Sobre a escravidão. Texto à Constituinte. José Bonifácio (1823)
1823
(*) O título oficial deste texto é "Representaçãoà Assembleía Constituinte e Geral do Império do Brasil". No texto original, após a justificativa, que se publiuca abaixo, seguem-se os 32 artigos do projeto apresentado na Constituinte de 1823. Embora não proponha a abolição imediata da escravidão no país, mas uma transição planejada para o trabalho livre, o autor mete o dedo na ferida. Faz uma denúncia vigorosa e uma análise profunda da escravidão, mostrando como ela envenenava moralmente o país e impedia seu progresso. O texto deixa claro que a parcela mais lúcida da elite brasileira sabia perfeitamente que era necessário cortar o nó górdio. Disso dependia a construção da Nação. Mas a abolição foi retardada por quase um século. Perdemos o século XIX.
O projeto de José Bonifácio jamais chegou a ser votado. A Constituinte foi dissolvida por Pedro I sete meses depois de instalada e José Bonifácio, exilado. Retornaria ao Brasil em 1829, mas sem exercer a influência dos primeiros momentos da Independência. O texto integral apresentado à Constituinte, que inclui os artigos do projeto, pode ser consultado no livro “Projetos para o Brasil”, de José Bonifácio de Andrada e Silva, editado na coleção “Retratos do Brasil”, pela Companhia das Letras, em 1998. As notas abaixo são da organizadora da edição mencionada, Miriam Dolhnikoff, ou do próprio José Bonifácio.
Chegada a época feliz da regeneração política da nação brasileira, e devendo todo cidadão honrado e instruído concorrer para tão grande obra, também eu me lisonjeio que poderei levar ante à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa algumas idéias, que o estudo e a experiência têm em mim excitado e desenvolvido.
Como cidadão livre e deputado da nação dois objetos me parecem ser, fora a Constituição, de maior interesse para a prosperidade futura deste império. O primeiro é um novo regulamento para promover a civilização geral dos índios do Brasil, que farão com o andar do tempo inúteis os escravos, cujo esboço já comuniquei a esta Assembléia. Segundo, uma nova lei sobre o comércio da escravatura, e tratamento dos miseráveis cativos. Este assunto faz o objeto da atual representação. Nela me proponho mostrar a necessidade de abolir o tráfico da escravatura, de melhorar a sorte dos atuais cativos, e de promover a sua progressiva emancipação.
Quando verdadeiros cristãos e filantropos levantaram a voz pela primeira vez em Inglaterra contra o tráfico de escravos africanos, houve muita gente interesseira ou preocupada, que gritou ser impossível ou impolítica semelhante abolição, porque as colônias britânicas não podiam escusar um tal comércio sem uma total destruição: todavia passou o Bill,(1) e não se arruinaram as colônias. Hoje em dia que Wilberforces e Buxtons (2) trovejam de novo no Parlamento a favor da emancipação progressiva dos escravos, agitam-se outra vez os inimigos da humanidade como outrora; mas espero da justiça e generosidade do povo inglês, que se conseguirá a emancipação, como já se conseguiu a abolição de tão infame tráfico. E por que os brasileiros somente continuarão a ser surdos aos gritos da razão, e da religião cristã, e direi mais, da honra e brio nacional? Pois somos a única nação de sangue europeu que ainda comercia clara e publicamente em escravos africanos.
Eu também sou cristão e filantropo; e Deus me anima para ousar levantar a minha fraca voz no meio desta augusta Assembléia a favor da causa da justiça, e ainda da sã política, causa a mais nobre e santa, que pode animar corações generosos e humanos. Legisladores, não temais os urros do sórdido interesse: cumpre progredir sem pavor na carreira da justiça e da regeneração política; mas todavia cumpre que sejamos precavidos e prudentes. Se o antigo despotismo foi insensível a tudo, assim lhe convinha ser por utilidade própria: queria que fôssemos um povo mesclado e heterogêneo, sem nacionalidade, e sem irmandade, para melhor nos escravizar. Graças aos céus, e à nossa posição geográfica, já somos um povo livre e independente. Mas como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutais e inimigos? Comecemos pois desde já esta grande obra pela expiação de nossos crimes e pecados velhos. Sim, não se trata somente de sermos justos, devemos ser penitentes; devemos mostrar à face de Deus e dos outros homens que nos arrependemos de tudo o que nesta parte temos obrado há séculos contra a justiça e contra a religião, que nos bradam acordes que não façamos aos outros o que queremos que não nos façam a nós. É preciso pois que cessem de uma vez os roubos, incêndios, e guerras que fomentamos entre os selvagens da África. É preciso que não venham mais a nossos portos milhares e milhares de negros, que morriam abafados no porão dos nossos navios, mais apinhados que fardos de fazenda: é preciso que cessem de uma vez todas essas mortes e martírios sem conta, com que flagelávamos e flagelamos ainda esses desgraçados em nosso próprio território. É tempo pois, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bárbaro e carniceiro; é tempo que vamos acabando gradualmente até os últimos até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar em poucas gerações uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes. É da maior necessidade ir acabando tanta heterogeneidade física e civil; cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto, que se não esfarele ao pequeno toque de qualquer nova convulsão política. Mas que ciência química, e que desteridade não são precisas aos operadores de tão grande e difícil manipulação? Sejamos pois sábios e prudentes, porém constantes sempre.
Com efeito, Senhores, nação nenhuma talvez pecou mais contra a humanidade do que a portuguesa, de que fazíamos outrora parte. Andou sempre devastando não só as terras da África e da Ásia, como disse Camões, mas igualmente as do nosso país (3). Foram os portugueses os primeiros que, desde o tempo do infante d. Henrique, fizeram um ramo de comércio legal de prear homens livres, e vendê-los como escravos nos mercados europeus e americanos. Ainda hoje perto de quarenta mil criaturas humanas são anualmente arrancadas da África, privadas de seus lares, de seus pais, filhos e irmãos, transportadas às nossas regiões, sem a menor esperança de respirarem outra vez os pátrios ares, e destinadas a trabalhar toda vida debaixo do açoite cruel de seus senhores, elas, seus filhos, e os filhos de seus filhos para todo o sempre!
Se os negros são homens como nós, e não formam uma espécie de brutos animais; se sentem e pensam como nós, que quadro de dor e de miséria não apresentam eles à imaginação de qualquer homem sensível e cristão? Se os gemidos de um bruto nos condoem, é impossível que deixemos de sentir também certa dor simpática com as desgraças e misérias dos escravos; mas tal é o efeito do costume, e a voz da cobiça, que vêem homens correr lágrimas de outros homens, sem que estas lhes espremam dos olhos uma só gota de compaixão e de ternura. Mas a cobiça não sente nem discorre como a razão e a humanidade. Para lavar-se pois das acusações que merecia, lançou sempre mão, e ainda agora lança de mil motivos capciosos, com que pretende fazer a sua apologia: diz que é um ato de caridade trazer escravos da África, porque assim escapam esses desgraçados de serem vítimas de despóticos régulos; diz igualmente que, se não viessem esses escravos, ficariam privados da luz do evangelho, que todo cristão deve promover, e espalhar: diz que esses infelizes mudam de um clima e país ardente e horrível para outro, doce, fértil e ameno; diz por fim que, devendo os criminosos e prisioneiros de guerra (ser) mortos imediatamente pelos seus bárbaros costumes, é um favor, que se lhes faz, comprá-los, para lhes conservar a vida, ainda que seja em cativeiro.
Homens perversos e insensatos! Todas essas razões apontadas valeriam alguma coisa, se vós fósseis buscar negros à África para lhes dar liberdade no Brasil, e estabelecê-los como colonos; mas perpetuar a escravidão, fazer esses desgraçados mais infelizes do que seriam, se alguns fossem mortos pela espada da injustiça, e até dar azos certos para que se perpetuem tais horrores, é decerto um atentado manifesto contra as leis eternas da justiça e da religião. E por que continuaram e continuam a ser escravos os filhos desses africanos? Cometeram eles crimes? Foram apanhados em guerra? Mudaram de clima mau para outro melhor? Saíram das trevas, do paganismo para a luz do evangelho? Não por certo, e todavia seus filhos, e filhos desses filhos, devem, segundo vós, ser desgraçados para todo o sempre. Fala pois contra vós a justiça e a religião, e só vos podeis escorar no bárbaro direito público das antigas nações, e principalmente na farragem das chamadas l leis romanas; com efeito , os apologistas da escravidão escudam-se com os gregos, e romanos, sem advertirem que entre os gregos e os romanos não estavam ainda bem desenvolvidos e demonstrados os princípios eternos do direito natural, e os divinos preceitos da religião; e todavia como os escravos de então eram da mesma cor e origem dos senhores, e igualmente tinham a mesma, ou quase igual, civilização que a de seus amos, sua indústria, bom comportamento, e talentos os habilitavam facilmente a merecer o amor de seus senhores, e a consideração de outros homens; o que de nenhum modo pode acontecer em regra aos selvagens africanos.
Se ao menos os senhores de negros no Brasil tratassem esses miseráveis com mais humanidade, eu certamente não escusaria, mas ao menos me condoeria da sua cegueira e injustiça; porém o habitante livre do Brasil, e mormente o europeu, é não só, pela maior parte, surdo às vozes da justiça, e aos sentimentos do evangelho, mas até é cego aos seus próprios interesses pecuniários, e à felicidade doméstica da família.
Com efeito, imensos cabedais saem anualmente deste império para África; e imensos cabedais se amortizam dentro deste vasto país, pela compra de escravos, que morrem, adoecem, e se inutilizam, e demais pouco trabalham. Que luxo inútil de escravatura também não apresentam nossas vilas e cidades, que sem ele poderiam limitar-se a poucos e necessários criados? Que educação podem ter as famílias, que se servem destes entes infelizes, sem honra, nem religião? De escravas, que se prostituem ao primeiro que as procura? Tudo porém se compensa nesta vida; nós tiranizamos os escravos, e os reduzimos a brutos animais, e eles nos inoculam toda a sua imoralidade, e todos os seus vícios.
E na verdade, senhores, se a moralidade e a justiça social de qualquer povo se fundam, parte nas suas instituições religiosas e políticas, e parte na filosofia, para dizer assim, doméstica de cada família, que quadro pode apresentar o Brasil, quando o consideramos debaixo destes dois pontos de vista? Qual é a religião que temos, apesar da beleza e santidade do evangelho, que dizemos seguir? A nossa religião é pela maior parte um sistema de superstições e de abusos anti-sociais; o nosso clero, em muita parte ignorante e corrompido, é o primeiro que se serve de escravos, e os acumula para enriquecer pelo comércio, e pela agricultura, e para formar, muitas vezes, das desgraçadas escravas um harém turco. As famílias não têm educação, nem a podem ter com o tráfico de escravos, nada as pode habituar a conhecer e amar a virtude, e a religião. Riquezas e mais riquezas gritam os nossos pseudo-estadistas, os nossos compradores e vendedores de carne humana; os nossos sabujos eclesiásticos; os nossos magistrados, se é que se pode dar um tão honroso título a almas, pela maior parte, venais, que só empunham a vara da justiça para oprimir desgraçados, que não podem satisfazer à sua cobiça, ou melhorar a sua sorte. E então, senhores, como pode grelar a justiça e a virtude, e florescerem os bons costumes entre nós? Senhores, quando me emprego nestas tristes considerações, quase que perco de todo as esperanças de ver o nosso Brasil um dia regenerado e feliz, pois que se me antolha que a ordem das vicissitudes humanas está de todo invertida no Brasil. O luxo e a corrupção nasceram entre nós antes da civilização e da indústria; e qual será a causa principal de um fenômeno tão espantoso? A escravidão, senhores, a escravidão, porque o homem, que conta com os jornais de seus escravos, vive na indolência, e a indolência traz todos os vícios após si.
Diz porém a cobiça cega que os escravos são precisos no Brasil, porque a gente dele é frouxa e preguiçosa. Mentem por certo. A província de S. Paulo, antes da criação dos engenhos de açúcar, tinha poucos escravos, e todavia crescia anualmente em povoação e agricultura, e sustentava de milho, feijão, farinha, arroz, toucinhos, carnes de porco etc. a muitas outras províncias marítimas e interiores. Mas conceda-se (caso negado) que com efeito a gente livre do Brasil não pode com tantos trabalhos aturados da lavoura, como na Europa, pergunto, se produzindo o milho, por exemplo em Portugal nas melhores terras quarenta por um, e no Brasil acima de duzentos, e as mais sementeiras à proporção; e estando ás horas do trabalho necessário da lavoura na razão inversa do produto da mesma; para que se precisa de maior robustez e trabalhos mais aturados? Os lavradores da Índia são porventura mais robustos do que um branco, um mulato, um cabra do Brasil? Não por certo, e todavia não morre aquele povo de fome. E porque eles não têm escravos africanos, deixam as suas terras de ser agriculturadas, e o seu país um dos mais ricos do globo, apesar de sua péssima religião e governo, e da impolítica infernal da divisão em castas?
Hoje em dia a cultura dos canaviais e o fabrico do açúcar têm crescido prodigiosamente, cujo produto já rivaliza nos mercados públicos da Europa com o do Brasil e ilhas do golfo do México.
Na Cochinchina não há escravos, e todavia a produção e exportação do açúcar já montava em 1750, segundo nos diz o sábio Poivre (3), a quarenta mil pipas de duas mil libras cada uma, e o seu preço era baratíssimo no mercado: ora, advirta-se que todo este açúcar vinha de um pequeno país sem haver necessidade de estragar matas e esterilizar terrenos, como desgraçadamente entre nós está sucedendo.
Demais, uma vez que acabe o péssimo método da lavoura de destruir matas e esterilizar terrenos em rápida progressão, e se forem introduzindo os melhoramentos da cultura européia, decerto com poucos braços, a favor dos arados e outros instrumentos rústicos, a agricultura ganhará pés diariamente, as fazendas serão estáveis, e o terreno, quanto mais trabalhado, mais fértil ficará. A natureza próvida, e sábia em toda e qualquer parte do globo, dá os meios precisos aos fins da sociedade civil, e nenhum país necessita de braços estranhos e forçados para ser rico e cultivado.
Além disto, a introdução de novos africanos no Brasil não aumenta a nossa população, e só serve de obstar a nossa indústria. Para provar a primeira tese bastará ver com atenção o censo de cinco ou seis anos passados, e ver-se-á que apesar de, entrarem no Brasil, como já disse, perto de quarenta mil escravos anualmente, o aumento desta classe é ou nulo, ou de mui pouca monta: quase tudo morre ou de miséria, ou de desesperação, e todavia custaram imensos cabedais, que se perderam para sempre, e que nem sequer pagaram o juro do dinheiro empregado.
Para provar a segunda tese, que a escravatura deve obstar a nossa indústria, basta lembrar que os senhores que possuem escravos vivem, em grandíssima parte, na inércia, pois não se vêem precisados pela fome ou pobreza a aperfeiçoar sua indústria, ou melhorar sua lavoura. Demais, continuando a escravatura a ser empregada exclusivamente na agricultura, e nas artes, ainda quando os estrangeiros pobres venham estabelecer-se no país, em pouco tempo, como mostra a experiência, deixam de trabalhar na terra com seus próprios braços e, logo que podem ter dois ou três escravos, entregam-se à vadiação e desleixo, pelos caprichos de um falso pundonor. As artes não se melhoram; as máquinas, que poupam braços, pela abundância extrema de escravos nas povoações grandes, são desprezadas. Causa raiva, ou riso, ver vinte escravos ocupados em transportar vinte sacos de açúcar, que podiam conduzir uma ou duas carretas bem construídas com dois bois ou duas bestas muares.
A lavoura do Brasil, feita por escravos boçais e preguiçosos, não dá os lucros, com que homens ignorantes e fantásticos se iludem. Se calcularmos o custo atual da aquisição do terreno, os capitais empregados nos escravos que o devem cultivar, o valor dos instrumentos rurais com que deve trabalhar cada um destes escravos (5), sustento e vestuário, moléstias reais e afetadas, e seu curativo, as mortes numerosas, filhas do mau tratamento e da desesperação, as repetidas fugidas aos matos, quilombos, claro fica que o lucro da lavoura deve ser mui pequeno no Brasil, ainda apesar da prodigiosa fertilidade de suas terras, como mostra a experiência.
No Brasil a renda dos prédios rústicos não depende da extensão e valor do terreno, nem dos braços que o cultivam, mas sim da mera indústria e inteligência do lavrador. Um senhor de terras é de fato pobríssimo, se pela sua ignorância ou desmazelo não sabe tirar proveito da fertilidade de sua terra, e dos braços que nela emprega. Eu desejara, para bem seu, que os possuidores de grande escravatura conhecessem que a proibição do tráfico de carne humana os fará mais ricos; porque seus escravos atuais virão a ter então mais valor, e serão por interesse seu mais bem tratados; os senhores promoverão então os casamentos, e estes a população. Os forros aumentados, para ganharem a vida, aforarão pequenas porções de terras descobertas ou taperas, que hoje nada valem. Os bens rurais serão estáveis, e a renda da terra não se confundirá com a do trabalho e indústria individual.
Não só estes males particulares que traz consigo a grande escravatura no Brasil, o Estado é ainda mais prejudicado. Se os senhores de terras não tivessem uma multidão demasiada de escravos, eles mesmos aproveitariam terras já abertas e livres de matos, que hoje jazem abandonadas como maninhas. Nossas matas preciosas em madeiras de construção civil e náutica não seriam destruídas pelo machado assassino do negro, e pelas chamas devastadoras da ignorância. Os cumes de nossas serras, fonte perene de umidade e fertilidade para as terras baixas, e de circulação elétrica, não estariam escalvados e tostados pelos ardentes estios do nosso clima. É pois evidente que, se a agricultura se fizer com os braços livres dos pequenos proprietários, ou por jornaleiros, por necessidade e interesse serão aproveitadas essas terras, mormente nas vizinhanças das grandes povoações, onde se acha sempre um mercado certo, pronto e proveitoso, e deste modo se conservarão, como herança sagrada para nossa posteridade, as antigas matas virgens, que pela sua vastidão e frondosidade caracterizam o nosso belo país.
É de espantar pois que um tráfico tão contrário às leis da moral humana, e às santas máximas do evangelho, e até contra as leis de uma sã política, dure há tantos séculos entre homens que se dizem civilizados e cristãos! Mentem, nunca o foram.
A sociedade civil tem por base primeira a justiça, e por fim principal a felicidade dos homens; mas que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem, e o que é pior, dos filhos deste homem, e dos filhos destes filhos? Mas dirão talvez que se favorecerdes a liberdade dos escravos será atacar a propriedade. Não vos iludais, senhores, a propriedade foi sancionada para bem de todos, e qual é o bem que tira o escravo de perder todos os seus direitos naturais, e se tornar de pessoa a coisa, na frase dos jurisconsultos? Não é pois o direito de propriedade, que querem defender, é o direito da força, pois que o homem, não podendo ser coisa, não pode ser objeto de propriedade. Se a lei deve defender a propriedade, muito mais deve defender a liberdade pessoal dos homens, que não pode ser propriedade de ninguém, sem atacar os direitos da providência, que fez os homens livres, e não escravos; sem atacar a ordem moral das sociedades, que é a execução estrita de todos os deveres prescritos pela natureza, pela religião, e pela sã política: ora, a execução de todas estas obrigações é o que constitui a virtude; e toda legislação, e todo governo (qualquer que seja a sua forma) que a não tiver por base, é como a estátua de Nabucodonosor, que uma pedra desprendida da montanha a derribou pelos pés; é um edifício fundado em areia solta, que a mais pequena borrasca abate e desmorona.
Gritam os traficantes de carne humana contra os piratas barbarescos, que cativam por ano mil, ou dois mil brancos, quando muito; e não gritam contra dezenas de milhares de homens desgraçados, que arrancamos de seus lares, eternizando em dura escravidão toda a sua geração. Não basta responder que os compramos com o nosso dinheiro; como se o dinheiro pudesse comprar homens! _ como se a escravidão perpétua não fosse um crime contra o direito natural, e contra as leis do evangelho, como disse. As leis civis, que consentem estes crimes, são não só culpadas de todas as misérias, que sofre esta porção da nossa espécie, e de todas as mortes e delitos que cometem os escravos, mas igualmente o são de todos os horrores, que em poucos anos devem produzir uma multidão imensa de homens desesperados, que já vão sentindo o peso insuportável da injustiça, que os condena a uma vileza e miséria sem fim.
Este comércio de carne humana é pois um cancro que rói as entranhas do Brasil, comércio, porém, que hoje em dia já não é preciso para aumento da sua agricultura e povoação, uma vez que, por sábios regulamentos, não se consinta a vadiação dos brancos, e outros cidadãos mesclados, e a dos forros; uma vez que os muitos escravos, que já temos, possam, às abas de um governo justo, propagar livre e naturalmente com as outras classes, uma vez que possam bem criar e sustentar seus filhos, tratando-se esta desgraçada raça africana com maior cristandade, até por interesse próprio; uma vez que se cuide enfim na emancipação gradual da escravatura, e se convertam brutos imorais em cidadãos úteis, ativos e morigerados.
Acabe-se pois de uma vez o infame tráfico da escravatura africana; mas com isto não está tudo feito; é também preciso cuidar seriamente em melhorar a sorte dos escravos existentes, e tais cuidados são já um passo dado para a sua futura emancipação.
As leis devem prescrever estes meios, se é que elas reconhecem que os escravos são homens feitos à imagem de Deus. E se as leis os consideram como objetos de legislação penal, por que o não serão também da proteção civil?
Torno a dizer porém que eu não desejo ver abolida de repente a escravidão; tal acontecimento traria consigo grandes males. Para emancipar escravos sem prejuízo da sociedade, cumpre fazê-los primeiramente dignos da liberdade: cumpre que sejamos forçados pela razão e pela lei a convertê-los gradualmente de vis escravos em homens livres e ativos. Então os moradores deste Império, de cruéis que são em grande parte neste ponto, se tornarão cristãos e justos, e ganharão muito pelo andar do tempo, pondo em livre circulação cabedais mortos, que absorve o uso da escravatura: livrando as suas famílias de exemplos domésticos de corrupção e tirania; de inimigos seus e do Estado; que hoje não têm pátria, e que podem vir a ser nossos irmãos, e nossos compatriotas.
O mal está feito, senhores, mas não o aumentemos cada vez mais; ainda é tempo de emendar a mão. Acabado o infame comércio de escravatura, já que somos forçados pela. razão política a tolerar a existência dos atuais escravos, cumpre em primeiro lugar favorecer a sua gradual emancipação, e antes que consigamos ver o nosso país livre de todo deste cancro, o que levará tempo, desde já abrandemos o sofrimento dos escravos, favoreçamos, e aumentemos, todo os seus gozos domésticos e civis; instruamo-los no fundo da verdadeira religião de Jesus Cristo, e não em momices e superstições: por todos estes meios nós lhes daremos toda a civilização de que são capazes no seu desgraçado estado, despojando-os o menos que pudermos da dignidade de homens e cidadãos. Este é não só o nosso dever mas o nosso maior interesse, porque só então conservando eles a esperança de virem a ser um dia nossos iguais em direitos, e começando a gozar desde já da liberdade e nobreza de alma, que só o vício é capaz de roubar-nos, eles nos servirão com fidelidade e amor; de inimigos se tornarão nossos amigos e clientes. Sejamos pois justos e benéficos, senhores, e sentiremos dentro da alma que não há situação mais deliciosa que a de um senhor carinhoso e humano, que vive sem medo e contente no meio de seus escravos, como no meio da sua própria família, que admira e goza do fervor com que estes desgraçados adivinham seus desejos, e obedecem a seus mandos, observa com júbilo celestial o como maridos e mulheres, filhos e netos, sãos e robustos, satisfeitos e risonhos, não só cultivam suas terras para enriquecê-lo, mas vêm voluntariamente oferecer-lhe até as premissas dos frutos de suas terrinhas, de sua caça e pesca, como a um Deus tutelar. É tempo pois que esses senhores bárbaros, que por desgraça nossa ainda pululam no Brasil, ouçam os brados da consciência e da humanidade, ou pelo menos o seu próprio interesse, senão, mais cedo do que pensam, serão unidos das suas injustiças, e da sua incorrigível barbaridade.
Eu vou, finalmente, senhores, apresentar-vos os artigos, que podem ser objeto da nova lei que requeiro: discuti-os, emendai-os, ampliai-os segundo a vossa sabedoria e justiça. Para eles me aproveitei da legislação dos dinamarqueses e espanhóis, e mui principalmente da legislação de Moisés, que foi o único, entre os antigos, que se condoeu da sorte miserável dos escravos, não só por humanidade, que tanto reluz nas suas instituições, mas também pela sábia política de não ter inimigos caseiros, mas antes amigos, que pudessem defender o novo Estado dos hebreus, tomando as armas, quando preciso fosse, a favor de seus senhores, como já tinham feito os servos do patriarca Abraão antes dele.”
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(1) Bill: referência ao Ato de 2 de março de 1807, aprovado pelo Parlamento britânico, que aboliu o tráfico negreiro realizado por súditos ingleses.
(2) William Wilberforce (1759-1833) e Sir Thomas Fowell Buxton (1786-1845): membros do Parlamento inglês, que tiveram importante papel na aprovação de leis antiescravistas.
(3) Leia-se com atenção o eloqüentíssimo e veemente sermão do padre Vieira da 11 Dominga da Quaresma que foi o primeiro pregado em São Luís do Maranhão em 1653, t.12, p. 316 e seguintes. Leiam-se também outras obras do mesmo autor sobre esta matéria, e aplique-se ao cativeiro dos negros. (Nota de José Bonifácio.)
(4) Pierre Poivre (1719-86): viajante e naturalista francês, autor da Viagem de um filósofo (1778).
(5) Por exemplo, vinte escravos de trabalho necessitam de vinte enxadas, que todas se poupariam com um só arado. (Nota de José Bonifácio.)
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