Um Sucatão está na pista
30.12.1999
Carregando no lombo mais de 40 anos de hangar (e pouquíssimas horas de vôo) está taxiando na pista o Sucatão do parlamentarismo. Em outros países, aeronaves desse modelo têm larga aceitação, sendo vistas como exemplos de segurança institucional, flexibilidade política e responsabilidade administrativa. No Brasil, porém, não passam de equipamentos de ocasião, que só dão suas voltinhas quando falta às elites um comandante confiável para o avião presidencialista.
Foi assim em 1961, quando o piloto, Jânio Quadros, sumiu. Foi assim em 1993, quando Fernando Collor, apresentado ao povo como um ás da aviação, revelou-se apenas uma pomba gira. Meteu os pés pelas mãos e, mais do que isso, meteu a mão para valer. Antes que levasse o manche para casa, matando todos a bordo, foi obrigado a pular de pára-quedas. Por incrível que pareça, o avião pousou são e salvo. Mas a confiança nas tripulações de plantão ficara seriamente abalada.
- Por que não trocar de aparelho e instituir o parlamentarismo? - perguntou, então, a elite, sempre criativa.
- Se o regime de gabinete é assim tão bom, por que não se apelou para ele antes? - devolveu a esquerda, que já se via no poder, graças ao prestígio crescente de Lula e à desmoralização do campo adversário, na época.
Puxa daqui, estica de lá, o povo desconfiou da mudança. Consultado num plebiscito, preferiu por larga maioria o velho presidencialismo - como, aliás, já havia feito em 1963, quando também lhe haviam indagado a opinião sobre o assunto.
Mas o mundo dá voltas. Na undécima hora de seu semigoverno, Itamar Franco decidiu entregar o Ministério da Fazenda a Fernando Henrique, que, cercando-se de uma equipe competente, lançou o Plano Real, com o propósito de derrubar a inflação e estabilizar a moeda. O sucesso foi instantâneo, e a popularidade de FH deu um salto espetacular. E ele, que, meses antes, dificilmente se reelegeria senador por São Paulo, foi catapultado para a Presidência da República. O prestígio de Lula, que cometera a besteira de torcer o nariz para o Real, entrou em parafuso. O embate foi decidido no primeiro turno.
Ato contínuo, nossa elite entrou em lua de mel com o presidencialismo, tanto que nenhuma voz levantou-se, então, para dizer que era chegado o momento de tirar o velho Sucatão do hangar - nem mesmo os tucanos, que, por formação e temperamento, sempre foram fervorosamente a favor do parlamentarismo. Todos enfiaram a viola no saco, sob o argumento de que era muito recente a decisão do plebiscito contra o regime de gabinete. Desconsiderá-la seria um desrespeito à democracia, quase um golpe.
Não houve, porém, pruridos semelhantes em 1996, quando o governo FH já ia em meio. A elite viu-se diante de uma situação inusitada. Nunca o Brasil estivera entregue a piloto tão competente, e nunca, ao mesmo tempo, fora tão flagrante a falta de substitutos à sua altura. Quem poderia, com sorriso de aeromoça e mãos firmes, manter o país voando em céu de brigadeiro, rumo ao futuro, além de FH? Quem seria capaz de assumir sua cadeira e seguir comunicando-se diretamente, em cinco idiomas e vários dialetos, com as torres de comando do Primeiro Mundo? Ninguém. Mais fácil mexer na Constituição, introduzindo a possibilidade de o presidente disputar novo mandato, a exemplo do que se fizera em países vizinhos, como o Peru e a Argentina, de larga tradição democrática e sabidamente avessos a qualquer tipo de casuísmo.
E, assim, mudou-se a Constituição, inaugurou-se a era das reeleições e reelegeu-se Fernando Henrique presidente da República. Não se ouviu, naquele instante, um pio a favor do parlamentarismo.
Mas, como se disse acima, o mundo dá voltas - e nem sempre a favor do esquema político dominante. Mal fora empossado para um segundo mandato, FH perpetrou uma desastrada desvalorização cambial, o país entrou em pânico e o Real ingressou numa zona de fortíssimas turbulências. Resultado: a popularidade do presidente esborrachou-se de encontro à realidade. Quem garante que ele conseguirá juntar os cacos a tempo de o Palácio do Planalto influir decisivamente no processo sucessório?
Na dúvida, é melhor abrir o leque de alternativas. Talvez seja possível produzir um candidato situacionista viável, capaz de derrotar as esquerdas em 2002. Nesse caso, aos olhos da elite, o presidencialismo terá demonstrado, mais uma vez, sua força e vigência. Mas pode ser também que a coalizão governista fragmente-se, não logrando chegar ao segundo turno em condições de vitória. Se essa hipótese vier a se verificar, não seria um mau negócio ter à mão a carta da mudança do sistema de governo. Nunca se sabe o jogo que será preciso jogar. É por isso que a emenda parlamentarista, de uma hora para outra, deixou a oficina de manutenção e passou a taxiar na pista.
Podem seus autores e apoiadores declarar-se parlamentaristas de convicção, mas dificilmente convencerão o país de que não se trata de um expediente de ocasião, voltado para as eleições de 2002, a menos que deixem claro, desde já, que: a) a mudança só entraria em vigor depois de 2006 e, de forma alguma, afetaria as condições em que o próximo presidente exerceria seu mandato; b) o povo seria chamado a se manifestar em plebiscito sobre o sistema de governo de sua preferência, como fez 1993.
Atendidas essas duas preliminares, será possível uma discussão séria sobre as vantagens e desvantagens do presidencialismo e do parlamentarismo. Caso contrário, tudo não passará de mais um casuísmo, que, seguindo-se ao da reeleição de FH, dificilmente conseguirá a adesão da opinião pública.
Gato escaldado, como se sabe, tem medo até de água fria.
Jornal de Brasília, 30/12/1999
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