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Cinco poemas de Gregório de Matos, o Boca do Inferno (Bahia ,1682)


1682



Gregório de Mattos foi talvez o primeiro poeta brasileiro a usar seu talento para investir contra a incompetência, a corrupção e a arrogância dos governantes. Filho de família rica - seu pai era senhor de engenho na Bahia -, Gregório formou-se em Coimbra e retornou ao Brasil, em tese, para ser mais um integrante bem-posto da elite local. Mas virou o fio. Sem papas na língua, usando palavrões e recorrendo a imagens pesadas, não livrou a cara de ninguém na Bahia do final do século XVII. O primeiro poema bate firme no então governador da Bahia, Antônio de Souza Meneses, o “Braço de Prata”, que comandou a capital da colônia de 1682 a 1684. Contra ele, o poeta não se limitou a lançar sátiras. Meteu-se em conspirações, ao lado da família Ravasco, à qual pertencia o padre Antônio Vieira. O segundo poema é posterior, de 1691, e critica a incompetência dos poderosos, tanto da Bahia quanto de Portugal, incapazes de tomar providências para debelar a fome que assolou a cidade naquele ano. No terceiro, quarto e quinto poemas, “Boca do Inferno” não poupa ninguém. Dirige sua verve contra a cidade inteira. Não é de se espantar que tenha sido perseguido pelas autoridades, inclusive com a condenação ao degredo em Angola em 1694. Ficou pouco tempo por lá, mas nunca mais voltou à Bahia. Morreu no Recife, em 1696. Para acessar outros poemas de Gregório de Mattos em versão eletrônica, vá até o site da Biblioteca Nacional . Ver também o romance “Boca do Inferno”, de Ana Miranda, Companhia das Letras, 1989. A DESPEDIDA DO MAU GOVERNO QUE FEZ O GOVERNADOR DA BAHIA. Senhor Antão de Sousa de Menezes, Quem sobe ao alto lugar, que não merece, Homem sobe, asno vai, burro parece, Que o subir é desgraça muitas vezes. A fortunilha, autora de entremezes Transpõe em burro o herói que indigno cresce: Desanda a roda, e logo homem parece, Que é discreta a fortuna em seus reveses. Homem sei eu que foi vossenhoria, Quando o pisava da fortuna a roda, Burro foi ao subir tão alto clima. Pois, alto! Vá descendo onde jazia, Verá quanto melhor se lhe acomoda Ser homem embaixo do que burro em cima. JULGA PRUDENTE E DISCRETAMENTE POR CULPADOS EM UMA GERAL FOME QUE HOUVE NESTA CIDADE NO ANO DE 1691 PELO DESGOVERNO. Toda a cidade derrota Esta fome universal, E uns dão a culpa total À câmara, outros à frota. A frota tudo abarrota Dentro nos escotilhões, A carne, o peixe, os feijões; E se a câmara olha e ri, Porque anda farta até aqui, É cousa que me não toca. Ponto em boca! Se dizem que o marinheiro Nos precede a toda a lei, Porque é serviço d'el rei, Concedo que está primeiro; Mas tenho por mais inteiro O conselho que reparte Com igual mão e igual arte Por todos jantar e ceia: Mas frota com tripa cheia, E povo com pança oca? Ponto em boca! A fome me tem já mudo, Que é muda a boca esfaimada Mas se a frota não traz nada, Por que razão leva tudo? Que o povo por ser sisudo Largue o ouro, largue a prata A uma frota patarata, Que entrando com vela cheia, O lastro, que traz de areia, Por lastro de açúcar troca! Ponto em boca! Se quando vem para cá Nenhum frete vem ganhar, Quando para lá tornar O mesmo não ganhará: Quem o açúcar lhe dá Perde a caixa e paga o frete, Porque o ano não promete No negócio que o perder: O frete por se dever, A caixa porque se choca. Ponto em boca! Ele tanto em seu abrigo, E o povo todo faminto Ele chora, e eu não minto, Se chorando vo-lo digo: Tem-me cortado o embigo Este nosso General, Por isso de tanto mal Lhe não ponho alguma culpa; Mas se merece desculpa O respeito a que provoca, Ponto em boca! Com justiça pois me torno À Câmara só senhora, Que pois me trespassa agora, Agora leve o retorno: Praza a Deus que o caldo morno, Que a mim me fazem cear Da má vaca do jantar Por falta de bom pescado, Lhes seja em cristéis lançado; Mas se a saúde lhes toca: Ponto em boca! DEFINE A SUA CIDADE De dois ff se compõe esta cidade a meu ver: um furtar, outro foder. Recopilou-se o direito, e quem o recopilou com dous ff o explicou por estar feito, e bem feito: por bem digesto, e colheito só com dous ff o expõe, e assim quem os olhos põe no trato, que aqui se encerra, há de dizer que esta terra de dous ff se compõe. Se de dous ff composta está a nossa Bahia, errada a ortografia, a grande dano está posta: eu quero fazer aposta e quero um tostão perder, que isso a há de perverter, se o furtar e o foder bem não são os ff que tem esta cidade ao meu ver. Provo a conjetura já, prontamente como um brinco: Bahia tem letras cinco que são B-A-H-I-A: logo ninguém me dirá que dous ff chega a ter, pois nenhum contém sequer, salvo se em boa verdade são os ff da cidade um furtar, outro foder. DEFINE O POETA OS MAUS MODOS DE OBRAR NA GOVERNANÇA DA BAHIA, PRINCIPALMENTE NAQUELA UNIVERSAL FOME QUE PADECIA A CIDADE. Que falta nesta cidade? ... Verdade. Que mais por sua desonra? ... Honra. Falta mais que se lhe ponha? ... Vergonha. O demo a viver se exponha, Por mais que a fama a exalta, Numa cidade, onde falta Verdade, honra, vergonha. Quem a pôs neste socrócio? ... Negócio. Quem causa tal perdição? ... Ambição. E o maior desta loucura? ... Usura. Notável desaventura De um povo néscio e sandeu, Que não sabe que o perdeu Negócio, ambição, usura. Quais são meus doces objetos? ... Pretos. Tem outros bens mais maciços? ... Mestiços. Quais destes lhe são mais gratos? ... Mulatos. Dou ao Demo os insensatos, Dou ao demo o povo asnal, Que estima por cabedal Pretos, mestiços, mulatos. Quem faz os círios mesquinhos? ... Meirinhos. Quem faz as farinhas tardas? ... Guardas. Quem as tem nos aposentos? ... Sargentos. Os círios lá vêm aos centos, E a terra fica esfaimada, porque os vão atravessando Meirinhos, guardas, sargentos. E que justiça a resguarda? ... Bastarda. É grátis distribuída? ... Vendida. Que tem, que a todos assusta? ... Injusta. Valha-nos Deus, o que custa O que El-Rei nos dá de graça, Que anda a justiça na praça Bastarda, vendida, injusta. Que vai pela clerezia? ... Simonia. E pelos membros da Igreja? ... Inveja. Cuidei, que mais se lhe punha? ... Unha. Sazonada caramunha! Enfim, que na Santa Sé O que se pratica, é Simonia, inveja, unha. E nos frades há manqueiras? ... Freiras. Em que ocupam os serões? ... Sermões. Não se ocupam em disputas? ... Putas. Com palavras dissolutas Me concluo na verdade, Que as lidas todas de um frade São freiras, sermões, e putas. O açúcar já se acabou? ... Baixou. E o dinheiro se extinguiu? ... Subiu. Logo já convalesceu? ... Morreu. À Bahia aconteceu O que a um doente acontece: Cai na cama, e o mal lhe cresce, Baixou, subiu, e morreu. A Câmara não acode? ... Não pode. Pois não tem todo o poder? ... Não quer. É que o governo a convence? ... Não vence. Quem haverá que tal pense, Que uma Câmara tão nobre Por ver-se mísera, e pobre Não pode, não quer, não vence! GLOSSÁRIO: Socrócio - aperto, ambição; furto. Círios - sacos de farinha (a grafia correta é sírios) Simonia - venda de coisas sagradas. Unha - roubalheira; avareza; tirania, opressão. Sazonada caramunha - Experimentada lamentação! (Soares Amora). A expressão tem sentido ambíguo. Sazonada é derivado de sazonar e equivale a amadurecida. Caramunha pode ser "a cara das crianças quando choram" ou a "lástima pelo próprio mal que se causou". Manqueiras - Vícios, defeitos; doença infecciosa no homem e em certos animais. DESCREVE O QUE ERA NAQUELE TEMPO A CIDADE DA BAHIA A cada canto um grande conselheiro, Que nos quer governar cabana e vinha; Não sabem governar sua cozinha, E podem governar o mundo inteiro. Em cada porta um bem freqüente olheiro, Que a vida do vizinho e da vizinha Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha, Para o levar à praça e ao terreiro. Muitos mulatos desavergonhados, Trazidos sob os pés os homens nobres, Posta nas palmas toda a picardia, Estupendas usuras nos mercados, Todos os que não furtam muito pobres: E eis aqui a cidade da Bahia.

Bandeirante conta como destruiu Palmares ( 1694)


1694



Destruição de Palmares Durante quase cem anos, o quilombo dos Palmares, na serra da Barriga, hoje estado de Alagoas, resistiu às expedições militares enviadas pelos senhores de engenho e autoridades brancas, fossem elas portuguesas ou holandesas. Inicialmente, o quilombo não passava de uma pequena aldeia, com apenas algumas dezenas de escravos fugidos das plantações de açúcar da região. Mas cresceu a tal ponto que, em 1670, contava com 50 mil habitantes, em dezenas de vilas fortificadas, espalhadas por vasta área. Temendo que o exemplo de Palmares terminasse inviabilizando o regime de trabalho escravo, o governo português determinou sua liquidação a qualquer custo. O bandeirante paulista Domingos Jorge Velho foi contratado para levar a cabo a missão, recebendo carta branca das autoridades. Palmares deixou de existir em fevereiro de 1694, com o massacre de seus defensores, mas o chefe dos quilombolas, Zumbi escapou ao cerco e ainda resistiu nas matas por mais um ano, até ser morto. As cartas abaixo, de Domingos Jorge Velho, informam às autoridades sobre o cerco e a destruição de Palmares. Primeira carta “ ... Certifico que assistindo neste sertão do Palmar, fazendo guerra aos negros levantados que nele habitam, vendo-os fortificados com uma cerca tão grande e com inumerável poder deles juntos dentro dela, me foi forçoso pedir ao senhor governador e capitão general Caetano de Melo e Castro me socorresse com gente para poder de uma vez acabar com os ditos negros, e o fez o dito senhor tão prontamente que com todo o segredo e brevidade chegou o dito socorro de gente paga e ordenanças em 15 de janeiro e a 16 marchei a pôr em sítio o dito negro que constava a sua cerca de uma légua em roda, e me pus em um plaino sobre a dita serra, e na fronteira de outro plaino mandei a situar o capitão-mor Bernardo Vieira de Melo por ser a parte de mais risco. (...) e por indústria sua fabricou uma cerca com os escravos e soldados em roda da dos ditos negros que constava de duzentos e setenta braças de pau-a-pique a cuja imitação foram os mais cabos fazendo o mesmo nas suas testadas que defendiam sendo por esta sua indústria lograda a melhor segurança do dito sítio, sendo em 23 do dito mês que fiz a primeira avançada ao dito negro que não pude romper nem chegar à dita cerca pelos inumeráveis fossos e estrepes que tinham (...). Outeiro do Barriga em 30 de janeiro de 694 Domingos Jorge Velho Segunda carta “Certifico que assistindo neste sítio e cerco em que pus aos negros levantados do Palmar depois de estarem em sítio vinte e dois dias no último em que se contavam os ditos vendo-se o dito negro oprimido do dito cerco se resolveu a romper com todo o risco albaroando por duas partes a em que estava o capitão-mor Bernardo Viera de Melo que os rechaçou por estilo que os fez obrigar a despenharem-se por um rochedo, tão inopinável que os mais deles pereceram e se espedaçaram pelo dito rochedo, obrigados das cargas com que os veio sacudindo o dito capitão-mor com sua gente, sendo em duas horas depois da meia-noite, que logo a essa começaram os seus a matar e aprisionar os ditos negros, que ainda lhe feriram três homens com as cargas que lhe deram, dois de balas e um de flecha; e o dito capitão-mor em todo esse dia, desde as ditas duas horas depois da meia-noite, lidou com todos os seus no alcance do dito inimigo, aprisionando e matando muitos, e veio pessoalmente a buscar-me para que desse pessoalmente calor no alcance do dito inimigo o que fiz e em minha companhia andou com tal desvelo e cuidado que não havia cousa que não soubesse advertir e prontamente acudir e se recolheu ao seu posto ao pôr-do-sol com cinqüenta e oito pessoas que me mandou entregar sendo muitos os mortos que os seus pelas brenhas mataram, e no tal dia ainda se lhe estreparam dois homens no alcance do dito inimigo em cujo alcance se mataram mais de duzentos negros e se aprisionaram perto de quatrocentos (...). Outeiro do Barriga em 8 de fevereiro de 694. Domingos Jorge Velho” Terceira carta “Certifico que depois do sítio em que pus os negros do Palmar na última desesperação, da qual se urgiu a sua total destruição, em a qual se houve o capitão-mor Bernardo Viera de Melo com todo o valor, zelo e boa disposição, no seguinte dia, que foi em o de 7 de fevereiro lançou a primeira tropa em que mandou toda a sua gente que achou capaz de seguirem o alcance de alguns negros que pudessem ter escapado por entre os matos e andaram dois dias correndo a campanha por muitas brenhas e serras, e degolaram aos que puderam pelas tais brenhas descobrir, e trouxeram duas negras prisioneiras, que por mulheres lhes perdoaram a vida (...). Outeiro do Barriga 9 de fevereiro 1694. Domingos Jorge Velho.”

O embaixador do rei de Angome chega à Bahia (1750)


29/09/1750



No dia 29 de setembro de 1750, chegou a Salvador, então capital do vice-reino do Brasil, navio procedente do porto de Tanixuma, no golfo de Benim, na África, trazendo a bordo uma embaixada do rei de Angome, Kiay Chiri Broncom, “senhor dos dilatadíssimos sertões da Guiné”. Objetivo da comitiva, chefiado por Churumá Nadir: assinar um tratado de comércio e amizade com o Rei de Portugal, utilizando para isso os serviços do vice-rei, o Conde de Atouguia. Um ano depois, aparecia em Lisboa a “Relação da embaixada...”, assinada por J.F.M.M. O documento é saboríssimo. Dá conta, em primeiro lugar, da estreita vinculação entre o Brasil e a África, ancorada na venda de escravos, de um lado, e de cachaça, fumo e farinha de mandioca, de outro, e facilitada pelas condições favoráveis de navegação entre os dois continentes. Verifica-se aqui o mesmo que se dava em Angola: para chegar a Portugal e à Europa, então, a África passava pelo Brasil. O texto mostra também um pouco da vida e dos costumes da Bahia na época e muito da altivez, da elegância e do profissionalismo do embaixador de Angome, que recusa as mordomias e facilidades postas à sua disposição pelo Conde de Atouguia, para melhor se concentrar na sua missão. Obs: 1) A dica sobre esta “Relação” foi-me dada pelo jornalista Márcio Moreira Alves. 2) Para facilitar a leitura, usou-se aqui a ortografia atual brasileira. Conservou-se a pontuação original, já que ela não prejudicava a compreensão do texto. Sendo África uma das três partes do antigo mundo, há tantos séculos notória aos Cosmógrafos, ainda hoje os Estados da sua parte Ocidental são tão pouco conhecidos nos Mapas, como os da parte Setentrional do Mundo novo. Apenas lemos neles os nomes de alguns Rios, e Cabos, a quem a Nação Portuguesa os deu no tempo dos seus primeiros descobrimentos, e dos de alguns Reinos dos muitos em que está dividindo o domínio daquela Corte; mas com uma tal confusão, e incerteza, que se não pode falar neles sem o perigo de tropeçar em muitos erros. Entre os desconhecidos, que compreende a dilatada Província de Guiné, se numera o de Angome, que nos dá agora matéria para esta relação. As memórias, de que a formamos, nos indicam a situação deste Reino nas vizinhanças do golfo de Benin, que não dista muito de S. Thomé, confinante pela parte do Norte com o Rio dos Bons Sinais, e com o Reino de Bonsoló, e pela do Sul com o poderoso Rei de Inhaque. Pela parte Ocidental a limita o referido Golfo, com um porto suficiente, onde tem a Cidade de Tanixuma, quarenta e duas léguas distante da sua Corte. Neste surgem com freqüência alguns navios Portugueses, dos Negociantes do Brasil, que se mandam prover de escravos, e algumas embarcações das Ilhas de S. Thomé, do Príncipe, e de Assnobom, que todas lhe ficam vizinhas. O Rei, que actualmente domina o Estado de Angome, se chama Kiay Chiri Broncom. É amante da Nação Portuguesa, a mais antiga no trato daquela Costa; e desejando fazer um tratado de amizade e comércio com o nosso Augusto Soberano, resolveu, para lhe fazer esta proposta, mandar uma embaixada ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Conde de Atouguia, Vice-Rei do Brasil, de cujo generoso espírito e acertadas ações tinha ouvido repetidos aplausos aos nossos Navegantes. Elegeu para esta função um dos vassalos da sua maior confiança, chamado Churumá Nadir, moço de gentil presença, e de aspecto nobre, e mandando-o recolher da Campanha, onde o servia, o encarregou da execução deste projeto. Dando-lhe as instruções convenientes, o fez embarcar em um navio pertencente a Luiz Coelho morador na Bahia, de que era Capitão Manoel Luiz da Costa, o qual se achava surto no porto de Tanixuma. Ordenou que o acompanhassem por seus Gentishomens dous Alcatis, título que no seu país se dá aos que entre os mais tem distinção de nobres; cujos nomes próprios são, de um Grijocome Santolo, do outro Nenin Radix Grytonxom; para se instruírem na língua e nos costumes dos Portugueses. Embarcou-se o Embaixador com os dous Gentishomens com um interprete da sua Nação, que sabia suficientemente a língua Portuguesa, com a sua comitiva, e com os presentes, que o seu Rei destinava para a Majestade Fidelíssima do nosso Rei, e para o Conde, seu Vice-Rey no Brasil. Fretou a câmara do navio, no qual chegaram todos com bom sucesso ao porto da Cidade do Salvador do Bahia de todos os Santos, na manhã do dia de S. Miguel, 29 de Setembro do ano 1750. Fez o Capitão logo aviso ao Excelentíssimo Conde Vice-Rei das pessoas que trazia a seu bordo, e Sua Excelência com a prontidão possível fez todas as disposições convenientes para o Embaixador ser recebido, e alojado com as honras decentes ao Ministro de um Rei, cuja amizade é mui importante ao nosso comercio. Ajustou com os RR. PP. da Companhia de Jesus que o hospedassem no seu Colégio; e ordenou, que um Militar no seu escaler o fosse buscar a bordo, e que as Fortalezas o salvassem com a sua artilharia. Os RR. PP. fizeram logo armar a sala, em que costumam receber os Vice-Reis da Índia, quando voltam daquele Estado, ou a outras pessoas de grande distinção; todo o teto armado de preciosas colchas, e o pavimento de finíssimas esteiras. Cadeira de espaldas magnifica, e tamboretes almofadados, tudo guarnecido de franjas. Preparam-lhe uma câmara rica em um leito de ébano, marchetado de marfim, e de tartaruga; lençóis de Holanda, entremeados, e guarnecidos de finíssimas rendas de Flandres; cobertor de tela carmesim, com franjas, e borlas correspondentes à sua riqueza, e tudo primorosamente coberto com um véu de gaza. Chegou o Embaixador a terra no escaler de Sua Excel., desembarcou no trapiche de Fuiam, junto ao Forte de S. Francisco, que o recebeu com uma salva de toda a sua artilharia. Entrou logo em um Palanquim, que já achou pronto, e armado de boas sedas, e os dous Gentis-homens em duas cadeiras de mãos. O Embaixador é uma bem feita, e nobre figura. Trazia vestido um roupão semelhante à toga de um Desembargador com uma capa de veludo cor de nácar. Turbante com seu penacho metido em um castão de ouro, guarnecido de boas pedras. Os dous Gentishomens são moços bem feitos, e bem figurados, vestiam ao uso do seu País. Traziam quantidade de criados, e quatro raparigas de idade de 10 anos nuas ao modo da sua terra, mas bem parecidas, às quais chamam Mobandas, comitiva de que usam por grandeza. A esta grande novidade, nunca vista no Brasil, começou a concorrer gente de toda a parte, e o Embaixador, para evitar o embaraço, que podia fazer-lhe o concurso de tanto povo, disse pelo seu intérprete aos portadores do Palanquim, e cadeirinhas, que apressassem o passo; o que eles fizeram, e chegaram com maior brevidade à portaria do Colégio, onde os PP. o esperavam , e o receberam com demonstrações de agrado, e de respeito, todas encaminhadas a insinuar-lhe quanto reconheciam a distinção do seu caráter. Logo que o Vice-Rei soube que o Embaixador tinha chegado ao Colégio, mandou uma guarda com seu Cabo para a portaria. Os PP., que a julgavam desnecessária, persuadiram ao Embaixador que a despedisse; porém ele o não fez, dizendo que seria opor-se às disposições de Sua Excelência, e mostrar-se-lhe pouco agradecido ao seu favor, e muito menos sendo uma honra, que se lhe fazia em obséquio do seu Monarca, a quem ele representava no Brasil; e que se daria por mal servido de que a rejeitasse, e assim não podia seguir o seu conselho, como prejudicial ao respeito do seu Soberano. Pediu este Ministro dia para a sua primeira audiência; e o Conde, valendo-se de alguns pretextos, lha diferiu até o dia 22 de Outubro; sendo o fundamento desta demora, dar-lhe ocasião para que ele e a sua comitiva ajuizassem, pela magnificência com que em parte tão distante se festejava o aniversário do nosso Soberano, qual é a grandeza deste Monarca, e quanta a veneração que os seus vassalos lhe tributam. Não haviam ainda chegado ao Brasil os ecos das vozes, com que havia sido lamentada a 31 de Julho a falta da vida do nosso Augusto Rei D. João o V, de gloriosa memória, e toda a Corte da Bahia preparava custosas galas, para mostrar nos excessos da sua despesa o empenho do seu obséquio. Queria Sua Excelência aumentar com ato tão notável a solenidade daquele dia. Para suavizar ao Embaixador a impaciência, que sempre costumam produzir as dilações, lhe mandou o Vice-Rei dizer que podia divertir-se vendo a Cidade, e os seus contornos, as Igrejas, os Conventos, e as Fortalezas, para o que lhe ofereceu a sua Cadeira portátil, e outras para os dous Fidalgos seus companheiros. Agradeceu esta oferta com demonstrações de obrigado, dizendo, que nesta ocasião não podia aceitá-la; mas que a reservava para depois de ter a sua primeira audiência. Intentou Sua Excelência fazer vestidos ao Embaixador, e aos dous Gentis-homens, para que no dia da Embaixada aparecessem no traje Português; e para este efeito mandou buscar a mais rica tela, o mais excelente veludo, e os melhores damascos, e brilhantes, que se puderam achar na Cidade, e lhos mandou à mostra, para que escolhessem, comunicando-lhes o para que. Não se agradou ele desta oferta, e mandou dizer que não carecia de vestidos para dar a sua Embaixada, porque deles vinha bem provido; nem ele a devia dar vestido à Portuguesa, mas ao uso de seu País, para representar o Rei, de quem era Ministro. No meio tempo desta demora lhes dava o seu calendário uma festa, que eles, e os seus celebraram, segundo o rito Gentílico, que professam. Mataram muitas aves, e untando-se com o sangue delas, fizeram banquetes de iguarias ao seu modo: e porque não usam de vinho, nem de outras bebidas fortes, brindaram à saúde do seu Monarca, e da felicidade do seu governo, com café, e com chocolate, que o Conde Vice-Rei lhes mandava todas as manhãs. Apareceu em fim o dia 22 de Outubro, destinado para esta grande função. Ajuntaram-se por ordem de Sua Excelência logo de madrugada, no terreiro do Colégio, de fronte do alojamento do Embaixador , todos os Regimentos de Infantaria da guarnição da Cidade, e nele se detiveram formados até as nove horas, em que desfilaram para a Praça, cada um com os seus oficiais na vanguarda, todos vestidos de gala, e depois de nela fazerem as costumadas continências, se dividiram em vários corpos, que se postaram em diferentes sítios. Achava-se o Palácio todo bem armado, o Vice-Rei debaixo de um rico dossel, assistido de todo o Corpo do Senado, e de toda a nobreza da Bahia sem se ver outra coisa mais, que vestidos ricos, e de bom gosto, tudo galhardia, tudo pompa. Havia-se formado na Praça um navio de suficiente grandeza já de verga de alto, no qual com especiosa disposição se via um Capitão no portaló vestido de pano verde com hum alfange na mão direita, embraçando com a esquerda um broquel. O Piloto na bitácula encaminhando o rumo, os marinheiros subindo pelas enxárcias para largarem o pano, e tudo tão artificiosamente disposto, que se equivocava a vista, esperando quando levantava ferro, para se fazer à vela. Assim como se ouviram as dez horas no relógio da Sé, expediu o Conde Vice-Rei um Sargento mor, com dous Capitães de Infantaria, a convidar o Embaixador, para vir ter a sua Audiência, mandando-lhe a sua cadeira, e outras duas para os Fidalgos, que o acompanhavam. Todos se tinham posto prontos, esperando este aviso. Estava o Embaixador vestido com um faval de tela carmesim, todo guarnecido de rendas de crespas, com uma espécie de faia como de mulher, sem cós, a que eles dão o nome de Malaya, também do mesmo estofo, todo guarnecido de franjas de seda, um sendal curto com borlas pendentes, e uma capa com uma grande cauda, como roupa Real, de tela furta-cores, forrada de cetim branco com listas de cores diferentes. Turbante magnífico, e precioso, e os borzeguins dourados. Os dous Fidalgos vestiam pela mesma moda, mas com diferença nas cores, e nos estofos. Meteram se nas cadeiras, e os seguiu a pé a sua comitiva por entre quantidade de plebe, e chegando a esquina da casa da moeda, se apearam das cadeiras, e continuaram o caminho a pé para o Palácio com os seus criados, e as quatro raparigas vestidas ao uso do seu País com lenços envoltos nas cabeças, mas sem camisas. Ao entrar na Praça começaram, com o final prevenido de um foguete, a salvá-lo o Navio que estava nela, e as Fortalezas do mar, com as descargas dos seus canhões, festejo, que o uso tem feito solene, mas horroroso; pois fere com o seu fogo os ares, e deixa com o seu estrondo magoados os ouvidos. Entrou o Embaixador na sala com grande confiança, fazendo cortesias para uma, e outra parte, observando uma gravidade sem afetação, até chegar ao lugar, que o Conde Vice-Rei ocupava; e não distinguindo a sua pessoa entre a magnificência, que divisava em todos, perguntou pelo seu interprete qual era, e logo, sem perder a soberania do seu aspecto, o cortejou primeiro à Portuguesa com três cortesias, feitas com muito ar, e imediatamente, ao modo do seu País, prostrando-se por terra com os braços estendidos, e as mãos uma sobre outra, e trincando os dedos, como castanhetas: cerimônia com que em Angome, costumam venerar aos seus Reis; indicando-lhes deste modo o gosto com que lhes fazem esta prostração. Levantou-se, ofereceu-lhe o Vice-Rei assento, para o que preparada junto à sua, que se distinguia só em ter nela um coxim, porém ele o repugnou, dizendo que o assento se fizera para uma conversação dilatada e assim se não dava na sua Corte aos Embaixadores, cujo recado é sempre breve. Tinha o Conde Vice-Rei junto a si dous Intérpretes, um Português, que havia assistido em Angome, e um mulato filho da Mina, que falavam elegantemente a sua língua, e lhe explicavam o que dizia o Embaixador, e este falou a Sua Excelência nesta forma: Aquele Alto, e Soberano Senhor, Monarca de todas as Nações da Gentilidade, assim as que habitam as Costas do Oceano, como as que vivem nos dilatados Sertões, de que ainda se não descobriu o fim, a quem temem os Povos de maior valor, entre os quais excede a todos o de Angome; deseja aliar-se, e tratar-se com muita amizade com o grande Senhor do Ocidente O Ínclito Rei de Portugal: e fazendo no seu Conselho eleição da minha pessoa, pela fidelidade, zelo e segredo, que em mim tem reconhecido; me fez recolher da Campanha, onde o servia, para mandar-me ao Brasil; e concedendo-me todos os poderes da Sua Real Pessoa, me ordenou faça a Vossa Excelência nesta tosca representação as asseverações do seu desejo. Por mim envia saudar a Vossa Excelência, não obstante a diferença, que a Religião tem feito entre o Cristão, e o Gentio; porque aquele Altíssimo Senhor, que, sem a mínima duvida, criou este Orbe, e a imensidade do firmamento, que os nossos olhos se apresenta, não proíbe a comunicação dos que vivem em diferentes leis, nem a paz, e a boa amizade, que tanto convém ao comércio dos viventes. Esta amizade, que deseja com a Coroa de Portugal, promete, com a palavra de Rei, observar fielmente, e na falta da Sua Pessoa, deixá-la recomendada aos Seus Sucessores. A prova da verdade das minhas expressões verá Vossa Excelência firmada com o Sinete Real da Sua grandeza. A este tempo tirou do seio uma Carta, e a entregou ao Conde, recomendando-lhe o segredo dela; e continuou dizendo: Receba Vossa Excelência esta representação da parte daquele grande Monarca, que o elegeu para ocupar este lugar. O Presente vem dentro do Pacote, que mandarei entregar logo a Vossa Excelência, a cujos pés ponho na presença de todo a este auditório a minha pessoa. Tenho satisfeito ao que o meu Soberano me encarregou. O segredo, que Vossa Excelência verá na sua Carta, não será público, nem manifesto, sem expressa Ordem do Seu Soberano Monarca, e do meu grande Rei de Angome. Despediu-se com estas ultimas palavras, e com as mesmas cortesias. Foi reconduzido com igual acompanhamento ao Colégio, em que estava alojado; e chegando à Portaria, mandou dar vinte moedas de ouro aos Negros da cadeira do Vice Rei, em que tinha ido. Opunham-se os Oficiais Militares, que o acompanharam, a esta dádiva, persuadindo aos Negros a que não aceitassem; o que ele rebateu dizendo, que ninguém tinha jurisdição para limitar as ações dos Príncipes. Mandou pouco depois os presentes, que trazia do seu Rei. Estes constavam de dous caixões, chapeados de ferro, com as fechaduras lavradas, um para o nosso Augustíssimo Rei, outro para o Conde, com as quatro Negrinhas. Correu a voz de quem também fez um presente ao Conde de cem Negros para o servirem. Pode ter se equivocasse o vulgo com a carregação do Navio, em que Embaixador veio de Angome. Sem embargo da permissão, que o Conde Vice-Rei lhe havia concedido, para ver a Cidade, e as cousas que nela há de mais grandeza, se não aproveitou o Embaixador dela, antes da sua primeira audiência. Depois o fez acompanhado de um Ajudante, e quatro Sargentos, que o Vice-Rei mandou para lhe assistirem, e mostrarem as Fortalezas, Conventos, Igrejas, e tudo o que há mais digno de curiosidade. Em alguns Conventos se lhe ofereceram refrescos. Observou-se que apresentando-lhe o Guardião de um dos Franciscanos vinho, e doce, o não aceitou dizendo, que nunca o bebera. Não se divulgou nunca, nem o que a Carta continha, nem o que os caixões encerravam. Correu em Lisboa que chegara da Bahia um dos caixões para Sua Majestade, e três Negrinhas. Esperamos notícias mais amplas do Estado deste Rei, e do comércio, que nele se pode fazer, para satisfazermos o desejo dos curiosos da História, e da Geografia.

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