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33.O vôo e os ruídos

31/07/1995

Franklin Martins


O vôo e os ruídos


Uma velha e triste can-ção mexicana constata-va, com espanto, que "hay muertos que no que ruído". Sempre me intrigaram esses versos. Afinal, nada mais nor-mal do que um morto guardar silêncio. Estra-nho é que ele faça baru-lho. Mas os mexicanos devem saber do que as-tão falando. Poucos po-vos possuem, como eles, tanta intimidade com a morte violenta. Os astecas, seus ances-trais, costumavam jogar futebol com a cabeça dos adversários. Apesar dis-so, eram meio Ingênuos. Confiaram nos espanhóis comandados por Cortes e foram massacrados por eles. Quase quatro sécu-los mais tarde, os des-cendentes dos índios que sobraram — e se multi-plicaram = levantaram-se clamando por terra. A revolução, liderada por Zapata e Pancho Villa, foi vitoriosa, mas cobrou um preço altíssimo em sangue. De um lado e de outro matou-se como nunca. Morreu-se como nunca também. Expe-riências como essas não se apagam na cultura de um povo. Daí, a canção. Uma coisa é morrer na cama, cercado pelos pa-rentes, com os amigos se despedindo. Pode-se par-tir de mansinho, sem maiores estardalhaços. Outra é perder a vida abruptamente, na mão de outros homens, pela espada, de tiro ou — que é inominável — de-baixo de torturas. Mor-tos como esses sempre farão barulho. Por que se calariam? Tudo isso vem a propó-sito do projeto que está sendo ultimado pelo che-fe de gabinete do minis-tro da Justiça, José Gre-gori, determinando que o Estado brasileiro reco-nheça oficialmente como mortos 136 opositores do regime militar que se en-contram desaparecidos até hoje, propondo o pa-gamento de -indenização a suas famílias e forman-do comissão para encon-trar os restos mortais das vítimas e, eventual-mente, receber novas de-núncias. O projeto não. prevê a investigação das condições em que essas pessoas foram mortas nem a responsabilização criminal dos culpados. Os fatos estariam cober-tos pela Lei da Anistia. Gregori há 20 anos era advogado de presos polí-ticos e dirigiu a Gomis, são Justiça e Paz da Ar-quidiocese de São Paulo, ativissiiina na defesa doa direitos humanos. Tem consciência que asta an-dando no fio da navalha,

num assunto delicadíssi-mo. Grupos de direitos humanos vêm criticando duramente seu projeto, taxando-o de tímido. Ja nos meios militares, a oposição é de outra natu-reza. Há o temor de que o reconhecimento oficial da morte dos 136 desapa-recidos ponha a rolar uma bola de neve e que se peça, dentro em pou-co, a cabeça dos respon-sáveis pelas coisas mais sujas da guerra suja. — Estou fazendo o que é possível. Das outras ve-zes em que se tentou fa-zer algo nessa área, o avião não decolou por excesso de peso. Ele ago-ra vai alçar vôo com aqueles que estão no to-po do sofrimento indivi-dual e no topo, também, da responsabilidade do Estado: os desaparecidos — disse Gregori esta se-mana a amigos. Cada um, porém, sabe o fardo que carrega nos ombros. Por que paren-tes e amigos de mais de duas centenas de oposi-tores políticos do regime militar mortos em con-fronto com integrantes dos órgãos de segurança ou, na maioria dos casos, sob torturas em depen-dências policiais, milita-res ou paramilitares, aceitarão que eles sejam excluídos do projeto Gre-gori? Na sexta-feira, Maria Madalena Prata Soares, viúva de José Carlos Marta Machado, que foi vice-presidente da UNE e morreu sob torturas no DOI-Codi de Recife, nu-ma madrugada de outu-bro de 1983, esteve TIO Pa-lácio do Planalto. Lá dei-xou uma carta para o Presidente Fernando Henrique em que relata as circunstâncias da morte de seu alarido e as calúnias lançadas contra ele em seguida. Madale-na pede apenas que o Es tado reconheça oficial-mente que seu marido foi morto quando estava preso porque se recusou a fornecer informações que _poderiam levar à. prisco de seus compa-nheiros. Não é muito, mas para ela ê tudo, O documento é sereno e só-brio. Dificilmente poderá ser ignorado. Tudo indi-ca que, na sua esteira, outros virão. Talvez não fosse essa a intenção de Gregori, tal-vez fosse — nunca se sa-be — mas seu projeto despertou o gênio e o ti-rou da garrafa. Haverá ciência para aprisoná-la novamente no frasco? E pouco provável. 0,s mortos estão fazei"- do ruído. Ninguém ficará menor por escuta-los.


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