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04.O peixe está fora da geladeira

O peixe está fora da geladeira


17.06.1999



Depois do depoimento do ex-padre e professor universitário José Antônio Monteiro, ontem, na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos deputados, ficou insustentável a posição do novo diretor-geral da Polícia Federal, João Batista Campelo, que comparecerá hoje à comissão para dar sjua versão dos fatos. As explicações dadas por Campelo até agora - vagas, evasivas e pouco convincentes - contrastam com as denúncias oferecidas por Monteiro - precisas, contundentes e documentadas ou respaldadas em outros testemunhos. Os fatos são os que se seguem: 1) No dia 3 de agosto de 1970, o então padre Monteiro foi preso por Campelo, seu ex-colega de seminário e então delegado da Polícia Federal no Maranhão na cidade de Urbano Santos (MA). Levado para a delegacia da PF em São Luís, Monteiro ficou vários dias incomunicável. Nesse período foi interrogado e assinou confissão admitindo sua militância na organização revolucionária Ação Popular (AP), que combatia a ditadura militar. 2) No dia 14, onze dias depois de sua prisão, o padre, após Ter denunciado que fora submetido a maus tratos, inclusive com sessões de "pau de arara", foi submetido a exame de corpo de delito. O laudo, firmado por legistas da Secretaria de Segurança Pública e por um médico indicado pela Igreja, é claro: o religioso apresentava escoriações no "terço inferior do braço esquerdo, face posterior, medindo a maior dois centímetros de extensão por um de largura, e a menor, meio centímetro de extensão por um de largura", além de escoria';cões semelhantes no antebraço direito, que teriam sido produzidas por "objeto contundente". Tais ferimentos são típicos em pessoas que forma submetidas ao "pau de arara" _ modalidade de tortura em que a vítima é pendurada pelos pulsos e pelos tornozelos numa barra de ferro ou numa trave de madeira. 3) No dia 17 de agosto, no relatório final do inquérito instaurado contra Monteiro e o padre Xavier Gilles, hoje bispo de Viana (MA), Campelo pediu o enquadramento de ambos na Lei de Segurança Nacional. Em setembro, em carta enviada ao então presidente Garrastazu Médici, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil denunciou os maus tratos sofridos pelos dois padres. 4) Levados a julgamento em outubro de 1970, Monteiro e Gilles foram absolvidos pela unanimidade dos votos dos juízes do Conselho Permanente de Justiça da 10a Região Militar, em Fortaleza. A sentença registrou que os depoimentos dos réus e das testemunhas haviam sido tomados sob coação física e moral. Um documento dessa natureza emitido pela Justiça Militar em plena ditadura militar é fato raríssimo. A regra era condenar os acusados com base nas provas obtidas sob tortura e arquivar as denúncias contra os torturadores. Em recente declaração à imprensa, o juiz auditor que atuou naquele processo esclarece que a expressão "coação física e moral" foi usada na sentença com o significado de "tortura". 5) Pessoas que visitaram Monteiro na prisão atestam que ele apresentava evidentes sinais de sevícias. O ex-seminarista Augusto Braúna Braga, ex-colega de Campelo e Monteiro, diz que Monteiro apresentava escoriações e ferimentos resultantes das torturas sofridas. O advogado Carlos Sebastião Silva Nina também deu testemunho semelhante, recordando-se que o padre apresentava marcas de queimaduras nos pés. 6) Os depoimentos das testemunhas arroladas por Campelo contra Monteiro e Gilles não deixam dúvidas de que elas foram coagidas. Rosalina Costa Araújo, secretária da paróquia a cargo de Monteiro, "foi por três vez agredida pelo policial de nome Nerinho, sendo que duas consistiram em torções aplicadas na sua mão e uma por compressão na nuca". O lavrador José Ferreira da Silva foi ameaçado pelos policiais com uma faca, que espetaram na sua barriga para que ele aceitasse depor contra os religiosos. Zuleide Nascimento Araújo, outra testemunha, também disse que sofrera tentativa de intimidação. Outra testemunha, o então tenente-coronel Eduardo Motta, que servia no 24o Batalhão de Caçadores, de São Luís, não vacila em afirmar que Campelo inventou provas contra Monteiro. "O inquérito (da Polícia Federal) foi uma barbaridade", resume. Eis, agora, a síntese da versão de Campelo, que não só nega ter torturado Monteiro como repele a hipótese de que o então padre tenha sido submetido a maus tratos na PF: 1) As marcas nos pulsos de Monteiro não indicam que ele tenha sido torturado. "Como o ex-padre se rebelou fisicamente contra a ordem de condução, a equipe (da PF) resolveu algemá-lo, evitando assim qualquer problema com a integridade física do conduzido e dela própria", explica o delegado. Os agentes só teriam notado que os pulsos do presos estavam feridos quando chegaram em São Luís, distante 400 km de Urbano Santos. 2) Monteiro teria produzido a denúncia para prejudicá-lo, pois os dois mantinham uma rixa antiga desde o tempo do seminário, quando o delegado da PF seria um jovem rebelde e Monteiro, um bedel severo. "Nunca fui um torturador. Eu é que estou sendo torturado agora com essas acusações", diz Campelo. Em seu depoimento ontem na Câmara, Monteiro negou que tenha sido algemado. Acusou Campelo de ter ajudado os demais agentes a pendurá-lo no pau de arara uma vez e de ter dirigido os interrogatórios que se seguiam às sessões de tortura. Tudo somado, parece não haver dúvida de que: a) Monteiro foi torturado na delegacia da Polícia Federal de São Luís, então chefiada por Campelo; b) as confissões arrancadas sob tortura foram usadas para instruir o inquérito assinado por Campelo; c) testemunhas foram intimidadas pelos agentes sob as ordens de Campelo para depor contra os padres; d) as brutalidades foram tão evidentes e de tal ordem que a Justiça Militar absolveu os religiosos e pediu ao Ministério da Justiça que abrisse inquérito para investigar a conduta inaceitável dos policiais envolvidos no caso. A única dúvida que fica é se Campelo participou pessoalmente das sessões de tortura, interrogando o preso sob sua custódia enquanto outros policiais o agrediam, ou se evitou o contato direto com o ex-colega de seminário nos momentos em que ele era supliciado, reservando-se para os momentos nos quais a supunha a vontade e a moral do padre já estavam quebradas. Qualquer que seja o caso, como delegado da PF, responsável pelo inquérito e comandante dos homens que torturaram o padre, foi figura-chave nesse crime contra os direitos humanos. A menos que seu depoimento hoje produz um milagre, seus dias estão contados. Não pode, em hipótese alguma, chefiar a Polícia Federal. A informação que vem do Palácio do Planalto é a de que o presidente já estaria convencido de que a situação de Campelo é insustentável. Apenas não teria encontrado uma fórmula para defenestrar o delegado. Sugere-se uma: o presidente vem a público e admite que a nomeação de Campelo foi um erro, no qual incorreu porque não teve a tempo as informações necessárias. E nomeia rapidamente outra pessoa para a direção-geral da PF. Porque esse caso é feito peixe fora da geladeira. Em alguns dias, o fedor será insuportável. P.S.: Resta saber para que serve a Agência Brasileira de Inteligência, a Abin, que obedece (obedece?) ao chefe da Casa Militar da Presidência da República, general Alberto Cardoso. Ela não foi capaz de informar adequadamente o presidente sobre a fria em que ele estava se metendo ao nomear Campelo para a direção da PF. Resta saber também quem foi o iluminado que aconselhou Fernando Henrique a manter a data de posse do novo diretor-geral da PF, quando já se avolumavam as provas e indícios contra Campelo. Resta saber ainda se a luzinha amarela da indignação cívica do presidente, outrora tão brilhante, está custando tanto a acender nesse caso por fadiga de material ou por excesso de cálculo político. Jornal de Brasília, 17/06/1999

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