Vai comecar a campanha civilista. Rui Barbosa (1909)
19.05.1909
No primeiro semestre de 1909, o presidente da República, Afonso Pena, escolheu para sucedê-lo o ministro da Guerra, marechal Hermes da Fonseca. Nas condições da época, a indicação equivalia a uma nomeação, já que o sistema eleitoral vigente na República Velha praticamente garantia a vitória do candidato ungido pelo poder. Nos pleitos anteriores, quando muito, o segundo colocado obtivera 10% da votação do vitorioso. O nome de Hermes da Fonseca surgiu como uma tentativa de superar a divisão das elites, que não conseguiram se unir em torno de um político civil. Rui Barbosa preferia outra alternativa: o Barão do Rio Branco, que não participava do jogo político e estava acima das disputas entre as oligarquias regionais. Indicado Hermes da Fonseca e afastada a possibilidade de um acordo em torno de Rio Branco, Rui Barbosa lançou-se, ele próprio, candidato, empunhando a bandeira “civilista” e criticando a entrega do comando do país a um chefe militar. Seria derrotado por 403.867 votos a 222.822, mas a República Velha assistiria a uma campanha eleitoral digna desse nome, a primeira de sua curta história. Na carta abaixo, Rui dá a dois senadores as razões da sua oposição à candidatura Hermes e lança as bases para a cruzada civilista. Rio, 19 de maio de 1909 Srs. Senadores F. Glicério e A. Azeredo Meus caros amigos, Considerei toda esta noite no assunto que ontem de tarde me vieram submeter, e sobre o qual lhes requeri essas horas de reflexão. Um grupo dos nossos mais eminentes chefes políticos, depois de uma deliberação celebrada anteontem, oferecera ao ilustre Marechal Hermes da Fonseca a presidência da República; e S. Exa respondera, declarando que aceitaria, sob a condição de anuirmos o Barão do Rio Branco e eu. Sobremodo me honram os termos em que o honrado Marechal pôs a questão. Mas a natureza dela exige que eu lhe responda, sobrepondo-me às impressões do meu desvanecimento. Nem de outro modo guardaria, à confiança com que fui distinguido, a lealdade que lhe devo. Bem antigas são as relações de mútuo afeto entre mim e o Marechal Hermes. Datam elas da fundação da República no Brasil. Naquela época, naturalmente assinalada pelo desequilíbrio e pelas ambições, vi sempre destacar-se, entre os parentes e amigos de Deodoro, um tipo que me chamava a atenção e me cativava a simpatia pela sua discrição, pela sua modéstia, pelo seu desinteresse, pela sua severidade precoce, pela correção da sua atitude civil e do seu porte militar. Era o jovem oficial, a quem não conheci nunca uma pretensão, nem soube jamais envolvido numa intriga. Dir-se-ia que da sua consangüinidade próxima com o chefe do Estado se não lembrava ele, senão para ser o tipo de virtudes não comuns. Elas atraíram e fixaram até hoje a minha estima, que as suas manifestações de apoio, em momentos de grave perigo meu durante os períodos tumultuosos do regime, elevaram ao grau de amizade verdadeira e reconhecida. Muito me prezava e prezo de a cultivar. A alta consideração com que agora mesmo me obsequia dá-me um sinal mais da sua benevolência para comigo e aumenta para com ele o débito da minha gratidão. A luz, pois, dos meus sentimentos pessoais, a sua presidência seria, para mim, o Governo do País por um amigo de provada afeição e inquebrantável firmeza. A farda, que ele veste, não constitui objeção ao exercício de servir ao País nesse posto, uma vez que ele se não confira ao militar, mas ao cidadão. Há, e tem havido, nas duas Câmaras, do Congresso, oficiais do nosso Exército que professam ativamente a política de um modo mais ou menos brilhante. Habilitados assim como o tirocínio e a experiência de homens de Estado, nada se oporia que ocupassem a direção do Governo, onde entrariam até a certos respeitos, com vantagens sobre nós outros, pelo conhecimento mais direto de um serviço, a cuja perfeição está ligado um dos maiores interesses da Nação: o da sua respeitabilidade e defesa militar. Assim, que, se o honrado Marechal saísse do Congresso, do seio de um partido, ou de um passado político para a situação do Chefe do Poder Executivo, o fato seria natural, e a sua candidatura teria sido acolhida com o meu imediato assentimento. Mas bem diversas me parecem as circunstâncias, que a caracterizam, e eu não a posso apreciar, sem rememorá-las. A situação atual, onde essa candidatura tem origem, resulta do afinco do Sr. Presidente da República no seu erro de dezembro do ano passado. Eu lho demonstrei então na minha carta de 16 desse mês, que S. Exa me agradeceu com expressões cativantes; demonstrei-lho com palavras e predições, que os sucessos de agora acabam de confirmar ponto por ponto. Excluindo-me do número dos pretendentes, e discutindo assim a matéria com a maior isenção, supliquei, àquele a quem dera sobejas provas de minha amizade, que deixasse livre ao País a escolha do Chefe da Nação, observando-lhe não faltarem à República homens idôneos, para suceder na cadeira presidencial. Terminava esse documento, assegurando que de tal erro os seus autores só colheriam "contratempos e decepções incalculáveis". Aconselhando, enfim a S. Exa que se abstivesse "dessa responsabilidade inútil e funesta", terminava eu dizendo-lhe: "Ela lhe amargurará os seus dois últimos anos de administração, reservando ao seu sucessor dias ainda piores, depois de semear nos costumes do regime um exemplo, cujas conseqüências desacreditarão e arruinarão irremediavelmente o nosso sistema de governo". Se o Dr. Afonso Pena reler hoje a minha carta de 16 de dezembro, e comparar as suas profecias e os seus conselhos com as vozes dos que o acoroçoaram a não ceder, verá onde estava a sinceridade, a verdade, a amizade. Aferrenhando-se, porém, S. Exa na sua resolução, conhecida, como para logo ficou, a sua lamentável irredutibilidade, que é o que cumpria aos responsáveis pela direção das coisas políticas? Claro está que organizar logo e logo a resistência em torno de uma candidatura capaz de contrastar com a oficial. Quando não, ao Governo tenaz no seu abuso iríamos deixar a vantagem irrecuperável de todo o tempo que perdêssemos. Ora, foi justamente o que se fez. Decorreram folgadamente cinco meses, aproveitados em organizar a cabala entre os Estados, a benefício dessa pretensão desastrosa. Quando, afinal, acordamos, viu-se que a candidatura oficial estava morta, não nas entranhas maternas, mas na cabeça olímpica do seu progenitor, donde havia mais de meia gestação que se aguardava o surto da nova divindade misteriosa. As rivalidades, os interesses, os enredos políticos, haviam consumado, entretanto, as suas devastações habituais; e, quando os chefes se congregam agora, a fim de se concertarem todos sobre um nome, que se indique aos votos da Nação, para lhe tomar o leme do governo daqui a ano e meio, não encontram ninguém, a cujo respeito se possa estabelecer, ao menos, uma decisiva maioria. Ninguém... Pois Mato Grosso não tem o Sr. Joaquim Murtinho? O Rio Grande do Sul, o Sr. Pinheiro Machado, o Sr. Borges de Medeiros, o Sr. Carlos Barbosa? Santa Catarina, o Sr. Lauro Müller? S. Paulo, o Sr. Rodrigues Alves, o Sr. Campos Sales, o Sr. Bernardino de Campos, o Sr. Francisco Glicério, o Sr. Albuquerque Lins e o Sr. Antônio Prado? Minas, o Sr. Bias Fortes e o Sr. Francisco Sales? O Rio de Janeiro, o Sr. Quintino Bocaiúva e o Sr. Nilo Peçanha? A Bahia, o Sr. José Marcelino, o Sr. Severino Vieira, o Sr. Araújo Pinho e o Sr. Seabra? Pernambuco, o Sr. Rosa e Silva? O Brasil, o Sr. Barão do Rio Branco? Este nome, apresentei-o eu, ultimamente, como a solução nacional. E era. Um nome universal; uma reputação imaculada; uma glória brasileira; serviços incomparáveis; popularidade sem rival; qualidades raras; o hábito de ver os interesses nacionais do alto, acima do horizonte visual dos partidos, extremoso patriotismo; ardente ambição de grandes ações; imunidade a ressentimentos políticos, dos quais teve a fortuna de se preservar; uma entidade, em suma, a todos os respeitos singular para a ocasião, para o caso, para a solução providencial do problema. Era uma candidatura, que seria recebida nos braços da Nação levada por ela em triunfo à presidência. Depois, além de ter por si a opinião nacional de a ter manifesta e indubitavelmente, era natural que merecesse deveras o beneplácito do Presidente, visto que se não ia procurar nem entre adversários seus, nem sequer entre parcialidades. Ia-se buscar no próprio seio do Governo, com o pensamento especial de se lhe não magoar o melindre e a peculiaridade, estimável no entanto, de não sair da política militante. Seria, portanto, no mais eminente grau, uma candidatura de conciliação. Não logrou, porém, obter a aquiescência do Presidente, e óbvio é que, sem ela, também não poderia alcançar a do Barão do Rio Branco. E posto este de lado, não se descobriu nem um homem com as condições necessárias para satisfazer ao sentimento político dos árbitros da situação. Tiveram então que recorrer, como chave da insolúvel dificuldade, ao nome do honrado Marechal. Eu compreendo a extremidade, em que se viram os nossos amigos. Faço justiça aos seus móveis e aos seus propósitos. Aqueles certamente vinham do bem público. Estes não miram senão a nos desafogar de uma crise terrível. Crise surda, mas fatal, como a das moléstias que matam por colapso. A autoridade central está momentaneamente abolida pelas circunstâncias, uma conjuntura sem exemplo, a meu ver, na história do regime. E é nestas circunstâncias que o elemento civil delibera, por sua vez, abolir-se, tomando por último expediente possível de salvação a candidatura do Ministro da Guerra. Se na escolha não entra como razão determinante a consideração da classe, a que ele pertence, escapa ao meu entendimento o motivo da preferência, que a fez recair sobre o seu nome. Se, ao contrário, entrou, acho que laboram em engano os meus amigos. E neste terreno não me seria dado acompanhá-los. Supor que uma crise política desta natureza, puramente doméstica, sem mescla de ligação com as relações internacionais, que presentemente nos asseguram toda a tranqüilidade, não se possa resolver senão com o nome do chefe do Exército seria fazer a este grave injustiça e não menor à condição do nosso regime, à índole dos nossos costumes, aos sentimentos do nosso povo. Comecei pelo Exército, pois este é o elemento nacional representado pelo Ministro da Guerra. Qualificar a sua candidatura como a única eficaz para desmanchar o encalhe atual, seria atribuir à força de que esse elemento é expressão, o privilégio de remediar um caso de Governo. O Exército não aceitaria essa função, que lhe não cabe. Grande, é o seu poder. Mas, se lhe confrontarmos o peso material com o de uma população de vinte a vinte e cinco milhões de almas, claro está que esse poder não pode consistir senão na harmonia entre o Exército e a Nação, no prestígio em que a confiança desta envolve a classe especialmente organizada para a defesa do País. Nenhum brasileiro quer mais estremecidamente do que eu aos nossos soldados e aos nossos marinheiros. Já me bati pelos seus direitos sob o antigo regime. Feita a República, servi sob o Marechal Deodoro, e tive um lugar não pequeno no seu coração. Sua afeição não me queria deixar. Ainda às vésperas de nos separarmos, fazia ele questão de que eu o não abandonasse, quando se viesse a dissolver o primeiro Gabinete. Desde aí tive ocasião de dar à classe armada, especialmente ao Exército, sinais, duradouros até hoje, da minha devoção aos seus interesses. Nunca dificultei meios ao desenvolvimento do nosso poder militar, em terra, como no oceano. Adversário, em 1874, do alistamento militar, acabei por me render à sua necessidade. A Conferência de Haia me deu a ver o espetáculo vivo da importância das armas entre as potências reunidas para celebrar a paz. Achei, ao volver dali, o trabalho da nossa reorganização militar em plena atividade nas mãos do Marechal Hermes, e lhe dei todo o concurso da minha adesão, do meu aplauso, do meu entusiasmo. Já tinha um filho na Marinha. O outro foi dos primeiros voluntários alistados no ensaio inicial do novo sistema. Mas por isso mesmo que quero o Exército grande, forte, exemplar, não o queria pesando sobre o Governo do País. A nação governa. O Exército, como os demais órgãos do País, obedece. Nesses limites é necessário, é inestimável o seu papel; e na observância deles reside o seu segredo, a condição da sua popularidade. O Exército certamente o sabe. Não quererá outra função. A aclamação da candidatura do Ministro da Guerra seria, porém, a meu ver, um passo em sentido oposto. Deodoro saiu de uma revolução, obra sua. Cabia-lhe necessariamente presidir à fundação do regime, de cujo advento a sua espada foi a garantia. Floriano Peixoto encontrou ainda a República numa crise de organização. Mas ele mesmo já não pode alongar os seus poderes, nem indicar o seu sucessor. Daí para cá o Governo civil parecia definitivamente estabelecido. Já lá vão quatorze anos de sua existência. Por que regressarmos? A França conta hoje 38 anos de República. É um país de glórias militares. Dispõe de uma constelação de capacidades militares. Suas necessidades militares avultam dia a dia com a iminência constante do perigo internacional. E, não obstante, salvo o septenato de Mac-Mahon, justificado pela urgência da reconstituição militar do país, então esmagado pelas vitórias prussianas, nunca se interrompeu ali, até hoje, a ordem civil. Não descubro, pois, motivo, para nos resignarmos à solução, que os nossos amigos reputam inevitável. Primeiramente, ninguém lhe poderia dissimular o caráter. No Brasil e no exterior todo o mundo a olharia como a inauguração do regime militar. Nunca as nossas finanças precisaram tanto do crédito no estrangeiro, e este, convencido estou de que não resistiria ao abalo de tão grave recuo. Bem depressa, com a facilidade com que nos julgam no ultramar, estaríamos inscritos pela opinião européia e norte-americana entre as repúblicas espanholas de má nota. No interior não seria menor a desconfiança, a retração das simpatias nacionais. O País sofreria, ao mesmo tempo, interna e externamente. O carinho, como que a nação hoje estremece os órgãos da sua defesa, rapidamente degeneraria em prevenção e hostilidade. São conseqüências certas, com as quais não é o Exército que poderia lucrar. Depois nem há tal a necessidade que os nossos amigos figuram, de passarmos da medicação normal à medicação heróica. Ainda quando a candidatura oficial continuasse a nos sair em desafio, nos não faltariam meios de a rebater com altivez. Quanto mais estando hoje livre o campo desse formidável poder. Vivemos habituados os políticos nesta terra a supor que o Brasil se resume no círculo estreito onde nós nos movemos. São efeitos do costume vicioso. Seria mister que começássemos a contar com a opinião pública, o povo, a vontade nacional. Déssemos nós rebate de uma campanha séria, no intuito de manter ao País os direitos de eleger o chefe do Estado, e, ainda que os Governadores dos Estados se achassem todos contra nós, uma candidatura verdadeiramente popular, uma candidatura realmente nacional, a candidatura de um nome sério, digno benquisto, reunindo, nos Estados, todos os elementos dissidentes, e, no País, todos os da opinião, havia de se impor e prevalecer. Teríamos, talvez, então pela primeira vez, o espetáculo do povo brasileiro concorrendo efetivamente às urnas, para nomear o seu primeiro magistrado. Mas, quando o não tivéssemos, ao menos, vencidos, teríamos a conclusão de o ser com honra, o que muito mais é de que vencer sem ela, e de salvar os princípios, que se devem salvar sempre ainda quando se perca tudo o mais. A eles se acha ligada, aqui, a minha consciência e a minha tradição. Tudo o mais com prazer eu sacrificaria aos meus amigos. Isso, não; visto como é o que deles me torna digno; deles e de mim mesmo. Porque este é o juiz que eu mais respeito, abaixo d'Aquele que lá do alto nos há de julgar a todos nós. São compromissos que representam a minha vida inteira. Se eu os quebrasse, reduzir-me-ia, aos meus próprios olhos, a um trapo. Caso a vida pública me não deixasse liberdade, para os honrar, de bom grado renunciaria eu à vida pública. Nunca me envolvi na operação da escolha dos candidatos presidenciais, senão, até hoje, uma só vez, para levantar a do Presidente atual. O resultado não me anima a me envolver noutra. Mas o nome do Marechal Hermes é, para mim, um nome verdadeiramente caro. Se, para subscrever a sua apresentação, houvesse eu de atentar somente nos seus predicados pessoais e nas nossas relações, muito grato me seria firmá-la. Um dever de ordem impessoal, porém, não mo permite. E eu me submeto a este dever, abstendo-me de tomar parte nessa deliberação de meus amigos. Nada me dói mais do que não estar com eles em ato de tamanha gravidade. Mas de outra maneira não poderia eu haver, ainda quando, para me desempenhar dessa obrigação, me fosse necessário voltar a ser, na política republicana, o solitário, que fui até há seis anos. Oxalá que me engane, que os meus ilustres amigos tenham razão, que o mal antevisto por mim seja imaginário, e que, se o Governo do País couber, com efeito, ao honrado Marechal, não tenhamos senão de que nos congratular. Eu então lhe não recusarei justiça, e terei satisfação de confessar o meu erro. Creiam, meus caros amigos, na sinceridade e no reconhecimento de Seu velho e verdadeiro amigo. Rui Barbosa
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