Havaianas no pé
14.04.1997
A marcha dos sem-terrra já está nas cercanias do Distrito Federal. Logo chegará ao coração de Brasília. A essa altura, pode-se dizer, sem medo de errar, que os dois mil sem-terra, que constituem o núcleo da manifestação, desfilarão pela Esplanada dos Ministérios como vitoriosos. Com a marcha, o MST rompeu o isolamento que o Governo tentou lhe impor, credenciou-se como interlocutor e manteve a reforma agrária na ordem do dia.
Venceu em toda a linha. O Governo, que há dois meses esmerava-se em apresentar o MST como encarnação do mal e do caos, teve de recuar apressadamente dessa tática de satanização, depois que ficou evidente que o tiro saíra pela culatra: quem estava se desgastando com o confronto era ele, e não os sem-terra.
Pesquisa feita em meados de março pelo Ibope deixou claro que a bandeira da reforma agrária tinha fincado raízes mais profundas na opinião pública do que o Governo imaginava. Aos olhos da sociedade, o MST aparece com um movimento legítimo e importante. Para 77% dos entrevistados, ele é formado por trabalhadores que querem trabalhar e não têm como fazê-lo. Ou seja, de bicho papão não tem nada. Mais de 85% das pessoas ouvidas pela sondagem disseram que consideram as invasões de terra uma forma de luta válida.
A pesquisa fez acender a luz amarela no Palácio do Planalto, que chegou à conclusão de que deveria mudar de tática. Assim, abandonando a política do confronto e da satanização, ele adotou um comportamento mais flexível, que previa, de um lado, o anúncio de medidas de impacto no campo, e, de outro, a reabertura dos canais de diálogo com a Igreja e o MST, então obstruídos.
Daí que o ministro Raul Jungmann tenha iniciado, com grande estardalhaço, a distribuição de terras antes pertencentes a donos de bancos liquidados, e instalado superintendências regionais do Incra diretamente nas áreas mais quentes, como o Sul do Pará e o Pontal do Paranapanema. E também que o Ministério da Justiça tenha lançado, no último sábado, uma mega-operação de desarmamento no Sul do Pará. Enquanto isso, nos bastidores, o Governo buscava degelar suas relações com a Igreja católica, que tem grande acesso à cúpula do MST.
A atestar que os ventos mudaram, a menos que haja uma surpresa de última hora, o presidente da República receberá esta semana, no Palácio do Planalto, os principais líderes do MST, entre eles o economista João Pedro e o agricultor José Rainha Júnior – este último, até poucos dias atrás, com a prisão preventiva decretada pela Justiça.
Ou seja, Governo e MST vão sentar novamente para conversar e negociar, o que é bom. Mas até onde podem chegar? O Governo Fernando Henrique tem um razoável cartel a apresentar. Em dois anos, assentou mais de cem famílias. Até 1998, deve assentar um total de 280 mil famílias, uma marca superior a de todas as últimas administrações, juntas. Além disso conseguiu do Congresso a aprovação de um novo Imposto Territorial Rural, que grava severamente as terras improdutivas. Obteve ainda do Legislativo importantes mudanças na legislação, inclusive a do rito sumário para a imissão na posse da terra.
Mas será isso o bastante? Tudo indica que, ao menos para o MST, não. Não se trata de má vontade. É que há uma nítida diferença entre o que o movimento e o Governo entendem por reforma agrária.
O MST deseja o assentamento de milhões de famílias. O Governo, quando muito, pode chegar a estabelecer a meta de distribuir terras para centenas de milhares delas. A diferença, porém, não é meramente quantitativa. Os números refletem concepções diametralmente opostas sobre o que significa a reforma agrária hoje.
Para o MST, o objetivo da reforma agrária é promover uma mudança no padrão de relações econômicas e sociais no campo, quebrando o poder dos grandes fazendeiros e fazendo emergir uma numerosíssima classe de pequenos produtores rurais. É um processo que só pode ser vitorioso se for intenso e rápido, e deve ocupar o centro da política agrária do Governo.
Para o Governo Fernando Henrique, ao contrário, a reforma agrária é um aspecto marginal, e não central, da política agrária. O objetivo não é mudar o padrão das relações econômicas e sociais no campo, mas incluir novas camadas de proprietários no padrão já dado. Não se pensa, nem de longe, em transferir para pequenos e médios proprietários a responsabilidade da produção de alimentos e insumos para a indústria, que hoje dependem basicamente da grande propriedade. A reforma agrária, na concepção do Governo, mais do que uma questão econômica, é uma questão social. Trata-se de prender o homem ao campo, onde ele custa menos ao Estado em termos de serviços públicos do que nos aglomerados urbanos.
É difícil um acordo entre as duas concepções. Não se consegue imaginar Fernando Henrique travestido de Zapata, iniciando uma revolução agrária. Tampouco é crível que Rainha e Stédile arquivem as bandeiras vermelhas e os retratos de Che, para fazer remendos na nossa estrutura agrária. Mas, se as duas partes deixarem os aspectos doutrinários de lado e concentrarem as discussões em medidas concretas, talvez seja possível algum tipo de pacto ou trégua.
Seria bom para os dois lados. Para o Governo, porque ele está precisando respirar, depois de ter erradamente apostado no isolamento do MST. Para os sem-terra, porque o pior erro que poderiam cometer agora seria passar para a opinião pública a imagem de intransigência e radicalismo. Calçados em suas sandálias havaianas, eles conquistaram uma importante vitória. Podem pô-la a perder se, indo além de suas chinelas, quiserem humilhar
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