top of page

Carta de Pero Vaz de Caminha (1º de maio de 1500)


01/05/1500



A carta de Pero Vaz de Caminha é o primeiro documento oficial escrito em português sobre o Brasil - ou melhor, sobre a Ilha de Vera Cruz, como foram chamadas, num primeiro momento, as terras às quais aportou a frota de Cabral. Caminha não esconde o seu deslumbramento com o que vê: as terras férteis, a vegetação luxuriante, a natureza belíssima e, mais do que tudo, a inocência dos nativos, que vivem nus e sem sentir vergonha. “A inocência dessa gente é tal que a de Adão não seria maior”, registra o escrivão. Os portugueses sentiam-se como se houvessem chegado ao Paraíso. Esse sentimento foi tão forte em dois grumetes que eles fugiram dos navios, quando a frota zarpou, para viver entre os índios. Arriscar-se nas Índias, para quê? Voltar para Portugal, por quê? Juntamente com dois degredados, deixados compulsoriamente em terra, foram os primeiros colonizadores a se misturar com os índios. Caminha, homem prático, fecha sua carta a D. Manuel pedindo um favor: que mande vir da ilha de São Tomé, importante entreposto português no Atlântico, na costa da África, a seu genro Jorge Osório. A lusitana instituição do “pistolão” havia chegado ao Brasil para ficar. “Senhor: Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que nesta navegação agora se achou, não deixarei também de dar minha conta disso a Vossa Alteza, o melhor que eu puder, ainda que - para o bem contar e falar - o saiba fazer pior que todos. Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para alindar nem afear, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu. Da marinhagem e singraduras do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo: A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi, segunda-feira, 9 de Março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e as nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã-Canária, onde andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às dez horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das Ilhas de Cabo Verde, ou melhor, da Ilha de S. Nicolau, segundo o dito Pero Escobar, piloto. Na noite seguinte, segunda-feira, ao amanhecer, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com sua nau, sem haver tempo forte nem contrário para que tal acontecesse. Fez o capitão suas diligências para o achar, a uma e outra parte, mas não apareceu mais! E assim seguimos nosso caminho por este mar, de logo, até que, terça-feira das Oitavas de Páscoa que foram vinte e um dias de Abril, estando da dita ilha obra de 660 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns sinais de terra aos quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mercantes chamam botelho, assim como outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã topamos aves a que chamam fura-bruxos. Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo, e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos ao monte alto o capitão pós nome - o MONTE PASCOAL, e à terra - a TERRA DA VERA CRUZ. Mandou lançar o prumo. Acharam vinte e cinco braças; e, ao sol posto, obras de seis léguas da terra, surgimos âncoras, em dezenove braças - ancoragem limpa. Ali permanecemos toda aquela noite. E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, quatorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais ou menos. Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro. Então lançamos fora os batéis e esquifes; e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do capitão-mor, onde falaram entre si. E o capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens. Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhe, cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijamente sobre o batel, e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram. Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar na costa. Deu-lhes somente um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles, deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas como de papagaio, e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira, as quais peças creio que o capitão manda a Vossa Alteza, e com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala por causa do mar. Na noite seguinte ventou tanto sueste como chuvaceiros que fez caçar as naus e especialmente a capitania. E sexta pela manhã, às oito horas pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela; e fomos ao longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados à popa na direção do norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom pouco, onde nos demorássemos, para tomar água e lenha. Não que nos minguasse, mas por aqui nos acertamos. Quando fizemos vela, estariam já na praia assentados perto do rio obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que seguissem mais chegados à terra, e, se achassem pouso seguro para as naus, que amainassem. E, velejando nós pela costa, acharam os ditos navios pequenos, obra de dez léguas do sítio donde tínhamos levantado ferro, um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga entrada. E meteram-se dentro e amainaram. As naus arribaram sobre eles, e um pouco antes do sol posto amainaram também, obra de urna légua do recife, e ancoraram em onze braças. Então se começaram de chegar muitos. Entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam, traziam cabaços de água e tomavam alguns barris que nós levávamos, enchiam-nos de água e traziam-nos aos batéis. Não que eles de todo chegassem à borda do batel. Mas junto a ele, lançavam os barris que nós tomávamos, e pediam que lhes dessem alguma coisa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas. E a uns dava um cascavel, a outros uma manilha de madeira que com aquele engodo quase nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que homens lhes queria dar. Dali se partiram os outros dois mancebos, que os não vimos mais. Muitos deles ou quase a maior parte dos que andavam ali traziam aqueles bicos de osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, tinham os beiços furados e nos buracos uns espelhos de pau, que pareciam espelhos de borracha; Outros traziam três daqueles bicos a saber, um no meio e os dois nos cabos. Aí andavam outros, quartejados de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, a modos de azulada; e outros quartejados de escaques. Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha. Ali por então não houve mais fala nem entendimento com eles, por a berberia deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém. Acenamos-lhes que se fossem, assim o fizeram e passaram-se além do rio. Saíram três ou quatro homens nossos dos batéis e encheram não sei quantos barris de água que nós levávamos e tornamo-nos às naus. Mas quando assim vínhamos, acenaram-nos que tornássemos. Tornamos a eles mandaram o degradado e não quiseram que ficasse lá com eles. Este lavava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não cuidaram de lhe tirar coisa alguma, antes o mandaram com tudo. Mas, então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, ordenando que lhes desse aquilo. E ele tornou e o deu, à vista de nós, a aquele que da primeira vez o agasalhara. Logo voltou e nós trouxemo-lo. Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por louçainha todo cheio de Penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado como S. Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarela, outros, de vermelhas; e outros verdes. E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima daquela tintura, e certo era tão bem feita e tão redonda e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nessa, terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha por não terem a sua como ela. Nenhum deles era fanado, mas, todos assim como nós. E com isto nos tornamos a eles foram-se. Á tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com os outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, em frente da praia. Mas ninguém saiu em terra, porque o Capitão o não quis, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu - ele com todos nós - em um ilhéu grande, que na baía está e que na baixa-mar fica mui vazio. Porém é por toda a parte cercado de água, de sorte que ninguém lá pode ir a não ser de barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros, bem uma hora e meia. E alguns marinheiros, que ali andavam com um chinchorro, pescaram peixe miúdo, não muito. Então volvemo-nos às naus, já bem noite. Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão de ír ouvir missa e pregação naquele ilhéu. Mandou a todos os capitães que se apressarem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperavel, e dentro dele um altar muí bem corregido. E ali com todos nós outros fez dizer missa, à qual foi dita pelo padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes, que todos eram ali. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção. Ali era com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saiu de Belém, a qual esteve sempre levantada, da parte do Evangelho. Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação da história do Evangelho, ao fim da qual tratou da nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da Cruz, sob cuja obediência viemos, o que foi muito a propósito e fez muita devoção. Enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outras tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem, com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e a dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias - duas ou três que aí tinham - as quais não são feitas como as que eu já vi, somente são três traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, senão enquanto podiam tomar pé. Acabada a pregação, voltou o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos todos em direção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo, na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para lho dar; e nós todos, obra de tiro de pedra, atrás dele. Como viram o esquife de Bartolomeu Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam. Acenaram-lhes que pousassem os arcos; e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros não. Andava aí um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não que a mim me parecesse que lhe tinham acatamento ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas, e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos, espáduas, quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era assim vermelha que a água a não comia nem desfazia, antes, quando saia da água, parecia mais vermelha. Saiu um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava entre eles, sem implicarem nada com ele para fazer-lhe mal. Antes lhe davam cabaças de água, e acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao Capitão; e viemo-nos as naus, a comer, tangendo gaitas e trombetas, sem lhes dar mais opressão. E eles tornaram-se a assentar na praia e assim por então ficaram. Neste Ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, a água espraia muito, deixando muita areia e muito cascalho a descoberto. Enquanto ai estávamos foram alguns buscar marisco e apenas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um tão grande e tão grosso, como em nenhum tempo vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões a ameijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E tanto que comemos, vieram logo todas os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se apartou, e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmãos de nossa viagem. E entre muitas falas que no caso se fizeram, foi por todos ou a maior parte dito que seria muito bem. E nisto concluíram. E tanto que a conclusão foi tomada, perguntou mais se lhes parecia bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui por eles outros dois destes degredados. Sobre isto acordaram que não era necessário tomar por força homens, porque era geral costume dos que assim levavam por força para alguma parte dizerem que há ali de tudo quanto lhes perguntam, e que melhor o muito melhor informação da terra dariam dois homens destes degredados quê aqui deixassem, do que eles dariam se os levassem, por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estes outros o não digam, quando Vossa Alteza cá mandar. E que portanto não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de fazer escândalo, para de todo mais os amansar e apacificar, senão somente deixar aqui os dois degredados, quando daqui partíssemos. E assim, por melhor a todos parecer, ficou determinado. Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra e verse-ia bem como era o rio, e também para folgarmos. Fomos todos nos batéis em terra, armados e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, o acenavam que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais largo que um jogo de mancal. E mal desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. Alguns aguardavam: outros afastavam-se. Era, porém, a coisa de maneira que todos andavam misturados. Eles ofereciam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho ou por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos, e andavam assim misturados com eles, que eles se esquivavam e afastavam-se. E deles alguns iam-se para cima onde outros estavam. Então o Capitão fez que dois homens o tomassem ao colo, passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que a costumada. E tanto que o Capitão fez tornar a todos, vieram a ele alguns daqueles, não porque o conhecessem por Senhor, pois me parece que não entendem, nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já para aquém do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, em tal maneira que os nossos trouxeram dali para as naus muitos arcos e setas e contas. Então tornou-se o Capitão aquém do rio, e logo acudiram muitos à beira dele. Ali verieis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim nos corpos, como nas pernas, que, certo, pareciam bem assim. Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres moças, nuas como eles, que não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até ao quadril, e a nádega, toda tinta daquela tintura preta: e o resto, tudo da sua própria cor. Outra trazia ambos os joelhos, com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas, que nisso não havia vergonha alguma. Também andava ai outra mulher moça, com um menino ou menina ao colo, atado com um pano (não sei de que) aos peitos, de modo que apenas as perninhas lhe apareciam. Mas as pernas da mãe e o resto não traziam pano algum. Depois andou o Capitão para cima ao longo do rio, que ocorre sempre chegando à praia. Ali esperou um velho, que trazia na mão uma pá de foram com eles, onde outros muitos estavam com moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, deles verdes e deles amarelos, dos quais, segundo creio, o Capitão há de mandar amostra a Vossa Alteza. E, segundo diziam esses que lá foram, folgavam com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados. Ali, alguns andavam daquelas tinturas quartejados; outros de metades; outros de tanta feição, como em panos de armas, e todos com os beiços furados, e muitos com os ossos neles, e outros sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiras, embora mais pequenos. E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagados entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que eles andavam tintos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam. Todos andam rapados até cima das orelhas; e assim as sobrancelhas e pestanas. Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta, de largura de dois dedos. E o Capitão mandou àquele degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados, que fossem lá andar entre eles; e assim a Diogo Dias, por ser homem ledo, com que eles folgavam. Aos degredados mandou que ficassem lá esta noite. Foram-se lá todos, e andaram entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitaina. Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de razoada altura, todas duma só peça, sem nenhum repartimento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro. Diziam que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os achavam; e que lhes davam de comer daquela vianda, que eles tinham, a saber, muito inhame e outras sementes, que na terra há e eles comem. Mas, quando se fez tarde, fizeram-nos logo tornar a todos e não quiseram que lá ficasse nenhum. Ainda, segundo diziam, queriam vir com eles. Resgataram lá por cascáveis e por outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças de penas verdes, e um pano de penas de multas cores, maneira de tecido assaz formoso, segundo Vossa Alteza todas estas coisas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse. E com isto vieram; e nós tornamo-nos às naus. Á terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa. Estavam na praia, quando chegamos, obra de sessenta ou setenta sem arcos e sem nada. Tanto que chegamos, vieram logo para nós, sem se esquivarem. Depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos; e misturaram-se todos tanto conosco que alguns nos ajudavam a acarretar lenha e a meter nos batéis. E lutavam com os nossos e tomavam muito prazer. Enquanto cortávamos a lenha, faziam dois carpinteiros uma grande Cruz, dum pau, que ontem para isso se cortou. Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais por verem a ferramenta de ferro com que a faziam, do que por verem a Cruz, porque eles não têm coisa que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em um pau entre duas talas, muito bem atadas e por tal maneira que andam fortes, segundo diziam os homens, que ontem a suas casas foram, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles conosco tanta que quase nos estorvavam no que havíamos de fazer. O Capitão mandou a dois degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia (e a outras, se houvessem novas delas) e que, em toda a maneira, não viessem dormir às naus, ainda que eles os mandassem. E assim se foram. Enquanto andávamos nessa mata a cortar lenha, atravessavam alguns papagaios por essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece haverá muitos nesta terra. Porém eu não veria mais que até nove ou dez. Outras aves então não vimos, somente algumas pombas seixas, e pareceram-me bastante maiores que as de Portugal. Alguns diziam que viram rolas, eu não as vi. Mas, segundo os arvoredos são mui muitos e grandes, e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja mais aves! Cerca da noite nos volvemos para as naus com nossa lenha. Eu, creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que - eu creio - o Capitão a ela há de enviar. A quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada uma podia levar. Eles acudiram à praia; muitos, segundo das naus vimos. No dizer de Sancho de Tovar, que já foi, seriam obra de trezentos. Diogo Dias e Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem mandou que em toda maneira lá dormissem, volveram-se já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. Trouxeram papagaios verdes e outras aves pretas, quase como pegas, a não ser que tinham o bico branco e os rabos curtos. Quando Sancho de Tovar se recolheu à nau, queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão dois mancebos dispostos e homens de prol. Mandou-os essa noite mui bem pensar e tratar. Comeram toda a vianda que lhes deram: e mandou fazer-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. Dormiram e folgaram aquela noite. E assim não houve mais este dia que para escrever seja. A quinta-feira, derradeiro de abril, comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda não ter comido, puseram-lhe toalhas. Trouxeram-lhe vianda e comeu. Aos hóspedes, sentaram cada um em sua cadeira. E de tudo o que lhes deram comeram muito bem, especialmente lacão cozido, frio, e arroz. Não lhes deram vinho, por Sancho de Tovar dizer que o não bebiam bem. lmadia. Falava, enquanto o Capitão esteve com ele, perante nós todos, sem nunca ninguém o entender, nem eles a nós quantas coisas lhe demandávamos acerca de ouro, que nós desejávamos saber se na terra havia. Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furo um grande dedo polegar, e metida nela uma pedra verde, ruim, que cercava por fora esse buraco. O Capitão lhe fez tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela direito ao Capitão, para, lha meter na boca. Estivemos sobre isso rindo um pouco; e então enfadou-se o Capitão e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho, não por ela valer alguma coisa mas por amostra. Depois houve-a o Capitão, segundo creio, para, com as outras coisas, a mandar a Vossa Alteza. Andamos por ai vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não mui altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos. Então tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos desembarcado. E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almada. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa. A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons tostas e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso tem tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, do comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita com roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobre-pente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar. O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nos outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata Mostraram-lhe um papagaio pardo que o capitão traz consigo t diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro, não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela; não lhe queriam pôr a mão; depois a tomaram como que espantados. Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeites, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provavam, logo a lançavam fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que levaram, e logo a lançaram fora. Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhes dessem, folgou muito com elas, e lançou-se ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo. Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhe dera. Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por a não quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram. Ao sábado pela manhã mandou o Capitão fazer vela, e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de seis a sete braças. Entraram todas as naus dentro; o ancoraram em cinco ou seis braças - ancoragem dentro tão grande, tão formosa e tão segura que podem abrigar-se nela mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus quedaram ancoradas, todos os capitães vieram a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias que fossem em terra e levassem aqueles dois homens e os deixassem ir com seu arco e setas, e isto depois que fez dar a cada um sua camisa nova, sua carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que eles levaram nos braços, seus cascavéis e suas campainhas. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de duzentos homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pousassem os arcos; e eles os pousaram, mas não se afastaram muito. E mal pousaram os arcos, logo saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não pararam mais; nem esperava um pelo outro, mas antes corriam a quem mais corria. E passaram um rio que por ali corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga; e outros muitos com eles. E foram assim correndo, além rio, entre umas moitas de palmas onde estavam outros. Ali pararam. Entretanto foi-se o degredado com um homem que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou até lá. Mas logo, tornaram a nós; e com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças. Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgacam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e foram-se para cima. E então o Capitão passou o rio com todos nós outros, e fomos pela praia de longo, indo os batéís, assim, rente da terra. Fomos até uma lagoa grande de água doce, que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares. E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão, que Bartolomeu Dias matou, lhes levou e lançou na praia. Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem, logo duma mão para a outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem amansar. O Capitão ao velho, com quem falou, deu uma carapuça vermelha. E com toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que se apartou e começou de passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar de lá para aquém. Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca mais aqui apareceram - do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva. Porém e com tudo isto andam muito bem curados e muito limpos. E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e formosos, que não pode mais ser. Isto me faz presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham e o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós ainda até agora vimos casa alguma ou maneira delas. Mandou o Capitão àquele degredado Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço, mas à tarde tornou-se, que o fizeram eles vir e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe tomaram nenhuma coisa do seu. Antes - disse ele - que um lhe tomara umas continhas amarelas, que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram logo após, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre Doiro e Minho. E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir. A segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. li vieram então muitos, mas não tantos como as outras vezes. Já muito poucos traziam arcos. Estiveram assim um pouco afastados de nós: e depois pouco a pouco misturaram-se conosco. Abraçavam-nos e folgavam. E alguns deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma carapusinha velha ou por qualquer coisa. Em tal maneira isto se passou que bem vinte ou trinta pessoas das nossas se Acabado o comer, metemo-nos todos no batel e eles conosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês, bem revolta. Tanto que a tomou, e meteu-a logo no beiço, e, porque se lhe não queria segurar, deram-lhe uma pouca de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço detrás para ficar segura, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima. E vinha tão contente com ela, como se tivera uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, e não apareceu mais ai. Andariam na praia, quando saímos, oito ou dez deles; e de ai a pouco começaram a vir mais. E parece-me que viriam, este dia, à praia quatrocentos ou quatrocentos e cinqüenta. Traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam alguns deles vinho, outros o não podiam beber. Mas parece-me, que se lho avezarem, o beberão de boa vontade. Andavam todos tão dispostos, tão bem feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha, quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis. Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles. Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço por este arvoredo até uma ribeira grande e de muita água, que a nosso parecer, era esta mesma, que vem ter à praia, e em que nós tomamos água. Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tanto, tamanho, tão basto e de tantas prumagens, que homem as não pode contar. Há entre ele muitas palmas, de que colhemos muitos e bons palmitos. Quando saímos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz, que estava encostada a uma árvore, junto com o rio, para se erguer amanhã, que é sexta-feira, e que nos puséssemos todos em joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos. A esses dez ou doze que aí estavam acenaram-lhe que fizessem assim, e foram logo todos beijá-la. Parece-me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem entendem em nenhuma crença. E portanto, se os degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção de Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual preza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar. E pois Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e bons rostos, como a bons homem, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa. Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim. Eles não lavram, nem criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem qualquer outra alimária, que costumada seja no viver dos homens. Nem comem senão desse Inhame, que aqui há multo, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos. Neste dia, enquanto ali andaram, dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som dum tamboril dos nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus. Se lhes homem acenava se queriam vir às naus, faziam-se logo prestes para isso, em tal maneira que se a gente todos quisera convidar, todos vieram. Porém não trouxemos esta noite às naus, senão quatro ou cinco, a saber, o Capitão-mor, dis; Simão de Miranda, um, que trazia já por pajem; e Aires Gomes, outro, também por pajem. Um dos que o Capitão trouxera era um dos hóspedes, que lhe trouxeram da primeira vez, quando aqui chegamos, o qual veio hoje aqui, vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar. E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de Maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seja melhor chamar a Cruz, para melhor ser vista. Ali assinalou o Capitão o lugar, onde fizessem a cova para a chantar. Enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pela Cruz abaixo do rio, onde ela estava. Dali a trouxemos com esses religiosos e sacerdotes diante cantando, em maneira de procissão. Eram já aí alguns deles, obra de setenta ou oitenta, e, quando nos viram assim vir, alguns se foram meter debaixo dela, para nos ajudar. Passamos o rio, ao longo da praia e fômo-la pôr onde havia de ficar, que será do rio obra de dois tiros de besta. Andando-se ali nisto, vieram bem, cento e cinqüenta ou mais. Chantada a Cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiramente lhe pregaram armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o Padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco a ela obra de cinqüenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos, assim como nós. E quando veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram conosco e alçaram as mãos, ficando assim, até ser acabado, e então tornaram-se a assentar como nós. E quando levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos eles se puseram assim todos, como nós estávamos com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados, que, certifico a Vossa Alteza, nos fez muita devoção. Estiveram assim conosco até acabada a comunhão, depois da qual comungaram esses religiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros. Alguns deles, por o sol ser grande, quando estávamos comungando, levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinqüenta ou cinqüenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse, estando nós assim, ajuntava este, que ali ficaram, e ainda chamava outros. E andando assim entre eles falando-lhes acenou com o dedo para o altar e depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes disse alguma coisa de bem; e nós assim o tomamos. Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima e ficou em alva; e assim se subiu, junto com o altar, em uma cadeira. Ali nos pregou do Evangelho e dos Apóstolos, cujo é o dia, tratando, ao fim da pregação, deste vosso prosseguimento tão santo virtuoso, o que nos aumentou a devoção. Esses, que estiveram sempre à Pregação, quedaram-se como nós olhando para ele. E aquilo, não digo, chamava alguns que viessem para ali. Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, como Nicolau Coelho trouxesse muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda, houveram por bem que se lançasse uma ao pescoço de cada um. Pelo que o Padre frei Henrique se assentou ao pé da Cruz e ali, a um por um, lançava a sua atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a isso muitos; e lançaram-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinqüenta. Isto acabado - era já bem uma hora depois do meio-dia - viemos a comer às naus, trazendo o Capitão consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança para o altar e para o Céu e um seu irmão com ele, Fez-lhe muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca e ao outro uma camisa destoutras. E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão entender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar onde, que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir clérigo, para os batizar, porque já então terão mais conhecimento de nossa fé, pelos dois degredados, que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram ambos. Entre todos estes que hoje vieram, não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse. Puseram-lho a redor de si. Porém, ao assentar, não fazia grande memória de o estender bem, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal, que a de Adão não seria maior, quanto a vergonha. Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converterá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação. Acabado isso, fomos assim perante eles beijar a Cruz, despedimo-nos e viemos comer. Creio, Senhor, que com estes dois degredados ficam mais dois grumetes, que esta noite se saíram desta nau no esquife, fugidos para terra. Não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui partida. Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas, e a terra por cima toda chá e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é tudo praia-palma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre Doiro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitos, infíndas. E em tal maneira é gracioso que, querendo-a aproveitar, dar-se-á Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que ai não houvesse mais que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calicute, isso bastaria. Quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa santa fé. E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, pois o desejo que tinha de tudo vos dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo. E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer graça especial, mandar vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro - o que d'Ela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro, da vossa Ilha da Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500. Pero Vaz de Caminha

Um alemão nas mãos dos devoradores de homens (1556)


01/01/1556



Em 1556, foi publicado o livro “A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens, encontrados no Novo Mundo, a América” (*), escrito por Hans Staden, marinheiro alemão que, tendo sido soldado num forte português em Bertioga, foi feito prisioneiro pelos índios tupinambás. Com eles viveu durante meses, esperando o dia em que seria comido pelos selvagens. Conseguiu escapar graças a truques, felizes acasos e muita sorte. Quando saiu, o livro foi um best-seller - para as condições da época, evidentemente. Era imensa no Velho Mundo, então, a curiosidade em relação à América, e os relatos de Staden tinham tudo para cair no gosto do público letrado europeu. Primeiro, descreviam com minúcias como viviam os selvagens: suas comidas, bebidas, cerimônias, rituais de guerras, crenças e lendas, organização familiar e tribal, namoros e casamentos, relações familiares, forma de contar objetos, fabricar armas e panelas, fazer fogo etc. Como se isso fosse pouco, contavam em detalhes por quê e como os tupinambás comiam os adversários capturados nas batalhas. Em segundo lugar, as aventuras de Staden eram reais. Cheias de peripécias, espertezas e horrores, incendiaram facilmente o imaginário do europeu civilizado do século XVI. A obra de Staden é dividida em dois livros, publicados num só volume. No primeiro, ele conta sua história. No segundo, descreve como viviam os tupinambás. Selecionamos 25 dos 36 curtos capítulos da última parte. Segundo Monteiro Lobato, a obra “devia entrar nas escolas, pois nenhuma dará melhor aos meninos a sensação da terra que foi o Brasil em seus primórdios”. Embora o livro do marinheiro alemão não seja diretamente político, sua inclusão nesta “Estação História” justifica-se pela mesma razão que levou à seleção da carta de Pero Vaz de Caminha. Trata-se de um texto indispensável para se entender o ambiente em que começou a se formar o Brasil e o caráter dos brasileiros. Para quem quiser ler o livro inteiro, há uma edição recente - excelente - da Livraria Editora Por mares nunca dantes navegados. Capítulo 4 Como os Tupinambá, de quem fui prisioneiro, constroem suas moradias. Os Tupinambá moram em frente à serra já mencionada, na beira do mar; mas o seu território ainda se estende por cerca de 60 milhas por trás dela. Residem na margem do Paraíba, um rio que vem das montanhas e deságua no mar, e ocupam uma faixa de aproximadamente 28 milhas de extensão na costa. Os inimigos são uma ameaça por todos os lados. Ao norte, seu território faz fronteira com a dos hostis Guaiataca; os inimigos no sul são os Tupiniquim, e, na direção do interior, os Carajá. Os Guaiana da serra vivem nas proximidades dos Tupinambá, que são perseguidos terrivelmente por uma tribo fixada entre eles e os Guaiana, a dos Maracaia. Todas as tribos mencionadas estão permanentemente em guerra entre si e todas comem os inimigos aprisionados. Os Tupinambá gostam de fazer suas cabanas próximas a locais providos de água e lenha, assim como peixes e caça. Quando se esgotam os recursos do território escolhido, eles estabelecem suas moradias em outro local. Sendo preciso erguer cabanas, cada chefe reúne um grupo de aproximadamente 40 homens e mulheres, ou tantos quantos estiverem disponíveis. Esse grupo costuma ser constituído por amigos e parentes. Então constroem uma cabana que - dependendo do tamanho do grupo – chega a ter 14 pés de largura e até 150 pés de comprimento. A cabana mede cerca de duas braças de altura, sendo arredondada em cima como a abóbada de uma adega. Cobrem-na espessamente com folhas de palmeira, para proteger da chuva o seu interior. Ninguém tem um quarto separado na cabana, que por dentro consiste num único cômodo enorme, onde cada casal, homem e mulher, possui um espaço com cerca de 12 pés de comprimento em um dos lados, de frente para um outro casal que possui seu espaço no outro lado. Assim as cabanas são preenchidas, cada família tendo sua fogueira própria. O chefe é dono do espaço central. Normalmente a cabana tem três entradas pequenas, uma de cada lado e uma no meio, tão baixas que é preciso curvar-se para passar. É raro uma aldeia contar com mais de sete cabanas, entre as quais deixam um espaço livre. Onde matam seus inimigos aprisionados. As aldeias costumam ser protegidas do seguinte modo: em torno das cabanas ergue-se uma cerca feita com troncos cortados de palmeiras, com mais ou menos uma braça e meia de altura e tão grossa que nenhuma flecha possa penetrá-la. Há nela pequenos buracos pelos quais atiram suas flechas. Em volta dessa cerca erguem ainda uma outra, feita com varas longas e grossas, presas não próximas umas às outras, restando no meio uma separação que não permite a passagem de um homem. Em algumas tribos, é costume espetar as cabeças dos inimigos comidos em estacas, na entrada da aldeia. Capítulo 5 Como eles acendem o fogo Eles possuem um determinado tipo de madeira, chamado uraçu-iba, que secam. Pegam duas varetas da grossura de dedos e esfregam uma na outra. Com isso, produz-se um pó cinza que é aquecido pelo calor proveniente do atrito. É assim que acendem o fogo. Capítulo 6 Onde Dormem Eles dormem em redes penduradas, a que dão o nome de ini, em sua língua. Elas são trançadas com fios de algodão e amarradas sobre o chão em duas estacas. Durante a noite, uma fogueira permanece acesa ao lado da rede. E, mesmo para fazer suas necessidades, os selvagens não gostam de sair das cabanas sem levar uma tocha, tamanho o medo que sentem do demônio chamado por eles de Anhangá, que acreditam ver com freqüência. Capítulo 7 Como eles são habilidosos em caçar animais selvagens e peixes com flechas Aonde quer que vão, seja na floresta, seja na água, sempre carregam seus arcos e flechas. Quando estão caminhando na floresta, têm o olhar atento dirigido para as copas das árvores, observando bem. Se descobrem um pássaro grande, um macaco ou outro animal que habita em árvores, ficam de tocaia e tentam atingi-lo. Perseguem sua presa até que ela seja abatida. É raro que um deles saia para caçar e retorne de mãos vazias. Da mesma maneira, eles percorrem a beira do mar atrás de peixes. Seus olhos são aguçados, de modo que, quando um peixe surge em qualquer ponto da superfície, atiram uma flecha na sua direção, e quase não erram. Tendo atingido um peixe, pulam na água e nadam atrás dele. Alguns peixes grandes vão para o fundo quando sentem a flechada. Os caçadores mergulham até uma profundidade de mais ou menos seis braças para apanhá-los. Também utilizam pequenas redes. O fio com que estas são feitas é retirado de folhas pontuadas e longas, a que dão o nome de tucum. Quando querem pescar com as redes, alguns deles se juntam formando um círculo na água rasa. Cada um segura numa parte da rede, depois eles batem na água, fazendo os peixes fugirem para o fundo e ficarem presos nos fios. Quem pega muitos peixes dá uma parte para os outros. Pessoas que moram longe do mar viajam para capturar um bom número de peixes, torrá-los sobre o fogo, depois amassá-los até fazer uma farinha, que secam muito bem; assim ela se conserva por longo tempo. Levam-na de volta para casa e vão comê-la junto com farinha de mandioca. Se os peixes fossem levados para casa assados, não se conservariam por tanto tempo, pois não os salgam. Além disso, cabe mais farinha de peixe num pote do que peixes inteiros assados. Capítulo 8 Qual é a aparência das pessoas? Trata-se de um povo em que homens e mulheres são tão belos, no corpo e na aparência, como aqui em nossa terra; só que eles são bronzeados pelo sol, visto andarem todos nus – tanto os jovens quanto os velhos - , sem nunca cobrirem as partes vergonhosas. Alteram suas feições por meio de pinturas e também não possuem nenhuma barba, já que as arrancam com a raiz assim que começam a crescer. Eles perfuram seus lábios e orelhas e põem pedras pelos furos: é este o seu ornamento. Além disso, enfeitam-se com penas. Capítulo 9 O que eles usam para capinar e cortar nos territórios em que não trocam machados, facas e tesouras com os cristãos Antigamente, antes da vinda das naus comerciantes para essa terra, os selvagens utilizavam uma pedra preta azulada, como ainda hoje fazem nos locais que não são alcançados pelas embarcações. Pegam pedras com o formato de cunhas e afiam a aresta mais longa. Tais cunhas têm mais ou menos um palmo de comprimento, a grossura de dois dedos e são largas como a mão. Algumas maiores, outras menores. Depois eles apanham uma vara fina e vergam na parte superior, ao redor da cunha, amarrando-a com uma fibra. As cunhas de ferro, conseguidas em alguns lugares por meio de trocas com os cristãos, têm a mesma forma. Só o cabo é feito por eles de uma maneira diferente: perfuram a madeira e encaixam a cunha no buraco. É feito assim o machado com o qual cortam a lenha. Também pegam dentes de porcos do mato, amolam no meio até ficarem bem afiados e os amarram entre dois tocos. Com esse instrumento é que eles aparam suas flechas e seus arcos, deixando-os redondos, como se tivessem sido torneados. Além disso, usam os dentes de um animal chamado paca, afiados na frente. Quando têm alguma doença do sangue, arranham o local dolorido até sangrar. Essa é a maneira deles de fazer uma sangria. Capítulo 10 O que selvagens comem em lugar do pão, como chamam os seus frutos, como eles os plantam e como os preparam Nos lugares em que pretendem fazer plantações, os selvagens derrubam as árvores e deixam-nas secando cerca de três meses. Depois ateiam fogo, queimando-as totalmente. Entre os tocos das árvores, então, plantam a raiz que lhes serve como alimento. Ela se chama mandioca, um arbusto que chega mais ou menos a uma braça de altura e forma três raízes. Quando querem colher, arrancam os arbustos e amassam as raízes, depois tiram ramos da planta e os enterram mais uma vez. Esses ramos dão origem a novas raízes, sendo que em três meses elas estão grandes o bastante para outra colheita. As raízes são preparadas de três maneiras. Primeira: trituram as raízes sobre uma pedra, obtendo pequenas migalhas. Estas são espremidas com um assim chamado tipiti, que é feito da casca da palmeira, para tirar o suco. Assim, a massa fica seca, depois é passada por uma peneira, produzindo uma farinha que serve para assar bolos bem finos. O pote em que eles secam e assam sua farinha é feito de barro e tem a forma de uma bacia. Segunda maneira: apanham as raízes frescas e as colocam na água, deixando que fermentem, depois as secam no fogo. Essas raízes secas chamam-se carima e são conservadas por muito tempo. Para o uso, a carima é socada em um pilão de madeira, produzindo com isso uma farinha branca semelhante à nossa farinha de trigo. Dela fazem bolos chamados beiju. Terceira: pegam a mandioca apodrecida mas não a secam, e sim misturam-na com mandioca seca e verde. Torrando o produto, fazem dele uma farinha que se conserva pro um ano inteiro. Ë igualmente boa para comer e chama-se uiatam. Eles também preparam peixe e carne de maneira semelhante, para fazer farinha, assando o peixe ou a carne na fumaça, sobre o fogo, deixando-os completamente ressecados. Depois despedaçam a carne seca e torram-na mais uma vez sobre o fogo nos assim chamados inhepoan, potes de barro queimados justamente para isso. Por fim, o alimento torrado é moído em um pilão e peneirado até ficar bem fino, resultando disso uma farinha duradoura (e entre eles não se usa salgar o peixe e a carne). Come-se essa farinha junto com farinha de mandioca, e ela é bem gostosa. Capítulo 11 Como eles cozinham seus alimentos Entre os povos selvagens há muitas tribos que não comem sal. No território daqueles de quem fui prisioneiro, encontram-se alguns que conheceram o sal a partir do comércio com os franceses. Porém eles me contaram que a tribo dos Carajá, cujo território fica no interior, afastado do mar, e faz fronteira com o deles, retira sal da palmeira para comer. Mas afirmaram que quem se habitua a comer muito sal não tem vida longa. Eu mesmo vi a maneira como retiram o sal e ajudei-os nisso. Derrubam uma palmeira grossa e cortam-na em pequenas lascas. Depois, erguem uma armação com madeira seca, colocam as lascas nela e queimam junto com a madeira, reduzindo-as a um pó cinza. Esse pó é cozido, dando origem a uma barrela da qual, depois de fervida, separa-se algo que parece sal. Primeiro achei que era salitre e experimentei no fogo, mas não era. É cinzento e tem gosto de sal. No entanto, a maioria dos selvagens não come sal nenhum. Ao cozinharem alguma coisa, seja peixe ou carne, na maior parte das vezes acrescentam pimenta verde. Quando a comida está quase pronta, retiram-na do caldo e fazem uma papa fina que se chama mingau e é bebida em potes feitos de cabaças. Querendo preparar uma refeição com peixe ou carne que fique conservada por algum tempo, põem a carne em pequenas varas de madeira, localizadas mais ou menos a quatro palmos acima do fogo forte, onde vão assando e defumando a carne até ela ficar totalmente seca. Quando querem come-la, cozinham-na novamente. Este alimento chama-se moquém. Capítulo 12 Qual o governo e a autoridade que eles têm e o que entendem por direito e ordem Eles não têm nenhum direito estabelecido e também nenhum governo próprio. Cada cabana possui um chefe que é, por assim dizer, um rei. Todos os chefes são da mesma linhagem, tendo poderes iguais de mando e de governo – independente de como se queira chamá-los. Se um deles destacou-se especialmente por seus feitos guerreiros, este, quando os selvagens vão a caminho da guerra, é mais obedecido do que os outros, como no caso do já mencionado chefe Cunhambebe. Não ouvi falar de nenhum privilégio especial entre eles, a não ser a obediência dos mais novos aos mais velhos, conforme seu costume. Quando um deles mata o outro, com um golpe ou uma flechada, os parentes do morto tomam providências para vinga-lo. Mas isso acontece raramente. Todos na cabana obedecem ao chefe, fazendo aquilo que ele ordena de boa vontade, sem constrangimento e sem temor Capítulo 13 Como eles queimam os potes e panelas que utilizam Os potes que eles utilizam são produzidos pelas mulheres da seguinte maneira: pegam o barro e amassam, moldando a partir dele os potes desejados; depois, deixam secar por algum tempo e fazem pinturas artísticas. Se os potes precisam ser queimados, apóiam-nos em pedras, botam muita cortiça seca em torno e acendem o fogo. É assim que os potes são queimados, ardendo como ferro quente. Capítulo 14 Sobre seus costumes para beber e como preparam suas beberagens encantadas As mulheres fazem as bebidas. Elas pegam raízes de mandioca e fervem grandes panelas cheias. Quando as raízes estão bastante cozidas, são retiradas e despejadas em outros potes, para esfriar um pouco. Depois disso, as mulheres jovens sentam-se, mastigam a mandioca e devolvem o que mastigaram para potes especiais. Quando todas as raízes cozidas já estão mastigadas, aquilo tudo volta para uma panela cheia d’água, que é misturada com a papa das raízes. O produto todo é aquecido mais uma vez. Eles possuem potes especiais, que são enterrados no solo pela metade e têm o mesmo propósito dos barris usados aqui para vinho e cerveja. Despejam todo o líquido nesses potes e os fecham bem. A beberagem começa a fermentar por si mesma, tornado-se forte. Permanece dois dias fechada, depois bebem dela e embriagam-se. Trata-se de uma bebida grossa e nutritiva. Cada cabana prepara sua própria bebida. Devendo-se celebrar uma festa na aldeia – normalmente uma vez por mês -, todos se encaminham para uma primeira cabana e ali bebem toda a bebida. Seguem assim em círculo, até que todas as bebidas de todas as cabanas tenham acabado. Sentam-se em volta das panelas, alguns sobre a lenha, outros no chão. As mulheres servem as bebidas, como é o costume entre eles. Alguns se levantam, cantando e dançando em torno dos potes. Aliviam-se de suas águas no mesmo lugar em que bebem. O banquete dura a noite inteira. Eles dançam entre as fogueiras, gritam e sopram seus instrumentos. Quando ficam bêbados, fazem uma gritaria medonha. É raro observar alguma briga nesses momentos. São muito prestativos entre si, portanto, quando alguém tem mais comida do que o outro, dá um pouco a este. Capítulo 15 Como os homens se enfeitam e se pintam e que tipo de nome têm Eles raspam a cabeça, deixando apenas uma coroa de cabelo, semelhante à de um monge. Perguntei-lhes diversas vezes como é que tinham chegado a esse tipo de cabelo e eles contaram que seus antepassados tinham-no visto em um homem de nome Meire Humane, que realizara muitas maravilhas entre eles. Era considerado um profeta ou apóstolo. Continuei a perguntar, querendo saber o que eles usavam para cortar os cabelos antes da vinda das naus com tesouras. Esclareceram que isso era feito com duas cunhas de pedra, batendo no cabelo uma por cima da outra, sendo a parte do meio cortada com auxílio de uma lasca feita de cristal. Essa raspadeira é muito empregada por eles para cortar. Além disso, fazem um enfeite de penas vermelhas chamado acangatara, que é amarrado em volta da cabeça. No lábio inferior, eles têm um furo grande, desde a juventude. Quando são ainda jovens, perfuram o lábio com uma ponta de chifre de cervo, colocam no furo uma pedrinha ou pedaços de madeira e untam-no com um de seus ungüentos. O pequeno furo permanece aberto assim. Depois, quando ficam maiores ou capazes de feitos de bravura, a abertura é aumentada e o jovem coloca através dela uma grande pedra verde. A parte superior da pedra, que tem uma forma especial, mais estreita, fica voltada para dentro e a parte grossa para fora. Seu peso faz o lábio inferior pender para baixo o tempo todo. Também usam duas pedras pequenas atravessadas nas bochechas, nos dois lados da boca. Alguns, em vez de pedras, usam cristais longos e delgados. Um outro enfeite é produzido a partir do casulo de grandes caracóis marinhos, os matapus. Chama-se bojeci e tem a forma de uma meia-lua, branco como a neve, sendo usado em volta do pescoço. Ainda a partir do casulo de caracóis marinhos, fazem disquinhos brancos, mais ou menos da grossura de uma haste de palha, que penduram no pescoço. A feitura desses disquinhos é muito cansativa. Também se enfeitam com feixes de penas amarradas em torno dos braços e pintam-se de preto. Penas vermelhas e brancas são coladas ao corpo, misturando as cores. A cola para isso é retirada de árvores. Esfregam-se nos pontos que querem emplumar, depois apertam as penas por cima. Costumam pintar um braço de preto e o outro de vermelho, fazendo o mesmo com as pernas e o tronco. Um outro enfeite é obtido de penas de ema. Trata-se de uma coisa grande e redonda, feita de penas, chamada enduape. Quando vão para a guerra ou fazem uma grande festa, amarram tais enfeites nas costas. Seus nomes são escolhidos a partir dos animais selvagens. Dão-se muitos nomes, mas com determinadas distinções: no nascimento, um menino recebe um nome que conservará até crescer e mostrar-se um guerreiro valoroso, capaz de matar inimigos. Depois, cada um deles recebe tantos nomes quantos forem os inimigos que tiver matado. Capítulo 16 Quais são os enfeites das mulheres As mulheres pintam a metade inferior do rosto e todo o resto do corpo do mesmo modo que já foi descrito a respeito dos homens. Todavia, elas deixam os cabelos compridos, como as mulheres de outros lugares. Além disso, não têm nenhum enfeite especial; só nas orelhas é que possuem furos para um tipo de brincos, mais ou menos da grossura de um polegar, produzidos a partir de caracóis marinhos. Desde a infância elas têm apenas um nome, que tiram de pássaros, peixes e frutas. Se forem casadas, recebem tantos nomes quantos forem os inimigos mortos por seus maridos. Quando catam piolhos, elas os comem. Perguntei-lhes muitas vezes por que fazem isso e elas responderam que os piolhos eram seus inimigos e devoravam alguma coisa das suas cabeças, portando queriam vingar-se deles. Entre esses selvagens não há parteiras determinadas. Quando uma mulher deve dar à luz, quem estiver mais perto vem correndo, seja mulher ou homem. Vi mulheres que já estavam passeando novamente no quarto dia após o parto. Carregam seus filhos nas costas, seguros em panos de algodão. Desse modo, levam-nos para o trabalho e as crianças ficam satisfeitas, dormindo, mesmo que a mãe se abaixe e se movimente muito. Capítulo 17 Como as crianças recebem seu primeiro nome A mulher de um dos selvagens que me capturaram dera à luz um filho. Alguns dias depois, o pai estava discutindo na cabana com os vizinhos mais próximos a respeito do nome que devia dar a seu filho, um nome que soasse corajoso e amedrontador. Sugeriram muitos nomes que não o agradaram, então ele disse que pretendia dar ao filho o nome de um dos seus quatro antepassados. Crianças com tais nomes são prósperas e bem sucedidas na captura de escravos, segundo disse, pronunciando em seguida os quatro nomes. O primeiro chamava-se Kirima, o segundo Eiramita, o terceiro Coema, e o nome do quarto eu não guardei. Quando ele disse Coema, pensei que podia ser Cham ou Ham, mas Coema significa ‘manhã’ na língua deles. Sugeri que desse ao filho aquele nome, pois certamente pertencia a um de seus antepassados. A criança recebeu um dos quatro nomes mencionados por ele, o que acontece sem batismo ou circuncisão. Capítulo 19 Como eles combinam os casamentos Eles prometem as suas filhas como noivas quando elas ainda são muito novas. Ao chegar a idade propícia para o casamento, cortam-lhes fora os cabelos, fazem determinados talhos nas suas costas e amarram alguns dentes de feras em volta do pescoço. Quando o cabelo volta a crescer e as feridas saram, ainda é possível reconhecer a forma dos cortes, pois eles põem algo na ferida recente que torna preta quando sara. Esses sinais são considerados uma honra. Realizadas tais cerimônias, entregam a moça àquele que deve tê-la como esposa, mas sem festividades. Marido e esposa comportam-se decentemente, fazendo suas coisas em segredo. Também observei como um dos chefes vai passando por todas as cabanas durante a manhã e arranha as pernas das crianças com um dente de peixe. Isso é para fazê-las ficar com medo. Se desobedecem alguma vez, os pais a ameaçam dizendo que aquele homem vai voltar se elas não forem bem comportadas. Capítulo 20 Seus haveres Os selvagens não praticam, entre eles, nenhum tipo de comércio e não conhecem nenhum dinheiro. Seus únicos tesouros são penas de pássaros, sendo visto como rico aquele que possui muitas delas. Quem usa uma pedra no lábio inferior também tem muito prestígio. Cada família possui sua própria plantação de mandioca, que lhe basta para viver. Capítulo 21 Qual é a maior das honras para eles O que vale como uma honra entre eles é ter aprisionado e matado muitos inimigos, pois é esse o seu costume. O número de inimigos que um homem matou equivale ao número de nomes que ganha. Aqueles que têm mais nomes são os mais distintos entre eles. Capítulo 22 Sobre as suas cabeças Os selvagens cultivam uma planta de abóbora que tem mais ou menos o tamanho de meia panela e é oca por dentro. Espetam uma vareta através dela, cortam uma abertura semelhante à boca e enchem-na com pedrinhas, de modo que faça barulho. Essa coisa é denominada maracá e eles a chacoalham quando estão dançando e cantando. Cada homem possui sua própria maracá. Entre eles, há alguns homens a que dão o nome de pajé. Trata-se de adivinhos, que são muito estimados por todos, da mesma maneira como aqui. Uma vez por ano eles andam pelas terras da tribo contando que lhes apareceu um espírito vindo de lugares muito distantes. Tal espírito teria dado a eles o poder de fazer com que todas as maracás falem e de lhes emprestar esse seu poder quando quiserem. Basta pedir a eles. Naturalmente, todos desejam que seu chocalho receba o poder e preparam uma grande festa, em que cantam e dançam. Os pajés prevêem o futuro e realizam muitas cerimônias bizarras. Após a festa, o adivinho escolhe uma cabana que precisa ser abandonada em determinado dia. Nenhuma mulher nem criança tem permissão para ficar lá dentro. Eles ordenam que todos os homens venham com suas maracás; depois de pinta-las de vermelho e enfeita-las com penas, então os chocalhos devem receber o poder de falar. Quando os homens já estão reunidos na cabana, os adivinhos sentam-se lá dentro, na parte mais alta, e fincam suas maracás no chão, ao seu lado. Os outros homens o imitam. Cada um dá presentes aos pajés, como por exemplo arcos e flechas, penas ou brincos, para que sua maracá não seja esquecida. Nessa reunião, o adivinho pega a maracá de cada um em particular e incensa na fumaça de uma erva a que dão o nome de pitim. Depois ele a segura bem perto da boca e diz: “Ne cora – Agora fale e se faça ouvir, se está aí.” Em seguida, fala uma palavra tão depressa que não é possível distinguir se é o chocalho ou ele quem está falando. As pessoas acreditam que é o chocalho, mas na realidade é o pajé quem fala. Ele faz assim com todos os outros chocalhos, e cada homem acredita que sua maracá tem grande poder. Por fim, os adivinhos lhes ordenam a partida para a guerra e a captura de muitos prisioneiros, pois os espíritos nas marcas têm apetite de comer carne de escravos. Depois disso, eles vão guerrear. Depois que o pajé transforma todos os chocalhos em divindades, cada homem retoma o seu e passa a chamá-lo de “filho querido”, chegando mesmo a fazer uma cabaninha onde o chocalho fica, com sua comida em frente. É para as maracás que pedem tudo de que têm necessidade, do mesmo modo como nós suplicamos ao verdadeiro Deus. Portanto, são esses os deuses deles. Não se preocupam com o Deus verdadeiro, criador do céu e da Terra, visto acreditarem, segundo sua tradição, que o céu e a Terra sempre existiram. Também não sabem nada a respeito do começo do mundo. Todavia, contam que houve certa vez uma grande enchente em que todos os seus antepassados morreram afogados; segundo eles, apenas uns poucos sobreviveram num barco, alguns também em cima de árvores altas. Acredito que se refiram ao Dilúvio. No início, logo que comecei a viver entre eles, ao me contarem sobre as maracás, fiquei pensando que se tratava de uma artimanha do diabo, pois eles asseguravam muitas vezes que os chocalhos podiam falar. Entretanto, ao entrar na cabana onde todos são obrigados a sentar, quando estavam lá os adivinhos que deviam fazer os chocalhos falarem, reconheci a farsa e então saí da cabana pensando comigo: ‘Que pobre povo ludibriado’. Capítulo 23 Como eles tornam as mulheres adivinhas Em seguida, os selvagens vão a uma cabana e incensam com fumaça todas as mulheres lá dentro, uma a uma. Depois, todas elas têm de se agachar, saltar e andar em volta da cabana, até ficarem exaustas e caírem por terra. É quando o adivinho diz: “Vejam, agora ela está morta, mas logo vou revivê-la. Ao voltar a si, ela será capaz de prever coisas futuras”. Quando os selvagens partem para a guerra, as mulheres precisam fazer previsões a respeito da expedição. A mulher do meu senhor (do selvagem a quem fui dado de presente, para que ele me matasse) começou a profetizar certa noite, dizendo a seu marido que um espírito vindo de uma terra distante lhe aparecera e queria saber quando eu seria morto. Segundo ela, o espírito também tinha perguntado onde se encontrava o porrete com o qual seria desferido o golpe mortal. A resposta de seu marido foi que não ia demorar muito, pois estava tudo pronto, embora ele achasse que eu não era português e sim francês. Quando a mulher havia terminado sua profecia, perguntei-lhe por que ameaçavam a minha vida daquele modo, visto que eu não era inimigo, e se não temia que meu Deus pudesse lançar uma praga sobre ela. Sua resposta foi que eu não devia mais me preocupar com aquilo, pois tratava-se de espíritos estrangeiros querendo obter informações a meu respeito. Os selvagens têm muitas dessas cerimônias proféticas. Capítulo 24 O que usam para viajar na água Na terra deles há um determinado tipo de árvore a que dão o nome de igaibira. Eles destacam a casca dessa árvore de cima abaixo, num único pedaço. Para consegui-la inteira, fazem uma armação extra em torno da árvore. Transportam essa casca das montanhas até a beira do mar, onde ela é aquecida sobre o fogo e então dobrada para cima, tanto na parte de trás quanto na da frente. Antes disso, amarram madeiras no meio para que não se distenda. É dessa maneira que fabricam barcos, nos quais até 30 homens podem ir em expedições de guerra. A casca é da grossura de um polegar, tendo mais ou menos 4 pés de largura e 40 pés de comprimento, algumas ainda mais longas, outras mais curtas. Com tais barcos, eles viajam o quanto quiserem, remando depressa. Se o mar está agitado, arrastam os barcos para a terra até que o tempo melhore novamente. Não ousam afastar-se mais de duas milhas no mar, mas navegam trechos muito grandes ao lado da costa. Capítulo 25 Por que eles comem seus inimigos Eles não comem seus inimigos porque têm fome, mas sim por ódio e grande hostilidade, sendo que, nos combates entre eles, durante a guerra, gritam cheios de raiva: “Debe Mara pa, xe remiu ram begue – Que todo infortúnio recaia sobre você, minha comida, minha refeição. Nde akanga juka aipota kuri ne – Quero arrebentar a sua cabeça ainda hoje. Xe anama poepika re xe aju – Estou aui para vingar em você a morte dos meus amigos. Nde rôo, xe mokaen sera kuarasy ar eyma rire. – Antes que o sol se ponha vou ter assado a sua carne.” E assim por adiante. Fazem tudo isso por causa de sua grande inimizade. Capítulo 26 Como eles conferenciam quando planejam uma expedição de guerra na terra dos seus inimigos Quando pretendem fazer uma expedição de guerra em território inimigo, reúnem-se todos os chefes e conferenciam a respeito do melhor procedimento. O resultado da conferência é anunciado nas cabanas, para que todos possam aprontar-se. Como eles não conhecem nenhuma divisão segundo dias ou anos, determinam o dia da partida, nomeando, por exemplo, a época de amadurecimento de certa fruta. Também costumam definir o ataque de acordo com a época de desova de peixes, como, por exemplo, o pirati. A época de desova é chamada de piracema. Para essas ocasiões, equipam-se com barcos, flechas e farinha grossa de raízes ( a uiatã) como mantimento. Então perguntam aos pajés, os adivinhos, se serão vitoriosos. Estes respondem afirmativamente na maioria das vezes, todavia os aconselham a prestar atenção nos sonhos em que os inimigos aparecem. Caso muitos deles sonhem que estão vendo a carne dos inimigos assando, isso é interpretado como uma vitória. Porém, se muitos vêem a própria carne assando, isso significa infortúnio, sendo portanto, melhor permanecer em casa. Assim que os sonhos lhes parecem animadores, aprontam-se. Bebidas são preparadas em todas as cabanas grandes, onde eles dançam e cantam com seus ídolos, as maracás, para as quais cada um deles pede que o ajude a capturar um inimigo. Depois partem. Chegando bem perto do território dos inimigos, na última noite antes da invasão, os chefes ordenam que todos notem bem os sonhos que tiverem. Eu estive presente em uma dessas expedições de guerra. Quando nos encontrávamos bem próximos da terra inimiga, na véspera do ataque, o líder andou à tarde pelo acampamento. Ordenou a todos que guardassem seus sonhos dessa noite. Aos homens jovens, deu instruções para caçarem animais e pegarem peixes ao raiar do dia. Isso aconteceu. O chefe mandou cozinhar tudo, depois reuniu os outros chefes diante da sua cabana. Sentaram-se no chão em círculo, receberam algo para comer e, depois da refeição, contaram os sonhos favoráveis da noite anterior; em seguida, dançaram em celebração com suas maracás. Espreitam as cabanas de seus inimigos durante a noite e atacam ao alvorecer. Se aprisionam alguém gravemente ferido, matam-no de imediato e levam a carne já assada para casa. Os ilesos, por sua vez, são levados com vida para lá, até suas cabanas, onde eles os matam. Atacam gritando alto, batendo forte com os pés no chão e soprando instrumentos feitos de cabaças. Carregam muitos cordões amarrados, com os quais pretendem prender os inimigos, e enfeitam-se com penas vermelhas como um tipo de sinal de identificação. Atiram flechas depressa, usando também as incendiárias, com o propósito de atear fogo às cabanas dos inimigos. Possuem ervas medicinais para tratar de seus próprios feridos. Capítulo 27 Os equipamentos de guerra dos selvagens Eles possuem arcos e flechas com pontas feitas de pedaços afiados de ossos atados a elas. Também empregam para isso dentes de tubarões, peixes que capturam no mar. Para suas flechas incendiárias, pegam algodão embebido em cera e prendem nas pontas das flechas, depois acendem-nas. Fabricam escudos feitos de cascas de árvores e peles de animais. Além disso, enterram espinhos pontudos, da mesma maneira como fazemos aqui com armadilhas de pé. Ouvi dizer, mas não presenciei, que eles afugentam os inimigos das fortificações com pimenta (que realmente cresce em sua terra). Fazem isso do seguinte modo: quando sopra um vento favorável acendem uma grande fogueira e jogam dentro dela um monte de pimenta. Assim que a fumaça espessa chega às cabanas, os inimigos são obrigados a fugir. Acredito nisso, pois, certa vez, quando me encontrava na companhia dos portugueses, como já foi narrado, em uma província daquela terra chamada Pernambuco, aconteceu o seguinte. Nosso barco havia encalhado em uma borda de rio, na hora da maré baixa, e muitos selvagens vieram com a intenção de tomar a embarcação de assalto. Como não foram capazes, jogaram muitos arbustos secos entre a margem e o barco. Pretendiam nos espantar com a fumaça da pimenta, mas não conseguiram atear fogo à madeira. Capítulo 28 Quais são os costumes festivos que têm para matar e comer seus inimigos. O que usam para dar-lhe o golpe fatal e como lidam com eles. Quando os prisioneiros são trazidos para casa, as mulheres e os filhos dos selvagens têm permissão para bater neles. Depois os enfeitam com penas cinzas e raspam suas sobrancelhas. Dançam em volta do prisioneiro, bem amarrado para não escapar. Dão-lhe uma mulher, que cuida dele e é sua serva. Se ela fica grávida, criam o filho até estar grande, a fim de matá-lo e comê-lo posteriormente, quando lhes parecer melhor. Ao prisioneiro, dão boa comida, mantendo-o vivo por algum tempo, enquanto se preparam para a festa. Fabricam muitos potes para a bebida, além de outros especiais, em que guardam as coisas usadas para pintar e enfeitar o prisioneiro; também fabricam franjas de penas usadas no porrete com o qual vão matá-lo, assim como um longo cordão para amarrá-lo antes de morrer. Quando está tudo pronto, definem o dia em que o prisioneiro deve morrer e convidam gente de outras aldeias para a festa. Um ou dois dias antes do tempo determinado, a bebida é colocada nos potes. Porém, antes de preparar a bebida, as mulheres levam o prisioneiro algumas vezes até o local e dançam em volta dele. Após a chegada de todos os convidados, o chefe faz uma saudação e lhes dá as boas vindas com as seguintes palavras: “Venham agora e ajudem a comer nossos inimigos.” No dia anterior à bebedeira, eles amarram o cordão de mussurana em torno do pescoço do prisioneiro. Nesse dia, também pintam a ibira-pema, o porrete com o qual o matam, que mede mais de uma braça de comprimento. Untam a madeira com uma pasta grudenta, em seguida pegam a casca cinzenta dos ovos de um pássaro chamado macaguá, trituram-na até ficar reduzida a pó e fazem listras no porrete. Então, uma mulher senta-se e risca algo nessa poeira colada. Enquanto ela está desenhando, outras mulheres permanecem à sua volta, cantando alto. Já enfeitada com franjas de penas e outras coisas, como é o costume, a ibira-pema é pendurada em uma haste acima do chão de uma cabana vazia, em volta da qual os selvagens dançam e cantam durante a noite toda. O rosto do prisioneiro é pintado da mesma maneira, com as mulheres cantando em volta enquanto uma delas faz a pintura. Quando começam a beber, carregam o prisioneiro para o local e fazem-no beber junto, divertindo-se às custas dele. No dia seguinte ao da bebedeira, descansam. Constroem para o prisioneiro, no lugar onde ele vai morrer, uma pequena cabana em que, bem vigiado, passará a sua última noite. Chegando a manhã, ainda algum tempo antes do alvorecer, eles dançam e cantam em torno da ibira-pema até o raiar do dia, quando levam o prisioneiro para fora da sua cabaninha, que derrubam para abrir espaço. A mussurana é retirada de seu pescoço, amarrada em volta do corpo e retesada dos dois lados, de modo a ficar firme no meio. Muitas pessoas seguram o cordão em cada extremidade. Deixam-no ficar de pé assim por algum tempo e põem umas pedrinhas perto dele, para que possa jogá-las nas mulheres, enquanto elas correm à sua volta mostrando com vão comê-lo. As mulheres, todas pintadas, têm a tarefa de, assim que seu corpo for repartido, correr ao redor da cabana com os quatro primeiros pedaços, pois isso agrada aos outros. Então eles acendem uma fogueira a cerca de dois ou três passos do prisioneiro e obrigam-no a olhar para ela. Ë quando uma mulher vem correndo com a ibira-pema, levanta as franjas de penas, dá guinchos de alegria e passa perto do prisioneiro, fazendo-o ver o porrete. Finalmente, um homem pega o porrete e toma posição em frente ao prisioneiro, segurando a arma de maneira que este seja obrigado a olha-la. Enquanto isso, aquele que vai matá-lo sai com mais treze ou quatorze e eles colorem seus corpos com cinzas antes de voltarem ao lugar onde se encontra a vítima. O homem que segurava o porrete entrega-o ao matador; depois o chefe vem, pega dele a arma e a coloca entre as pernas, o que é visto como uma honra. A seguir, o responsável pelo golpe apanha o porrete novamente e diz: “Aqui estou eu, vou matar você, pois os seus companheiros mataram e devoraram muitos amigos meus.” O prisioneiro responde: “Se morro, também tenho muitos amigos que vão vingar-me.”Ao ouvir essas palavras, o outro golpeia por trás na cabeça, fazendo os miolos saltarem fora. Imediatamente as mulheres pegam o corpo, arrastam-no para o fogo e raspam sua pele. Fazem-no ficar completamente branco, tapando-lhe o traseiro com um pedaço de madeira para que não saia nada. Quando a pele está retirada, um homem pega o morto e corta as pernas acima do joelho e os braços junto ao corpo, então vêm quatro mulheres, apanham essas quatro partes e correm com elas em volta da cabana sob grandes gritos de alegria. Em seguida, os homens separam as costas com o traseiro da parte frontal e repartem a carne entre si. Mas são as mulheres que levam as vísceras, das quais, depois de cozidas, fazem uma papa denominada mingau, que elas e as crianças bebem. As mulheres comem as vísceras e também a carne da cabeça; os miolos, a língua e o que mais for aproveitável, são as crianças que recebem. Depois de tudo isso, cada um volta para sua cabana levando seu bocado. Aquele que matou o prisioneiro, por sua vez, escolhe mais um nome. O chefe risca uma marca na parte de cima do seu braço com o dente de um animal selvagem. Quando a ferida sara, a cicatriz é vista como um sinal de honra. O matador tem que ficar quieto em sua rede no dia da matança. Ele recebe um pequeno arco e flechas, a fim de passar o tempo atirando num alvo de cera. Fazem assim para que o braço não vá tremer devido ao horror do golpe fatal. Tudo isso eu presenciei pessoalmente e vi com meus próprios olhos. Os selvagens só sabem contar até cinco. Querendo contar mais do que isso, mostram os dedos das mãos e dos pés. Quando se referem a um número grande, apontam para quatro ou cinco pessoas, indicando com isso o número de seus dedos dos pés e das mãos. (*) O nome integral da obra é “A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens, encontrados no Novo Mundo, a América, e desconhecidos antes e depois do nascimento de Cristo na terra de Hessen, até os dois últimos anos passados, quando o próprio Hans Staden de Homberg, em Hessen, os conheceu, e agora os traz ao conhecimento do público por meio da impressão deste livro”.

Vieira justifica a escravidão (1633)


1633



O padre Antônio Vieira não foi apenas um eloqüente e brilhante pregador religioso, ligado aos problemas da fé da Igreja. Com igual talento, participava da vida política. Defendeu o partido dos portugueses contra os holandeses, condenou a escravidão dos índios, combateu a corrupção na administração colonial e advogou a tolerância religiosa em relação aos judeus. De um modo geral, mostrou-se sempre um pensador aberto e modernizante - salvo na questão da escravidão negra, que justificou com argumentos impressionantes. No trecho do "Sermão XIV, na Bahia, a irmandade dos pretos de um engenho, em dia de São João Evangelista, ano de 1633", que se publica abaixo, Vieira conclama os negros a verem o lado bom da escravidão. Aquilo que parecia desterro e cativeiro, não era 'senão milagre - e grande milagre'. Se tivessem ficado na África, não teriam conhecido a palavra de Cristo com a mesma facilidade que no Brasil. Por outro lado, seus sofrimentos nos doces engenhos, que se assemelhavam ao inferno, aproximavam-nos de Deus. “Sois companheiros de Cristo nos mistérios dolorosos de sua Cruz; assim o sereis nos gloriosos de sua Ressurreição e Ascensão". VI Parece-me que tenho provado os três nascimentos que prometi. E, posto que todos três sejam mui conformes às circunstâncias do tempo, o de Cristo, porque continuamos a oitava do seu nascimento, o de S. João, porque estamos no seu próprio dia, e o dos pretos, porque celebramos com eles a devoção da Virgem Santíssima, Mãe de Cristo, Mãe de S. João, e Mãe sua, sobre estas três grandes propriedades temos ainda outras três muito mais próprias: e quais são? Que unidos estes três nascimentos em um mesmo intento, todos e cada um deles se ordenam a declarar e persuadir a devoção do Rosário, e do Rosário particularmente dos pretos, e dos pretos em particular que trabalham neste e nos outros engenhos. Não são estas as circunstâncias mais individuais do lugar, das pessoas, e da festa e devoção que celebramos? Pois, todas elas nascem daqueles três nascimentos. O novo nascimento dos mesmos pretos, como filhos da Mãe de Deus, lhes mostra a obrigação que têm de servir, venerar e invocar a mesma Senhora com o seu Rosário. O novo nascimento de Cristo os persuade a que, sem embargo do contínuo e grande trabalho em que estão ocupados, nem por isso se esqueçam da soberana Mãe sua, e de lhe rezar o Rosário, ao menos parte, quando não possam todo. E, finalmente, o novo nascimento de S. João lhes ensina quais são, entre os mistérios do Rosário, os que mais pertencem ao seu estado, e com que devem aliviar, santificar e oferecer à Senhora o seu mesmo trabalho. Este é o fim de quanto tenho dito e me resta dizer, e este também o fruto de que mais se serve e agrada a Virgem do Rosário, e com que haverá por bem festejado o seu dia. E porque agora falo mais particularmente com os pretos, agora lhes peço mais particular atenção. Começando, pois, pelas obrigações que nascem do vosso novo e tão alto nascimento, a primeira e maior de todas é que deveis dar infinitas graças a Deus por vos ter dado conhecimento dc si, e por vos ter tirado de vossas terras, onde vossos pais e vós vivíeis como gentios, e vos ter trazidos a esta, onde, instruídos na fé, vivais como cristãos, e vos salveis. Fez Deus tanto caso de vós, e disto mesmo que vos digo, que mil anos antes de vir ao mundo, o mandou escrever nos seus livros, que são as Escrituras Sagradas. - Virá tempo, diz Davi, em que os etíopes - que sois vós - deixada a gentilidade e idolatria, se hão de ajoelhar diante do verdadeiro Deus: Coram illo procident Aethyopes - e que farão assim ajoelhados? Não baterão as palmas como costumam, mas, fazendo oração, levantarão as mãos ao mesmo Deus: Aethyopia praeveniet manus ejus Deo 31. - E quando se cumpriram estas duas profecias, uma do Salmo setenta e um, e outra do salmo sessenta e sete? Cumpriram-se principalmente depois que os portugueses conquistaram a Etiópia ocidental, e estão se cumprindo hoje, mais e melhor que em nenhuma outra parte do mundo nesta da América, aonde trazidos os mesmos etíopes em tão inumerável número, todos com os joelhos em terra, e com as mãos levantadas ao céu, crêem, confessam e adoram no Rosário da Senhora todos os mistérios da Encarnação, Morte e Ressurreição do Criador e Redentor do mundo, como verdadeiro Filho de Deus e da Virgem Maria. Assim como Deus na lei da natureza escolheu a Abraão, e na da escrita a Moisés, e na da graça a Saulo, não pelas serviços que lhe tivessem feito, mas pelos que depois lhe haviam de fazer, assim a Mãe de Deus, antevendo esta vossa fé, esta vossa piedade e esta vossa devoção, vos escolheu de entre tantos outros de tantas e tão diferentes nações, e vos trouxe ao grêmio da Igreja, para que lá, como vossos pais, vos não perdêsseis; e cá, como filhos seus, vos salvásseis. Este é o maior e mais universal milagre de quantos faz cada dia, e tem feito por seus devotos a Senhora do Rosário. Falando o texto sagrado dos filhos de Coré, que, como já dissemos, são os filhos da Senhora nascidos no Calvário, diz que, perecendo seu pai, eles não pereceram, e que isto foi um grande milagre: Factum est grande miraculum, ut, Core pereunte, filii illis non perirent 32. - Não perecerem nem morrerem os filhos quando perecem e morrem os pais é coisa muito natural, antes é lei ordinária da mesma natureza, porque, se com os pais morrerem juntamente os filhos, acabar-se-ia o mundo. Como diz logo o texto sagrado que não morrerem e perecerem os filhos de Coré, quando morreu e pereceu seu pai, não só foi milagre, senão um grande milagre: Factum est grande miraculum? - Ouvi o caso todo, e logo vereis em que consistiu o milagre e sua grandeza. Caminhando os filhos de Israel pelo deserto em demanda da Terra de Promissão, rebelaram-se contra Deus três cabeças de grandes famílias, Datã, Abiron e Coré, e querendo a divina justiça castigar exemplarmente a atrocidade deste delito, abriu-se subitamente a terra, tragou vivos aos três delinqüentes, e em um momento todos três, com portento nunca visto, foram sepultados no inferno. Houve porém neste caso uma diferença ou exceção muito notável, e foi que com Datã e Abiron pereceram juntamente, e foram também tragados da terra e sepultados no inferno seus filhos; mas os de Coré não, e este é o que a Escritura chama grande milagre: Factum est grande miraculum, ut Core pereunte, filii illius non perirent. - Abrir-se a terra não foi milagre? Sim, foi. Serem tragados vivos os três delinqüentes, não foi outro milagre? Também. Irem todos em corpo e alma ao inferno antes do dia do Juízo, não foi terceiro milagre? Sim, e muito mais estupendo. E, contudo, o milagre que a Escritura Sagrada pondera e chama grande milagre não foi nenhum destes, senão o perecer Coré e não perecerem seus filhos, porque o maior milagre e a mais extraordinária mercê, que Deus pode fazer aos filhos de pais rebeldes ao mesmo Deus, é que quando os pais se condenam, e vão ao inferno, eles não pereçam, e se salvem. Oh! se a gente preta, tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus e a sua Santíssima Mãe por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, e grande milagre? Dizei-me: vossos pais, que nasceram nas trevas da gentilidade, e nela vivem e acabam a vida sem lume da fé nem conhecimento de Deus, aonde vão depois da morte? Todos, como credes e confessais, vão ao inferno, e lá estão ardendo e arderão por toda a eternidade. E que, perecendo todos eles, e sendo sepultados no inferno como Coré, vós, que sois seus filhos, vos salveis, e vades ao céu? Vede se é grande milagre da providência e misericórdia divina: Factum est grande miraculum, ut Core pereunte filii illius non perirent. - Os filhos de Datã e Abiron pereceram com seus pais, porque seguiram com eles a mesma rebelião e cegueira; e outro tanto vos poderá suceder a vós. Pelo contrário, os filhos de Coré, perecendo ele, salvaram-se, porque reconheceram, veneraram e obedeceram a Deus; e esta é a singular felicidade do vosso estado, verdadeiramente milagroso. Só resta mostrar-vos que este grande milagre, como dizia, é milagre do Rosário, e que esta eleição e diferença tão notável a deveis à Virgem Santíssima, vossa Mãe, e por ser Mãe vossa. Isac, filho de Abraão - de quem vossos antepassados tomaram por honra a divisa da circuncisão, que ainda conservam, e do qual muitos de vós descendeis por via de Ismael, meio-irmão do mesmo Isac - este Isac, digo, tinha dois filhos, um chamado Jacó, que levou a bênção do céu, e outro chamado Esaú, que perdeu a mesma bênção. Tudo isto sucedeu em um mesma dia, em que Esaú andava pelos matos armado de arco e frechas, como andam vossos pais por essas brenhas da Etiópia; e, pelo contrário, Jacó estava em casa de seu pai e de sua mãe, como vós hoje estais na casa de Deus e da Virgem Maria. E por que levou a bênção Jacó, e a perdeu Esaú? Porque concorreram para a felicidade de Jacó duas coisas, ou duas causas, que a Esaú faltaram ambas. A primeira foi porque Rebeca - que era o nome da mãe - não amava a Esaú, senão a Jacó, e fez grandes diligências, e empregou toda a sua indústria em que ele levasse a bênção. A segunda, porque, estando duvidoso o pai se lhe daria a bênção ou não, sentiu que os vestidos de Jacó lhe cheiravam a rosas e flores, e tanto que sentiu este cheiro e esta fragrância logo lhe deitou a bênção. Assim o nota expressamente o texto: Statimque ut sensit vestimentorum illius fragrantiam, benedicens illi, ait: Ecce odor filii mei, sicut odor agri pleni, cui benedixit Dominus. Det tibi Deus de rore caeli, etc.33 - Uma e outra circunstância, assim da parte da mãe como do pai, foram admiráveis, e por isso misteriosas. Da parte da mãe que, sendo Jacó e Esaú irmãos, amasse com tanta diferença a Jacó; e da parte do pai que um acidente que parecia tão leve, como o cheiro das flores, lhe tirasse toda a dúvida, e fosse o última motivo de lhe dar a bênção. Mas assim havia de ser, para que o mistério se cumprisse com toda a propriedade nas figuras e ações que o representavam. Isac significava a Deus, Rebeca a Virgem Mãe, Jacó os seus filhos escolhidos, que sois vós, e Esaú os reprovados, que são os que, sendo do vosso mesmo sangue e da vossa mesma cor, não alcançaram a bênção que vós alcançastes. Para que entendais que toda esta graça do céu a deveis referir a duas causas: a primeira, ao amor e piedade da Virgem Santíssima, vossa Mãe; a segunda, à devoção do seu Rosário, que é o cheiro das rosas e flores, que tanto enlevam e agradam a Deus. Dos sacrifícios antigos, quando Deus os aceitava, diz a Sagrada Escritura que lhe agradava muito o cheiro e suavidade deles: Odoratus est Dominus odorem suavitatis34 - E a razão era porque naqueles sacrifícios se representavam os mistérios da vida e da morte de seu benditíssimo Filho. E como na devoção do Rosário se contém a memória e consideração dos mesmos mistérios, este é o cheiro e fragrância que tanto nele agrada, e tão aceito é a Deus. Em vós, antes de serdes cristãos, somente era futuro este cheiro das flores do Rosário, que hoje é presente, como também eram futuros naquele tempo os mistérios de Cristo; mas, assim como o merecimento destes mistérios antes de serem, somente porque haviam de ser davam eficácia àqueles sacrifícios, assim a vossa devoção do Rosário futura, e quando ainda não era, só porque Deus e sua Mãe a anteviram, com a aceitação e agrado que dela recebem, vos preferiram e antepuseram aos demais das vossas nações, e vos tiveram por dignos da bênção que hoje gozais, tanto maior e melhor que a de Jacó quanto vai da terra ao céu. Para que todos conheçais o motivo principal da vossa felicidade, e a obrigação em que ela vos tem posto de não faltar a Deus e a sua Santíssima Mãe com este quotidiano tributo da vossa devoção. VII Estou vendo, porém, que o vosso contínuo trabalho e exercício pode parecer ou servir de escusa ao descuido dos menos devotos. Direis que estais trabalhando de dia e de noite em um engenho, e que as tarefas multiplicadas umas sobre outras - que talvez entram e se penetram com os dias santos - vos não deixam tempo nem lugar para rezar o Rosário. Mas aqui entra o novo nascimento de Cristo, segunda vez nascido no Calvário, para com seu divino exemplo e imitação refutar a fraqueza desta vossa desculpa, e vos ensinar como no meio do maior trabalho vos não haveis de esquecer da devoção de sua Mãe, pois o é também vossa, oferecendo-lhe ao menos alguma parte, quando comodamente não possa ser toda. Davi - aquele santo rei, que também teve netos na Etiópia, filhos de seu filho Salomão e da rainha Sabá - entre os salmos que compôs, foram três particulares, aos quais deu por título Pro torcularibus, que em frase do Brasil quer dizer, para os engenhos. Este nome torcularia, universalmente tomado, significa todos aqueles lugares e instrumentos em que se espreme e tira o sumo dos frutos, como em Europa o vinho e o azeite, que lá se chamam lagares; e porque estes, em que no Brasil se faz o mesmo às canas doces, e se espreme, coze e endurece o sumo delas, têm maior e mais engenhosa fábrica se chamaram vulgarmente engenhos. Se perguntarmos, pois, qual foi o fim e intento de Davi em compor e intitular aqueles salmos nomeadamente para estas oficinas, respondem os doutores hebreus, e com eles Paulo Burgense, que o intento que teve o santo rei, e fez se praticasse em todo o povo de Israel, foi que os trabalhadores das mesmas oficinas ajuntassem o trabalho com a oração, e em lugar de outros cantares, com que se costumavam aliviar, cantassem hinos e salmos; e, pois, recolhiam e aproveitavam os frutos da terra, não fossem eles estéreis, e louvassem ao Criador que os dá. Notável exemplo por certo, e de suma edificação, que entre os grandes negócios e governo da monarquia tivesse um rei estes cuidados! E que confusão, pelo contrário, será para os que se chamam senhores de engenho, se atentos somente aos interesses temporais, que se adquirem com este desumano trabalho, dos trabalhadores seus escravos, e das almas daqueles miseráveis corpos, tiverem tão pouco cuidado, que não tratem de que louvem e sirvam a Deus, mas nem ainda de que o conheçam? Tornando aos salmos compostos para os engenhos - que depois veremos por que foram três - declara Davi no título do último quem sejam os operários destas trabalhosas oficinas, e diz que são os filhos de Coré: Pro torcularibus fillis Core (SI. 83, 1). - Segundo a propriedade da história, já dissemos que os filhos de Coré são os pretos, filhos da Virgem Santíssima, e devotos do seu Rosário. Segundo a significação do nome, porque Coré na língua hebraica significa Calvário, diz Hugo Cardeal que são os imitadores da Cruz e Paixão de Cristo crucificado: Filiis Core, id est, imitatoribus in loco Calvariae crucifixi. - Não se pudera nem melhor nem mais altamente descrever que coisa é ser escravo em um engenho do Brasil. Não há trabalho nem gênero de vida no mundo mais parecido à Cruz e Paixão de Cristo que o vosso em um destes engenhos. O fortunati nimium sua si bona norint! Bem-aventurados vós, se soubéreis conhecer a fortuna do vosso estado, e, com a conformidade e imitação de tão alta e divina semelhança, aproveitar e santificar o trabalho! Em um engenho sois imitadores de Cristo crucificado:Imitatoribus Christi crucifixi - porque padeceis em um modo muito semelhante o que o mesmo Senhor padeceu na sua cruz e em toda a sua paixão. A sua cruz foi composta de dois madeiros, e a vossa em um engenho é de três. Também ali não faltaram as canas, porque duas vezes entraram na Paixão: uma vez servindo para o cetro de escárnio, e outra vez para a esponja em que lhe deram o fel. A Paixão de Cristo parte foi de noite sem dormir, parte foi de dia sem descansar, e tais são as vossas noites e os vossos dias. Cristo despido, e vós despidos; Cristo sem comer, e vós famintos; Cristo em tudo maltratado, e vós maltratados em tudo. Os ferros, as prisões, os açoites, as chagas, os nomes afrontosos, de tudo isto se compõe a vossa imitação, que, se for acompanhada de paciência, também terá merecimento de martírio. Só lhe faltava a cruz para a inteira e perfeita semelhança o nome de engenho: mas este mesmo lhe deu Cristo, não com outro, senão com o próprio vocábulo. Torcular se chama o vosso engenho, ou a vossa cruz, e a de Cristo, por boca do mesmo Cristo, se chamou também torcular: Torcular calcavi solus35. - Em todas as invenções e instrumentos de trabalho parece que não achou o Senhor outro que mais parecido fosse com o seu que o vosso. A propriedade e energia desta comparação é porque no instrumento da cruz, e na oficina de toda a Paixão, assim como nas outras em que se espreme o sumo dos frutos, assim foi espremido todo o sangue da humanidade sagrada: Eo quod sanguis ejus ibi fuit expressus, sicut sanguis uvae in torculari- diz Lirano - et hoc in spineae coronae impositione, in flagellatione, in pedum, et manuum confiscione, et in lateris apertione. - E se então se queixava o Senhor de padecer só: Torcular calcovi solus - e de não haver nenhum dos gentios que o acompanhasse em suas penas: Et de gentibus non est vir mecum36 - vede vós quanto estimará agora que os que ontem foram gentios, conformando-se com a vontade de Deus na sua sorte, lhe façam por imitação tão boa companhia! Mas, para que esta primeira parte da imitação dos trabalhos da cruz o seja também nos afetos - que é a segunda e principal - assim como no meio dos seus trabalhos e tormentos se não esqueceu o Senhor de sua piedosíssima Mãe, encomendando-a ao discípulo amado, assim vos não haveis vós de esquecer da mesma Senhora, encomendando-vos muito particularmente na sua memória, e oferecendo-lhe a vossa. Depois de Cristo na cruz dar o reino do céu ao Bom Ladrão, então falou com sua Mãe, e parece que este, e não aquele, havia de ser o seu primeiro cuidado; mas seguiu o Senhor esta ordem, diz Santo Ambrósio, para mostrar, segundo as mesmas leis da natureza, que mais fazia em ter da própria Mãe esta lembrança que em dar a um estranho o reino: Pluris putans quad pietatis officia dividebat, quam quod regnum caeleste donabat. - Ao ladrão deu Cristo menos do que lhe pediu, e à Mãe deu muito mais do que tinha dado ao ladrão, porque o ladrão pediu-lhe a memória, e deu-lhe o reino, e à Mãe deu-lhe muito mais que o reino, porque lhe deu a memória. Esta memória haveis de oferecer à Senhora em meio dos vossos trabalhos, à imitação de seu Filho, e não duvideis ou cuideis que lhe seja menos aceita a vossa, antes, em certo modo, mais. Porquê? Porque nas Ave-Marias do vosso Rosário a fazeis com palavras de maior consolação do que as que lhe disse o mesmo Filho, conformando-se com o estado presente. O Filho chamou-lhe mulher, e vós chamar-lhe-eis a bendita entre todas as mulheres: o Filho não lhe deu nome de mãe, e vós a invocareis cento e cinqüenta vezes com o nome de Santa Maria, Mãe de Deus. Oh! quão adoçada ficará a dureza, e quão enobrecida a vileza dos vossos trabalhos na harmonia destas vozes do céu, e quão preciosas serão diante de Deus as vossas penas e aflições, se juntamente lhas oferecerdes em união das que a Virgem Mãe sua padeceu ao pé da cruz! E por que a continuação do vosso mesmo trabalho vos não pareça bastante escusa para faltardes com vossas orações a esta pensão de cada dia, adverti que se o vosso Rosário consta de três partes estando Cristo vivo na Cruz somente três horas, nessas três horas orou três vezes. Pois, se Cristo ora três vezes em três horas, sendo tão insofríveis os trabalhos da sua cruz, vós, por grandes que sejam os vossos, por que não orareis três vezes em vinte e quatro horas? Dir-me-eis que as orações que fez Cristo na cruz foram muito breves. Mas nisso mesmo vos quis dar exemplo, e vos deixou uma grande consolação. Para que quando, ou apertados do tempo, ou oprimidos do trabalho não puderdes rezar o Rosário inteiro, não falteis ao menos em rezar parte, consolando-vos com saber que nem por isso as vossas orações abreviadas serão menos aceitas a Deus e à sua Mãe, assim como o foram as de Cristo a seu Eterno Pai. Agora acabareis de entender por que razão os salmos que Davi compôs para os que trabalham nos engenhos foram somente três. Lede-os, ou leiam-nos por vós os que os entendem, e acharão que só três se intitulam Pro torcularibus. E por que três, nem mais nem menos? Porque em três partes, nem mais nem menos, dividiu Davi o seu Saltério, e a Senhora o seu Rosário. O que hoje chamamos Rosário, antes que as Ave-Marias se convertessem milagrosamente em rosas, chamava-se o Saltério da Virgem, porque assim como o Saltério era composto de cento e cinqüenta salmos, assim o Rosário se compõe de cento e cinqüenta saudações angélicas. Que fez pois Davi, como rei pio e como profeta? Como rei pio, que atendia ao bem presente do seu reino, vendo que os trabalhadores dos lagares não podiam rezar o Saltério inteiro, e tão comprido como é, recopilou e abreviou o mesmo Saltério, e reduziu as três partes, de que é composto, aos três salmos que intitulou Pro torcularibus. E como profeta que via os tempos futuros, e o Rosário que havia de compor a Mãe do que se havia de chamar Filho de Davi, à imitação do seu Saltério, introduziu no mesmo Saltério, já abreviado e reduzido a três salmos, os três mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos em que está repartido o Rosário. Assim foi, e assim se vê claramente nos mesmos três salmos. Porque o primeiro - que é o salmo oito - tendo por expositor a São Paulo, contém os mistérios da Encarnação e infância do Salvador: Ex ore infantium et lactentium perfecisti laudem37. - O segundo - que é o salmo oitenta - contém os mistérios da Cruz e da Redenção, representados na do Egito: Ego sum Dominus Deus tuus, qui eduxi te de terra Aegypti38. E o terceiro -que é o salmo oitenta e três - contém os mistérios da Glória e da Ascensão: Beatus vir cujus est auxilium abs te, ascensiones in corde suo disposuit in valle lachrymarum39. Assim, pois, como os trabalhadores hebreus - que eram os fiéis daquele tempo – no exercício dos seus lagares meditavam e cantavam o Saltério de Davi recopilado naqueles três salmos, porque não podiam todo, ao mesmo modo vós, quando não possais rezar todo o Rosário da Senhora, ao menos com parte das três partes em que ele se divide haveis de aliviar e santificar o peso do vosso trabalho na memória e louvores dos seus mistérios. E este foi finalmente o exemplo e exemplar que vos deixou Cristo nas três breves orações da sua Cruz. Porque, se bem advertirdes, em todas três, pela mesma ordem do Rosário, se contêm os mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos. Os gloriosos, na terceira, em que encomendou sua alma nas mãos do Padre, partindo-se deste mundo para a glória: Pater, in manus tuas commendo spiritum meum40. - Os dolorosos, na segunda, em que amorosamente queixoso publicou a altas vozes o excesso das suas dores: Deus meus, Deus meus, ut quid dereliquisti me41? E os gozosos, rogando pelos mesmos que o estavam pregando na Cruz, e alegando que não sabiam o que faziam: Non enim sciunt quid faciunt42 - porque eles o crucificavam para o atormentarem, e ele se gozava muito de que o crucificassem, como declarou São Paulo: Proposito sibi gaudio, sustinuit crucem43. VIII Resta o último e excelente documento de São João, também nova e segunda vez nascido ao pé da cruz: e qual é este documento? Que entre todos os mistérios do Rosário haveis de ser mais particularmente devotos dos que são mais próprios do vosso estado, da vossa vida e da vossa fortuna, que são os mistérios dolorosos. A todos os mistérios dolorosos - e não assim aos outros - se achou presente São João. Assistiu ao do Horto com os dois discípulos; assistiu ao dos açoites com a Virgem Santíssima no Pretório de Pilatos; assistiu do mesmo modo e no mesmo lugar à coroação de espinhos; seguiu ao Senhor com a Cruz às costas até ao Monte Calvário; e no mesmo Calvário se não apartou do seu lado até expirar e ser levado à sepultura. Estes foram os mistérios próprios do Discípulo amado, que, como a dor se mede pelo amor, a ele competiam mais os dolorosos. Estes foram os seus, e estes devem ser os vossos, e não só por devoção ou eleição, nem só por condição e semelhança da vossa cruz, mas por direito hereditário, desde o primeiro etíope ou preto que conheceu a Cristo e se batizou. É caso muito digno de que o saibais. Apareceu um anjo a São Felipe diácono, e disse-lhe que se fosse pôr na estrada de Gaza. Posto na estrada, tornou-lhe a aparecer, e disse-lhe que se chegasse a uma carroça que por ali passava. Chegou, e viu que ia na carroça um homem preto - que era criado da rainha de Etiópia - e ouviu que ia lendo pelo profeta Isaías. O lugar em que estava era aquele famoso texto do capítulo cinqüenta e três, em que o profeta descreve mais claramente que nenhum outro a Morte, Paixão e Paciência de Cristo: Tanquam ovis ad occisionem ductus est: et sicut agnus coram tondente se, sine voce, sic non aperuit os suum, etc44. - Perguntou-lhe o diácono se entendia o que estava lendo, e como respondesse que não, e lhe pedisse que lho declarasse, foi tal a declaração que, chegando depois ambos a um rio, o etíope pediu ao santo que o batizasse. E este foi o primeiro gentio depois de Cornélio Romano, e o primeiro preto cristão que houve no mundo. Tudo nesta história, que é dos Atos dos Apóstolos, referida por São Lucas, são mistérios. Mistério foi o primeiro aviso do anjo ao santo diácono, e mistério o segundo; mistério que um gentio fosse lendo pela Sagrada Escritura, e mistério que caminhando a fosse lendo; mistério que o profeta que lia fosse Isaías, e mistério sobre todos misterioso que o lugar fosse da Paixão e Paciência de Cristo, porque, para dar ocasião ao diácono de pregar a fé a um gentio, bastava que fosse qualquer outro. Pois, porque ordenou Deus que fosse sinaladamente aquele lugar, em que se descrevia a sua paixão e os tormentos com que havia de ser maltratado, e a paciência, sujeição e silêncio com que os havia de suportar? Sem dúvida porque neste primeiro etíope tão antecipadamente convertido se representavam todos os homens da sua cor e da sua nação que depois se converteram. Assim o dizem São Jerônimo e Santo Agostinho, e aprovam com texto de Davi: Aethiopia praeveniet manus ejus Deo45. E como a natureza gerou os pretos da mesma cor da sua fortuna: Infelix genus hominum, et ad servitutem natum46 - quis Deus que nascessem à fé debaixo do signo da sua Paixão e que ela, assim como lhes havia de ser o exemplo para a paciência, lhes fosse também o alívio para o trabalho. Enfim, que de todos os mistérios da Vida, Morte e Ressurreição de Cristo, os que pertencem por condição aos pretos, e como por herança, são os dolorosos. Destes devem ser mais devotos, e nestes se devem mais exercitar, acompanhando a Cristo neles, como fez São João na sua Cruz. Mas, assim como entre todos os mistérios do Rosário estes são os que mais propriamente pertencem aos pretos, assim entre todos os pretos os que mais particularmente os devem imitar e meditar são os que servem e trabalham nos engenhos, pela semelhança e rigor do mesmo trabalho. Encarecendo o mesmo Redentor o muito que padeceu em sua sagrada Paixão, que são os mistérios dolorosos, compara as suas dores às penas do inferno: Dolores inferni circumdederunt me47. - E que coisa há na confusão deste mundo mais semelhante ao inferno que qualquer destes vossos engenhos, e tanto mais quanto de maior fábrica? Por isso foi tão bem recebida aquela breve e discreta definição de quem chamou a um engenho de açúcar doce inferno. E, verdadeiramente, quem vir na escuridade da noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes; as labaredas que estão saindo a borbotões de cada uma, pelas duas bocas ou ventas por onde respiram o incêndio; os etíopes ou ciclopes banhados em suor, tão negros como robustos, que soministram a grossa e dura matéria ao fogo, e os forcados com que o revolvem e atiçam; as caldeiras, ou lagos ferventes, com os cachões sempre batidos e rebatidos, já vomitando escumas, já exalando nuvens de vapores mais de calor que de fumo, e tornando-os a chover para outra vez os exalar; o ruído das rodas, das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente, e gemendo tudo ao mesmo tempo, sem momento de tréguas nem de descanso; quem vir, enfim, toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela Babilônia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas e Vesúvios, que é uma semelhança de inferno. Mas, se entre todo esse ruído, as vozes que se ouvirem forem as do Rosário, orando e meditando os mistérios dolorosos, todo esse inferno se converterá em paraíso, o ruído em harmonia celestial, e os homens, posto que pretos, em anjos. Grande texto de Davi. Estava vendo Davi essas mesmas fornalhas do inferno e essas mesmas caldeiras ferventes, e, profetizando literalmente dos que viu atados a elas, escreveu aquelas dificultosas palavras: Si dormiatis inter medios cleros, pennae columbae deargentatae, et posteriora dorsi ejus in pallore auri48. Cleros quer dizer lebetes, ou, como verte com maior propriedade Vatablo: Si dormiatis inter medias caldarias, vasaque plena fulligine. - Diz, pois, o profeta: - Se passardes as noites entre as caldeiras, e entre esses grandes vasos fuliginosos, e tisnados com e fumo e labaredas das fornalhas, que haveis de fazer, ou que vos há de suceder? - Agora entra o dificultoso das palavras: Pennae columbae por uma parte e douradas por outra. - E que tem que ver a pomba com o triste escravo e negro etíope, que entre todas as aves só é parecido ao corvo? Que tem que ver a prata e o ouro com o cobre da caldeira e o ferro da corrente a que está atado? Que tem que ver a liberdade de uma ave com penas e asas para voar com a prisão do que se não pode bolir dali por meses e anos, e talvez por toda a vida? Aqui vereis quais são os poderes e transformações que obra o Rosário nos que oram e meditam os mistérios dolorosos. A pomba na Sagrada Escritura, como consta de infinitos lugares, não só é símbolo da oração e meditação absolutamente, senão dos que oram e meditam em casos dolorosos; por isso el-rei Ezequias nas suas dores dizia: Meditabor ut columba49. - E a razão desta propriedade, e semelhança é porque a pomba com os seus arrulhos não canta como as outras aves, mas geme. Quer dizer pois o profeta, e diz admiravelmente, falando convosco na mais miserável circunstância deste inferno da terra: Si dormiatis inter medias caldarias, vasaque plena fulligine - se não só de dia, mas de noite vos virdes atados a essas caldeiras com uma forte cadeia, que só vos deixe livres as mãos para o trabalho, e não os pés para dar um passo, nem por isso vos desconsoleis e desanimeis: orai e meditai os mistérios dolorosos, acompanhando a Cristo neles, como São João, e nessa triste servidão de miserável escravo tereis o que eu desejava sendo rei, quando dizia: Quis dabit mihi pennas sicut columbae, et volabo, et requiescam (SI. 54, 7): Oh! quem me dera asas como de pomba para voar e descansar? - E estas são as mesmas que eu vos prometo no meio desta miséria: Pennae columbae de argentatae, et posteriora ejus in pallore ouri - porque é tal a virtude dos mistérios dolorosos da Paixão de Cristo para os que orando os meditam gemendo como pomba, que o ferro se lhes converte em prata, o cobre em ouro, a prisão em liberdade, o trabalho em descanso, o inferno em paraíso, e os mesmos homens, posto que pretos, em anjos. Dizei-me que coisa é um anjo? Os anjos não são outra coisa senão homens com asas, e esta figura não lha deram os pintores, senão o mesmo Deus, que assim os mostrou a Isaías e assim os mandou esculpir no Templo. Pois, essas são as asas prateadas e douradas com que desse vosso inferno vos viu Davi voar ao céu para cantar o Rosário no mesmo coro com os anjos. Nem vos meta em desconfiança a vossa cor nem as vossas fornalhas, porque na fornalha de Babilônia, onde o mestre da capela era Filho de Deus, no mesmo coro meteu as noites com os dias: Benedicite, noctes et dies, Domino50. Antes vos digo - e notai muito isto para vossa consolação - que se no céu não entraram vossas vozes com as dos anjos o Rosário que lá se canta não seria perfeito. Consta de muitas revelações e visões de santos que os anjos no céu também rezam ou cantam o Rosário, por sinal que ao nome de Maria fazem uma profunda inclinação, e ao nome de Jesus se ajoelham todos; e digo que, entrando vós no mesmo coro, será o Rosário dos anjos mais perfeito do que é sem vós, porque a perfeição do Rosário consiste em se conformar quem o reza com os mistérios que nele meditam, gozando-se com os gozosos, doendo-se com os dolorosos e gloriando-se com os gloriosos. E posto que os anjos nos gozosos se podem gozar, e nos gloriosos se podem gloriar, nos dolorosos não se podem doer, porque o seu estado é incapaz de dor. Isto, porém, que eles não podem fazer no céu, fazeis vós na terra, se no meio dos trabalhos que padeceis, vos doeis mais das penas de Cristo que das vossas. Assim que do Rosário dos anjos, e do vosso, ou repartidos em dois coros, ou unidos em um só, se inteira a perfeição, ou se aperfeiçoa a harmonia dos mistérios do Rosário. Os dolorosos - ouçam-me agora todos - os dolorosos são os que vos pertencem a vós, como os gozosos aos que, devendo-vos tratar como irmãos, se chamam vossos senhores. Eles mandam, e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que os das vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é? Sois como as abelhas, de quem disse o poeta: Sic vos non vobis mellificatis, apes51. - O mesmo passa nas vossas colmeias. As abelhas fabricam o mel sim, mas não para si. E, posto que os que o logram é com tão diferente fortuna da vossa, se vós, porém, vos souberdes aproveitar dela, e conformá-la com o exemplo e paciência de Cristo, eu vos prometo primeiramente que esses mesmos trabalhos vos sejam muito doces, como foram ao mesmo Senhor: Dulce lignum, dulces clavos, dulcia ferens pondera - e que depois - que é o que só importa - assim como agora, imitando a São João, sois companheiros de Cristo nos mistérios dolorosos de sua cruz, assim o sereis nos gloriosos de sua Ressurreição e Ascensão. Não é promessa minha, senão de São Paulo, e texto expresso de fé: Haeredes quidem Dei, cohaeredes outem Christi: si tamen compatimur ut et conglorificemur52. - Assim como Deus vos fez herdeiros de suas penas, assim o sereis também de suas glórias, com condição, porém, que não só padeçais o que padeceis, senão que padeçais com o mesmo Senhor, que isso quer dizer com patimur. Não basta só padecer, mas é necessário padecer com Cristo, como São João. Oh! como quisera e fora justo que também vossos senhores consideraram bem aquela conseqüência: Si tamen compatimur ut et conglorificemur. - Todos querem ir à glória e ser glorificados com Cristo, mas não querem padecer nem ter parte na cruz com Cristo. Não é isto o que nos ensinou a Senhora do Rosário na ordem e disposição do mesmo Rosário. Depois dos mistérios gozosos pôs os dolorosos, e depois dos dolorosos os gloriosos. Por quê? Porque os gostos desta vida têm por conseqüência as penas, e as penas, pelo contrário, as glórias. E se esta é a ordem que Deus guardou com seu Filho e com sua Mãe, vejam os demais o que fará com eles. Mais inveja devem ter vossos senhores às vossas penas do que vós aos seus gostos, a que servis com tanto trabalho. Imitai, pois, ao Filho e à Mãe de Deus, e acompanhai-os com São João nos seus mistérios dolorosos, como próprios da vossa condição e da vossa fortuna, baixa e penosa nesta vida, mas alta e gloriosa na outra. No céu cantareis os mistérios gozosos e gloriosos com os anjos, e lá vos gloriareis de ter suprido com grande merecimento o que eles não podem, no contínuo exercício dos dolorosos. (31) A Etiópia se adiantará para levantar as suas mãos a Deus (SI. 67, 32). (32) Sucedeu o grande milagre, que, perecendo Coré, não pereceram seus filhos (Num. 26, 10). (33) Logo que ressentiu a fragrância de seus vestidos, abençoando-o disse; - Eis o cheiro de meu filho, bem como o cheiro de um campo cheio que o Senhor abençoou. Deus te dê do orvalho do céu, etc. (Gên.27,27s). (34) Percebeu o olfato do Senhor um suave cheiro (Gên. 8,21) (35) Eu calquei o lagar sozinho (Is. 63,3). (36) E das gentes não se acha homem algum comigo (Ibid. (37) Tu fizeste sair da boca dos infantes e dos que mamam um louvor perfeito (SI. 8,1). (38) Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito (Sl.80,11). (39) Bem-aventurado o varão que de ti espera socorro, que dispôs elevações no seu coração neste vale de lágrimas (SI. 83,6). (40) Pai, nas tuas mãos encomendo o meu espírito (Lc. 23,46) (41) Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste (Mt. 27,46)? (42) Porque não sabem o que fazem (Lc. 23,34). (43) Havendo-lhe sido proposto gozo, sofreu a cruz (Hebr. 12,2). (44) Como ovelha foi levado ao matadouro, e como cordeiro mudo diante do que o tosquia, assim ele não abriu a sua boca, etc. (At. 8.32; Is. 53,7). (45) A Etiópia se adiantará para levantar as suas mãos a Deus (SI. 67,32). (46) Infeliz gente, nascida para a servidão (Mafeu). (47) Dores de inferno me cercaram (SI. 17,6). (48) Na versão clássica do Pe. Antônio Vieira de Figueiredo: - Se dormirdes entre o meio das sortes (herdades) sereis como as penas das pombas, argentadas, e os remates do lombo dela em amarelidão de ouro (Sl.67, 14). – Segundo a nova tradução latina dos Salmos, o sentido é este: Enquanto descansáveis no meio dos redis, as asas das pombas brilhavam como prata, e as suas penas amarelas de ouro. (49) Gemerei como a pomba (Is. 38,14). (50) Noites e dias, bendizei o Senhor (Dan. 3,71). (51) Assim vós, abelhas. produzis o mel, porém não para vós (Virgil.). (52) Herdeiros verdadeiramente de Deus, e co-herdeiros de Cristo, se é que todavia nós padecemos com ele, para que sejamos também com ele glorificados (Rom. 8, 17).

bottom of page