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Franklin Martins

22/01/1996


Touro novo


O acordo entre o Governo e as centrais sindicais em torno do projeto da reforma da Previdência é o fato po-litico mais importante ocorrido desde que o presidente Fernando Henrique Cardoso, no primeiro semestre do ano passado, formou a maioria parlamentar mais folga-da de que se tem notícia na democracia brasileira e lo-grou aprovar as emendas constitucionais que quebra-ram os monopólios estatais e abriram a economia.

Depois da cerimônia que reu-niu o presidente e os sindica-listas no Palácio do Planalto, a Governo Fernando Henrique não será mais o mesmo. Tam-pouco a oposição. Com sua lín-gua presa e seu verbo solto, o presidente da C117, Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, quebrou o ferrolho do "quatro a um" que comandou a ativida-de política no ano passado — ou seja, para cada quatro vo-tos do Governo no Congresso, a oposição tinha apenas um. Essa disparidade de forças, confirmada monotonamente a cada votação no parlamento, acabou produzindo dois efei-tos. Primeiro, os partidos, gru-pos e personalidades da coali-zão governista, sem adversá-rios à vista, passaram a se co-mer entre si; dai os grampos, os vazamentos e o nhenhe-nhém dos últimos tempos. Se-gundo, a oposição, deprimida pela própria debilidade, sim-plesmente sumiu de cena, à es-pera de dias melhores. Que o tempo e o acaso resolvessem aquilo que lhe parecia acima de suas forças e de sua ciên-cia! Para o bem ou para o mal, esse ferrolho foi quebrado agora por Vicentinho. As por-tas que separavam Governo e oposição estão abertas. As di-reções do PT e do PDT, talvez viciadas em ambientes fecha-dos, reagiram como se temes-saiu que, junto com a corrente de ar, viessem a contaminação e a doença, Do outro lado, os mais aleitou já estão falando em pacto saciai. O mais prová-vel é que não ocorra nem uma coisa nem outra, mas apenas aquilo que os criadores de ga-do sabem ser indispensável, periodicamenta, para 'alvar seus rebanhos da mesmice e da degeneração: um choque genético. Vicentinho é o touro novo no pedaço. Pulando a cerca daqui para lá, de lá para cá, sem medo de ser leio, pode fazer um bem danado aos dois lados, que andam preeisadíssa mos de sangue fresco. Os re-sultados dessas aventuras só serão sentidos a médio prazo. A natureza tem seu próprio rit-mo e não adianta apressá-la. O acordo esboçado em tor-no da POevidência, porém, tent também conseqüências ime-diatas. Tecnicamente, o Gover-no levou bem menos do que gostaria. Não conseguiu fixar o principio da aposentadoria por 'idade e teve de aceitar o critério de 35 anos de contri-buição, o que não está muito distante da aposentadoria aos 35 anos de serviço, atualmente vigente, cujo impacto sobre o caixa 'do INSS é conhecido, Tampouco logrou o Governo assentar uma base firme para a introdoção do modelo misto de Previdência, com a abertu-ra da aposentadoria comple-mentar para a iniciativa priva-da. Embora não haja Impedi-mento constitucional para es-sa mudança, não se criou ajas,-

ra o clima adequado para a adoção de um programa vigo-roso nesse sentido. Não é pou-ca coisa para um Governo que considera a disseminação dos fundos de pensão decisiva pu-ra aumentar a taxa de poupan-ça da nossa economia e seus índices de crescimento. Mas, apesar dessas conces-sões, o Governo não fez um mau negócio, Afinal, criou con-dições para estancar a sangria de recursos coro as aposenta-dorias no serviço público, que consomem quase tanto quan-to a folha de funcionários ata vos, e eliminou praticamente todas as aposentadorias aspe-ciais, outro ralo da Previdên-cia, Arrancaria o Governo mais do que isso de deputados e se» nadares num ano eleitoral? O acordo tampouco foi ruim para as centrais sindicais. Ga-nharain o que mais queriam; a retirada da emenda que esta-balada a idade mínima de apo-sentadoria de 65 anos para os homens e de 60 para as milhe-res. Venceram ainda em dois pontos importantes: o Gover-no não poderá mais usar re-cursos da Seguridade Social para suas despesas e a gestão da Previdência passará a ser quadripartite com a participa-çâo de trabalhadores e apo-sentados. Nos demais Itens, cederam. Politicamente, em termos imediatos, o acordo foi positi-vo tanto para e Governo quan-to para a CUT. Graças a ele, o Palácio do Planalto conseguiu restabelecer o clima de con-fiança entre seus aliados. O apoio de Vicentinho ao ajuste da Previdência — ajuste, por-que a reforma ficou para o fu-turo — dissipou a intranqüili-dade pré-eleitoral da bancada governista. Pouco importa agora que a oposição vote con-tra. O Governo vencerá com folga a votação, ganhando fOle-go para as reformas adminis-trativa e tributária, De quebra, Fernando Henrique pode co-memorar outro fato: introdu-ziu um novo parceiro no jogo, para contrabalançar o peso às vezes excessivo cio PFL nas ar-ticulações. Quanto à oposição, pode não saber disso, mas também saiu Lucrando, no plano políti-co, com o acordo. Vicantinho mostrou que a negociação, ao contrário do isolamento, é ca-paz de transformar um placar de quatro a um num de três a dois. Irritou muita gente den-tro de seu partido, mas tam-bém despertou outros tantos. O delicado equilíbrio interno em que o PT meteu-se depois da segunda derrota de Lula pa-ra aresidente, que pode ser re-sumido na fórmula "pasmacei-ra com dignidade", acabou. O episódio mostrou que for-ças poderosas no partido e no movimento sindical não mei-taMmais ficar fora do jogo po-lítico. Já lamberam as feridas da derrota e decidiram tirar o lute. É a vida que continua,


Franklin Martins

21/10/1995

Nulo e inútil


e O PT, capitaneando as esquerdas, decidiu recomendar o voto nulo no segundo turno das eleições para prefeito do Rio de Janeiro. Na opinião da cúpula petista, não exis-tiriam dilerenças entre Luiz Paulo Conde, do PFL, e Sér-gio Cabral Filho, que seriam farinha do mesmo saco, As-sim sendo, o PT está pedindo aos seus eleitores que anu-lem o voto. Trata-se, segundo Chico Alencar, de urna postura ditada por "audaciosa coerência". Será?

pouquíssimo provável que a palavra de ordem lançada pelo PT seja obedecida fora dos estreitos círculos da mili-tantes partidários. O eleitor, inclusive o eleitor petista, sa-be que sempre existe um can-didato melhor do que o outro ou — o que vem a ser a masma celsa — um candidato menos ruim do que o outro, Aliás, es-sa é a lógica das eleições em dois turnos. Ne primeiro, vota-mos naquele que nos parece o melhor. No segundo, peio me-nos no caso das pessoas cujo candidato foi eliminado da dis-puta; votamos contra aquele que julgamos ser o pior. Pode não ser muito edificam te, mas é assim que a coisa fure dona. E nisso não há nada de mais: numa democracia, tão importante quanto eleger al-guém em quem acreditamos é impedir a ascensão de líderes dos quais desconfiamos pro-fundamente. Já era assim na Grécia antiga, onde a escolha dos governantes não costuma-va atrair mais gente para as as-sembléias cio que as votações caie condenavam certos figu-rões ao ostracismo. Assim, a esmagadora maio-ria dos eleitores que apoiaram Chico Alencar em 3 de outubro não anulará seu voto no dia 15 de novembro. Todos sabem disso, inclusive a direção do PT. No entanto, ela achou por bem recomendar a anulação do voto. Por que medida tão extrema? É bom lembrar que os petistas poderiam se limitar a deixar a questão em aberto, não optando por nenhum dos candidatos. Não é porque se está furado jogo que se vai im-pedir os outros de brincar. É assim que se comportam qua-se todos os partidos em situa-ções semelhantes, O PT, porém, achou que isso seria pouco e apelou para o voto nulo. Preocupou-se em deixar claro que não se trata de um repúdio ao processo eleitoral em si, como ocorreu nos pleitos de 1966 e 197D, quando a parcela da esquerda que acreditava que a luta ar-mada era o único caminho pa-ra derrubar a ditadura militar pregou o voto nulo contra aquilo que, na sua avaliação, era tão-somente urna farsa eleitoral que legitimava o regi-me de força. O PT faz questão de dizer que continua acredi-tando no caminho eleitoral pa-ra chegar ao poder. Estaria o partido, então, re-pudiando especificamente es-sas eleições, por ter descober-to nela um vicio ou uma rouba-lheira que tornariam inaceitá-veis os seus resultados? Não, não houve qualquer desanda séria nessa sentido, É bem ver-dade que o PT andou falando que as candidaturas de Conde e Cabral só passaram para o segundo turno porque foram impostas ao povo pelo marke-Ling, mas Lados sabem, a co-meçar pelo PT, que isso não passa de choro de perdedor. As eleições foram limpas e cre-denciaram-se para o turno fi-nal os que receberam mais vo-tos do eleitorado, A pregação petista do voto

nulo, portanto, não é nem um repúdio ao processo eleitoral em si, nem uma denúnc i a espe-cifica das eleições de 3 de ou-tubro. Como não é tampouco a útil. catática que permitiria ao par-tido dissociar-se dos dois can-didatos que restaram na arena, e seu impacto no resultado de 15 de novembro será mínimo, por que o PT se viu (orçado a adotá-la? Por duas razões, ambas de economia interna. A primeira é que o PT sofre da síndrome da cavalaria. Nunca bate em red-rada. Dá meia-volta volver, e avança a pleno galope. Em ter-mos práticos, dá no mesmo, mas é sempre melhor manter a pose na hora da derrota do que analisar por que ela se deu. De quebra, pode-se espa-lhar aos quatros ventos as vir-tudes da "audaciosa coerên-cia". A segunda razão para o PT adotar o voto nulo é a mesma que levava os cavaleiros que partiam para as Cruzadas a re-correr aos cintos de castidade para garantir a fidelidade de suas mulheres. Como acaime é fraca e a tentação, as vezes, in-suportável, é bom não brincar em serviço. Se o partido dei-xasse a questão em aberto, as opções feitas pelos eleitores petistas tenderiam a contami-nar a militãnela, que poderia acabar descobrindo as exce-lências do mal menor, E qual seria o mal menor? Para a maioria do eleitorado petista, Luiz Paulo Conde. O candidato de César Maia cOrl-seguiu carimbar a imagem de que de conservador não tem nada. Seria apenas um técnico — inclusive com passado de esquerda — que, por vicia.situ-der de nossa babe! partidária, está sendo obrigado a ostentar o rótulo do PFL. Ainda por cima teve a cora-gem de defender posições are-jadas e modernas em temas polêmicos como legalizsição do aborto e união de homosse-xuais. É o tipo do sapo que dá para o eleitor de Chico Alencar engolir. Já Serginho Cabral enfrenta o ânus de ser ligado a Marcello Alencar, que, aos olhos roces-tas, aparece corno um verdugo do funcionalismo público e um administrador, digamos, à mo-da antiga. O candidato tucano paga ainda o preço de ser uni político e comportar-se como um político, algo que, definiti-vamente, não cai bem no elei-torado petista. Será uma surpresa se conse-guir cativá-lo. Tudo somado, o voto nula terá dois efeitos, deixará o eiei• tor petista livre para votar em quem quiser — provavelmente em Conde — e o militante do PT livre de qualquer responsa-bilidade pot essa decisão. Na-tos não faria melhor. Mas quem disse que ele ficou bem na História? PS: Nas duas próximas se-manas, estarei de férias. Tam-bém sou filho de Deus, Márcio Moreira Alves, titular da colu-na, me substituirá. O leitor cer. lamente sairá lucrando


Franklin Martins

20/03/1995


Sentou no banquinho


Pugilistas experientes nunca dispensam o ban-quinho no canto do rin-gue no intervalo entre os rounds, mesmo quando ainda estão descansados. Com isso, não só poupam energias para uma luta que pode ser longa, como procuram esconder do adversário a preciosa in-formação sobre o mo-mento exato em que as pernas passam 'a pesar como chumbo e o exige.-Mo a queimar como áci-do ao entrar nos pul-mões. Já os novatos, me-nos manhosos e mais exibicionistas, são dados a recusar o tamborete no começo da luta. Mas, mais cedo ou mais tarde, desabam sobre ele. Con-tra o cansaço não há po-se que resista. Ao senador Eduardo Suplicy, do PT de São Paulo, que, dizem, foi um bom boxeador na juven-tude, não deve ter passa-do despercebido que o presidente Fernando Henrique Cardoso sen-. tou no banquinho na se-mana passada, depois de ter desfilado durante os dois primeiros meses de um combate previsto pa-ra quarenta e oito como se tivesse todo o gás do mundo e não pudesse ser tocado pelo adversário. Nos primeiros dias de seu Governo, Fernando Henrique foi logo avisan-do que não pretendia fi-car recebendo deputados e senadores no palácio. Na última terça-feira, ' voltou atrás. Instituiu o • "dia do parlamentar", em que os congressistas terão direito a fazer pe-quenos pedidos, apresen-tar pleitos regionais e ti-, rar fotos com o presiden-te. A novidade, ao que parece, veio, para ficar. Além disso, Fernando Henrique, que antes não abria mão de ser ele pró-prio o coordenador polí-tico de seu Governo, deu sinais de que delegará a tarefa a outra pessoa. Por último, foram toma-das providências para superar o mal-estar cres-cente dentro do Ministé-rio, que parecia estar se dividindo entre minis-trios de primeira e de se-gunda classe. A MP 935, que dera poderes à Fa-zenda e ao Planejamento para invadir as searas da Saúde e da Previdência, foi revista. Ao mesmo tempo, amorteceu-se o impacto negativo, espe-cialmente no meio mili-tar, da transferência pa-ra o início do mês do pa-gamento do funcionalis-mo público com a deci-são de antecipar uma parcela de 40% dos ven-cimentos. Todas essas iniciativas devem ajudar o Governo a recuperar o fôlego ne-cessário para enfrentar as difíceis batalhas que tem pela frente, entre as

quais se destacam as mu-danças na Constituição destinadas a quebrar os monopólios estatais e efetuar uma profunda re-forma na Previdência So-cial. Nessas lutas, dificil-mente haverá nocaute. Tudo indica que a deci-são será por pontos, exi-gindo dos dois lados mais resistência do que pegada, mais pernas do que punhos. Ninguém nega que Fernando Hen-rique tenha começado o combate era excelente forma, exibindo um car-tel muito superior ao dos adversários, mas tam-bém sua vantagem não é tanta que lhe permita bo-xear de sapatos altos ou dar socos ao vento, como andou fazenda nas dez primeiras semanas de seu governo. Portanto, fez bem o presidente em descer da pose e sentar no banqui-nho. O problema é que muito mais gente, além do senador Suplicy, pare-ce ter percebido que o Governo, ou por ter quei-xo de vidro ou fígado sensível, sentiu mais do que devia os poucos gol-pes recebidos, voltando zonzo para o seu canto. Essa gente, que andava se poupando quando o presidente estava no au-ge da força, começou agora a botar as mangui-raias de fora. No Congresso, os pro-fissionais da politica, que sabem farejar como nin-guém a hora de parar de lamber e começar a morder, subiram imedia-tamente o tom de suas críticas. No mercado fi-nanceiro, as especulado-res também captaram instantaneamente o chei-ro de fraqueza no ar; agora, qualquer rumor e pretexto para oscilações bruscas nas cotações do dólar e nas bolsas. Nas ruas, os incidentes que marcaram a passagem de Fernando Henrique pelo Rio, na última sexta-fei-ra, são indicativos de que os actores mais du-ros da oposição chega-ram à conclusão de que não há mais razões para manterem o resguardo pós-eleitoral a que tive-ram de se submeter, Nas mais variadas frentes, estão todos testando o terreno, buscando sentir até onde vai a debilidade momentânea do Gover-no. Também não estão com essa bola toda para partir para cima do ho-mem de as milhões de votos. Agora é esperar pelos próximos rounds, que prometem grossa panca-daria. A fase de estudos acabou. Fernando Henri-que ainda é o favorito, mas vai ter de lutar tudo o que sabe. Co adversá-rios descobriram que ele é de carne e osso. Não vão cair com um sopro.


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