O embaixador do rei de Angome chega à Bahia (1750)
29/09/1750
No dia 29 de setembro de 1750, chegou a Salvador, então capital do vice-reino do Brasil, navio procedente do porto de Tanixuma, no golfo de Benim, na África, trazendo a bordo uma embaixada do rei de Angome, Kiay Chiri Broncom, “senhor dos dilatadíssimos sertões da Guiné”. Objetivo da comitiva, chefiado por Churumá Nadir: assinar um tratado de comércio e amizade com o Rei de Portugal, utilizando para isso os serviços do vice-rei, o Conde de Atouguia. Um ano depois, aparecia em Lisboa a “Relação da embaixada...”, assinada por J.F.M.M.
O documento é saboríssimo. Dá conta, em primeiro lugar, da estreita vinculação entre o Brasil e a África, ancorada na venda de escravos, de um lado, e de cachaça, fumo e farinha de mandioca, de outro, e facilitada pelas condições favoráveis de navegação entre os dois continentes. Verifica-se aqui o mesmo que se dava em Angola: para chegar a Portugal e à Europa, então, a África passava pelo Brasil. O texto mostra também um pouco da vida e dos costumes da Bahia na época e muito da altivez, da elegância e do profissionalismo do embaixador de Angome, que recusa as mordomias e facilidades postas à sua disposição pelo Conde de Atouguia, para melhor se concentrar na sua missão.
Obs: 1) A dica sobre esta “Relação” foi-me dada pelo jornalista Márcio Moreira Alves.
2) Para facilitar a leitura, usou-se aqui a ortografia atual brasileira. Conservou-se a pontuação original, já que ela não prejudicava a compreensão do texto.
Sendo África uma das três partes do antigo mundo, há tantos séculos notória aos Cosmógrafos, ainda hoje os Estados da sua parte Ocidental são tão pouco conhecidos nos Mapas, como os da parte Setentrional do Mundo novo. Apenas lemos neles os nomes de alguns Rios, e Cabos, a quem a Nação Portuguesa os deu no tempo dos seus primeiros descobrimentos, e dos de alguns Reinos dos muitos em que está dividindo o domínio daquela Corte; mas com uma tal confusão, e incerteza, que se não pode falar neles sem o perigo de tropeçar em muitos erros. Entre os desconhecidos, que compreende a dilatada Província de Guiné, se numera o de Angome, que nos dá agora matéria para esta relação.
As memórias, de que a formamos, nos indicam a situação deste Reino nas vizinhanças do golfo de Benin, que não dista muito de S. Thomé, confinante pela parte do Norte com o Rio dos Bons Sinais, e com o Reino de Bonsoló, e pela do Sul com o poderoso Rei de Inhaque. Pela parte Ocidental a limita o referido Golfo, com um porto suficiente, onde tem a Cidade de Tanixuma, quarenta e duas léguas distante da sua Corte. Neste surgem com freqüência alguns navios Portugueses, dos Negociantes do Brasil, que se mandam prover de escravos, e algumas embarcações das Ilhas de S. Thomé, do Príncipe, e de Assnobom, que todas lhe ficam vizinhas.
O Rei, que actualmente domina o Estado de Angome, se chama Kiay Chiri Broncom. É amante da Nação Portuguesa, a mais antiga no trato daquela Costa; e desejando fazer um tratado de amizade e comércio com o nosso Augusto Soberano, resolveu, para lhe fazer esta proposta, mandar uma embaixada ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Conde de Atouguia, Vice-Rei do Brasil, de cujo generoso espírito e acertadas ações tinha ouvido repetidos aplausos aos nossos Navegantes. Elegeu para esta função um dos vassalos da sua maior confiança, chamado Churumá Nadir, moço de gentil presença, e de aspecto nobre, e mandando-o recolher da Campanha, onde o servia, o encarregou da execução deste projeto. Dando-lhe as instruções convenientes, o fez embarcar em um navio pertencente a Luiz Coelho morador na Bahia, de que era Capitão Manoel Luiz da Costa, o qual se achava surto no porto de Tanixuma. Ordenou que o acompanhassem por seus Gentishomens dous Alcatis, título que no seu país se dá aos que entre os mais tem distinção de nobres; cujos nomes próprios são, de um Grijocome Santolo, do outro Nenin Radix Grytonxom; para se instruírem na língua e nos costumes dos Portugueses.
Embarcou-se o Embaixador com os dous Gentishomens com um interprete da sua Nação, que sabia suficientemente a língua Portuguesa, com a sua comitiva, e com os presentes, que o seu Rei destinava para a Majestade Fidelíssima do nosso Rei, e para o Conde, seu Vice-Rey no Brasil. Fretou a câmara do navio, no qual chegaram todos com bom sucesso ao porto da Cidade do Salvador do Bahia de todos os Santos, na manhã do dia de S. Miguel, 29 de Setembro do ano 1750.
Fez o Capitão logo aviso ao Excelentíssimo Conde Vice-Rei das pessoas que trazia a seu bordo, e Sua Excelência com a prontidão possível fez todas as disposições convenientes para o Embaixador ser recebido, e alojado com as honras decentes ao Ministro de um Rei, cuja amizade é mui importante ao nosso comercio. Ajustou com os RR. PP. da Companhia de Jesus que o hospedassem no seu Colégio; e ordenou, que um Militar no seu escaler o fosse buscar a bordo, e que as Fortalezas o salvassem com a sua artilharia.
Os RR. PP. fizeram logo armar a sala, em que costumam receber os Vice-Reis da Índia, quando voltam daquele Estado, ou a outras pessoas de grande distinção; todo o teto armado de preciosas colchas, e o pavimento de finíssimas esteiras. Cadeira de espaldas magnifica, e tamboretes almofadados, tudo guarnecido de franjas. Preparam-lhe uma câmara rica em um leito de ébano, marchetado de marfim, e de tartaruga; lençóis de Holanda, entremeados, e guarnecidos de finíssimas rendas de Flandres; cobertor de tela carmesim, com franjas, e borlas correspondentes à sua riqueza, e tudo primorosamente coberto com um véu de gaza.
Chegou o Embaixador a terra no escaler de Sua Excel., desembarcou no trapiche de Fuiam, junto ao Forte de S. Francisco, que o recebeu com uma salva de toda a sua artilharia. Entrou logo em um Palanquim, que já achou pronto, e armado de boas sedas, e os dous Gentis-homens em duas cadeiras de mãos. O Embaixador é uma bem feita, e nobre figura. Trazia vestido um roupão semelhante à toga de um Desembargador com uma capa de veludo cor de nácar. Turbante com seu penacho metido em um castão de ouro, guarnecido de boas pedras. Os dous Gentishomens são moços bem feitos, e bem figurados, vestiam ao uso do seu País. Traziam quantidade de criados, e quatro raparigas de idade de 10 anos nuas ao modo da sua terra, mas bem parecidas, às quais chamam Mobandas, comitiva de que usam por grandeza.
A esta grande novidade, nunca vista no Brasil, começou a concorrer gente de toda a parte, e o Embaixador, para evitar o embaraço, que podia fazer-lhe o concurso de tanto povo, disse pelo seu intérprete aos portadores do Palanquim, e cadeirinhas, que apressassem o passo; o que eles fizeram, e chegaram com maior brevidade à portaria do Colégio, onde os PP. o esperavam , e o receberam com demonstrações de agrado, e de respeito, todas encaminhadas a insinuar-lhe quanto reconheciam a distinção do seu caráter.
Logo que o Vice-Rei soube que o Embaixador tinha chegado ao Colégio, mandou uma guarda com seu Cabo para a portaria. Os PP., que a julgavam desnecessária, persuadiram ao Embaixador que a despedisse; porém ele o não fez, dizendo que seria opor-se às disposições de Sua Excelência, e mostrar-se-lhe pouco agradecido ao seu favor, e muito menos sendo uma honra, que se lhe fazia em obséquio do seu Monarca, a quem ele representava no Brasil; e que se daria por mal servido de que a rejeitasse, e assim não podia seguir o seu conselho, como prejudicial ao respeito do seu Soberano.
Pediu este Ministro dia para a sua primeira audiência; e o Conde, valendo-se de alguns pretextos, lha diferiu até o dia 22 de Outubro; sendo o fundamento desta demora, dar-lhe ocasião para que ele e a sua comitiva ajuizassem, pela magnificência com que em parte tão distante se festejava o aniversário do nosso Soberano, qual é a grandeza deste Monarca, e quanta a veneração que os seus vassalos lhe tributam. Não haviam ainda chegado ao Brasil os ecos das vozes, com que havia sido lamentada a 31 de Julho a falta da vida do nosso Augusto Rei D. João o V, de gloriosa memória, e toda a Corte da Bahia preparava custosas galas, para mostrar nos excessos da sua despesa o empenho do seu obséquio. Queria Sua Excelência aumentar com ato tão notável a solenidade daquele dia.
Para suavizar ao Embaixador a impaciência, que sempre costumam produzir as dilações, lhe mandou o Vice-Rei dizer que podia divertir-se vendo a Cidade, e os seus contornos, as Igrejas, os Conventos, e as Fortalezas, para o que lhe ofereceu a sua Cadeira portátil, e outras para os dous Fidalgos seus companheiros. Agradeceu esta oferta com demonstrações de obrigado, dizendo, que nesta ocasião não podia aceitá-la; mas que a reservava para depois de ter a sua primeira audiência.
Intentou Sua Excelência fazer vestidos ao Embaixador, e aos dous Gentis-homens, para que no dia da Embaixada aparecessem no traje Português; e para este efeito mandou buscar a mais rica tela, o mais excelente veludo, e os melhores damascos, e brilhantes, que se puderam achar na Cidade, e lhos mandou à mostra, para que escolhessem, comunicando-lhes o para que. Não se agradou ele desta oferta, e mandou dizer que não carecia de vestidos para dar a sua Embaixada, porque deles vinha bem provido; nem ele a devia dar vestido à Portuguesa, mas ao uso de seu País, para representar o Rei, de quem era Ministro.
No meio tempo desta demora lhes dava o seu calendário uma festa, que eles, e os seus celebraram, segundo o rito Gentílico, que professam. Mataram muitas aves, e untando-se com o sangue delas, fizeram banquetes de iguarias ao seu modo: e porque não usam de vinho, nem de outras bebidas fortes, brindaram à saúde do seu Monarca, e da felicidade do seu governo, com café, e com chocolate, que o Conde Vice-Rei lhes mandava todas as manhãs.
Apareceu em fim o dia 22 de Outubro, destinado para esta grande função. Ajuntaram-se por ordem de Sua Excelência logo de madrugada, no terreiro do Colégio, de fronte do alojamento do Embaixador , todos os Regimentos de Infantaria da guarnição da Cidade, e nele se detiveram formados até as nove horas, em que desfilaram para a Praça, cada um com os seus oficiais na vanguarda, todos vestidos de gala, e depois de nela fazerem as costumadas continências, se dividiram em vários corpos, que se postaram em diferentes sítios. Achava-se o Palácio todo bem armado, o Vice-Rei debaixo de um rico dossel, assistido de todo o Corpo do Senado, e de toda a nobreza da Bahia sem se ver outra coisa mais, que vestidos ricos, e de bom gosto, tudo galhardia, tudo pompa.
Havia-se formado na Praça um navio de suficiente grandeza já de verga de alto, no qual com especiosa disposição se via um Capitão no portaló vestido de pano verde com hum alfange na mão direita, embraçando com a esquerda um broquel. O Piloto na bitácula encaminhando o rumo, os marinheiros subindo pelas enxárcias para largarem o pano, e tudo tão artificiosamente disposto, que se equivocava a vista, esperando quando levantava ferro, para se fazer à vela.
Assim como se ouviram as dez horas no relógio da Sé, expediu o Conde Vice-Rei um Sargento mor, com dous Capitães de Infantaria, a convidar o Embaixador, para vir ter a sua Audiência, mandando-lhe a sua cadeira, e outras duas para os Fidalgos, que o acompanhavam. Todos se tinham posto prontos, esperando este aviso. Estava o Embaixador vestido com um faval de tela carmesim, todo guarnecido de rendas de crespas, com uma espécie de faia como de mulher, sem cós, a que eles dão o nome de Malaya, também do mesmo estofo, todo guarnecido de franjas de seda, um sendal curto com borlas pendentes, e uma capa com uma grande cauda, como roupa Real, de tela furta-cores, forrada de cetim branco com listas de cores diferentes. Turbante magnífico, e precioso, e os borzeguins dourados. Os dous Fidalgos vestiam pela mesma moda, mas com diferença nas cores, e nos estofos. Meteram se nas cadeiras, e os seguiu a pé a sua comitiva por entre quantidade de plebe, e chegando a esquina da casa da moeda, se apearam das cadeiras, e continuaram o caminho a pé para o Palácio com os seus criados, e as quatro raparigas vestidas ao uso do seu País com lenços envoltos nas cabeças, mas sem camisas. Ao entrar na Praça começaram, com o final prevenido de um foguete, a salvá-lo o Navio que estava nela, e as Fortalezas do mar, com as descargas dos seus canhões, festejo, que o uso tem feito solene, mas horroroso; pois fere com o seu fogo os ares, e deixa com o seu estrondo magoados os ouvidos.
Entrou o Embaixador na sala com grande confiança, fazendo cortesias para uma, e outra parte, observando uma gravidade sem afetação, até chegar ao lugar, que o Conde Vice-Rei ocupava; e não distinguindo a sua pessoa entre a magnificência, que divisava em todos, perguntou pelo seu interprete qual era, e logo, sem perder a soberania do seu aspecto, o cortejou primeiro à Portuguesa com três cortesias, feitas com muito ar, e imediatamente, ao modo do seu País, prostrando-se por terra com os braços estendidos, e as mãos uma sobre outra, e trincando os dedos, como castanhetas: cerimônia com que em Angome, costumam venerar aos seus Reis; indicando-lhes deste modo o gosto com que lhes fazem esta prostração. Levantou-se, ofereceu-lhe o Vice-Rei assento, para o que preparada junto à sua, que se distinguia só em ter nela um coxim, porém ele o repugnou, dizendo que o assento se fizera para uma conversação dilatada e assim se não dava na sua Corte aos Embaixadores, cujo recado é sempre breve. Tinha o Conde Vice-Rei junto a si dous Intérpretes, um Português, que havia assistido em Angome, e um mulato filho da Mina, que falavam elegantemente a sua língua, e lhe explicavam o que dizia o Embaixador, e este falou a Sua Excelência nesta forma:
Aquele Alto, e Soberano Senhor, Monarca de todas as Nações da Gentilidade, assim as que habitam as Costas do Oceano, como as que vivem nos dilatados Sertões, de que ainda se não descobriu o fim, a quem temem os Povos de maior valor, entre os quais excede a todos o de Angome; deseja aliar-se, e tratar-se com muita amizade com o grande Senhor do Ocidente O Ínclito Rei de Portugal: e fazendo no seu Conselho eleição da minha pessoa, pela fidelidade, zelo e segredo, que em mim tem reconhecido; me fez recolher da Campanha, onde o servia, para mandar-me ao Brasil; e concedendo-me todos os poderes da Sua Real Pessoa, me ordenou faça a Vossa Excelência nesta tosca representação as asseverações do seu desejo. Por mim envia saudar a Vossa Excelência, não obstante a diferença, que a Religião tem feito entre o Cristão, e o Gentio; porque aquele Altíssimo Senhor, que, sem a mínima duvida, criou este Orbe, e a imensidade do firmamento, que os nossos olhos se apresenta, não proíbe a comunicação dos que vivem em diferentes leis, nem a paz, e a boa amizade, que tanto convém ao comércio dos viventes. Esta amizade, que deseja com a Coroa de Portugal, promete, com a palavra de Rei, observar fielmente, e na falta da Sua Pessoa, deixá-la recomendada aos Seus Sucessores. A prova da verdade das minhas expressões verá Vossa Excelência firmada com o Sinete Real da Sua grandeza.
A este tempo tirou do seio uma Carta, e a entregou ao Conde, recomendando-lhe o segredo dela; e continuou dizendo:
Receba Vossa Excelência esta representação da parte daquele grande Monarca, que o elegeu para ocupar este lugar. O Presente vem dentro do Pacote, que mandarei entregar logo a Vossa Excelência, a cujos pés ponho na presença de todo a este auditório a minha pessoa. Tenho satisfeito ao que o meu Soberano me encarregou. O segredo, que Vossa Excelência verá na sua Carta, não será público, nem manifesto, sem expressa Ordem do Seu Soberano Monarca, e do meu grande Rei de Angome.
Despediu-se com estas ultimas palavras, e com as mesmas cortesias. Foi reconduzido com igual acompanhamento ao Colégio, em que estava alojado; e chegando à Portaria, mandou dar vinte moedas de ouro aos Negros da cadeira do Vice Rei, em que tinha ido. Opunham-se os Oficiais Militares, que o acompanharam, a esta dádiva, persuadindo aos Negros a que não aceitassem; o que ele rebateu dizendo, que ninguém tinha jurisdição para limitar as ações dos Príncipes. Mandou pouco depois os presentes, que trazia do seu Rei. Estes constavam de dous caixões, chapeados de ferro, com as fechaduras lavradas, um para o nosso Augustíssimo Rei, outro para o Conde, com as quatro Negrinhas. Correu a voz de quem também fez um presente ao Conde de cem Negros para o servirem. Pode ter se equivocasse o vulgo com a carregação do Navio, em que Embaixador veio de Angome.
Sem embargo da permissão, que o Conde Vice-Rei lhe havia concedido, para ver a Cidade, e as cousas que nela há de mais grandeza, se não aproveitou o Embaixador dela, antes da sua primeira audiência. Depois o fez acompanhado de um Ajudante, e quatro Sargentos, que o Vice-Rei mandou para lhe assistirem, e mostrarem as Fortalezas, Conventos, Igrejas, e tudo o que há mais digno de curiosidade. Em alguns Conventos se lhe ofereceram refrescos. Observou-se que apresentando-lhe o Guardião de um dos Franciscanos vinho, e doce, o não aceitou dizendo, que nunca o bebera. Não se divulgou nunca, nem o que a Carta continha, nem o que os caixões encerravam. Correu em Lisboa que chegara da Bahia um dos caixões para Sua Majestade, e três Negrinhas. Esperamos notícias mais amplas do Estado deste Rei, e do comércio, que nele se pode fazer, para satisfazermos o desejo dos curiosos da História, e da Geografia.
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