpe fatal. Tudo isso eu presenciei pessoalmente e vi com meus próprios olhos. Os selvagens só sabem contar até cinco. Querendo contar mais do que isso, mostram os dedos das mãos e dos pés. Quando se referem a um número grande, apontam para quatro ou cinco pessoas, indicando com isso o número de seus dedos dos pés e das mãos. (*) O nome integral da obra é “A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens, encontrados no Novo Mundo, a América, e desconhecidos antes e depois do nascimento de Cristo na terra de Hessen, até os dois últimos anos passados, quando o próprio Hans Staden de Homberg, em Hessen, os conheceu, e agora os traz ao conhecimento do público por meio da impressão deste livro”.

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