top of page

09.Mais uma chance de consertar o Brasil

Mais uma chance de consertar o Brasil


01.01.2006



Em entrevista concedida à revista Gôndola, da Associação Mineira de Supermercados, Franklin Martins comenta os primeiros passos do Governo Lula, aponta os erros que já podem estar acontecendo e dá sua opinião sobre as reformas previdenciária, tributária e política que estão em pauta para a discussão. (Por Marco Antônio Dias - Belo Horizonte) Gôndola: O PT governista deve manter uma postura cada vez mais parecida com os Trabalhistas ingleses de Tony Blair? Franklin: Ainda está cedo para podermos carimbar algum tipo de etiqueta em cima do PT e dizer como o governo Lula vai ser. Esta tudo muito no começo e os governos sempre levam pelo menos seis meses "tomando pé na máquina". No fundo, o PT está se comportando no poder conforme prometeu na campanha, ou seja, está fazendo um governo de centro-esquerda que promova mudanças, mas sem romper contratos e criar sobressaltos, respeitando as regras do mercado ao mesmo tempo que busca uma nova via de desenvolvimento. Até agora o governo do PT vem fazendo tudo isso de um modo até mais cauteloso do que se imaginava. A recente decisão de aumentar o superávit fiscal é um exemplo. O fato é que o PT está muito conservador na política econômica - não porque queira, mas porque a margem de manobra é estreita. Ao mesmo tempo o PT tem a compreensão de que não pode ser apenas um outro capítulo do ciclo Fernando Henrique. Ele precisa abrir uma nova etapa de desenvolvimento, diminuir a desigualdade social e reduzir as desigualdades regionais. O que deu a vitória a Lula nas eleições foi seu projeto de renovação, e ele precisa levá-lo à prática. Se não o fizer, frustrará seu eleitorado e terá seríssimos problemas. Em suma, até agora o PT está sensato, equilibrado, fazendo não o que gostaria de fazer mas o que as circunstâncias o obrigam a fazer, mas simultaneamente olhando para a frente, pois sabe que terá de fazer no futuro algo bem diferente do que está fazendo agora. Podemos dizer que o PT está em meio a uma travessia, na qual ainda está muito mais perto da margem de cá do rio do que da margem de lá - mas creio que, apesar de tudo, ele tem o olho posto no outro lado. Gôndola: Na sua opinião é possível dissociar as reformas da previdência e tributária? Franklin: Pessoalmente, acho que, se essas duas reformas forem discutidas simultaneamente, não avançarão. Ambas despertam resistências poderosíssimas e, se as resistências despertadas por uma puderem se aliar às resistências despertadas pela outra, as duas reformas acabarão embananadas. Elas têm de ser tocadas em separado e a que deve entrar primeiro é a previdenciária, sobre a qual existe um consenso maior. Embora ela enfrente resistências muito poderosas em setores do funcionalismo público, especialmente naqueles com maior "poder de fogo" - e aí entram os juízes, militares, procuradores e funcionários mais graduados do legislativo, reúne também um consenso mais amplo detrás de si. Há uma consciência razoavelmente disseminada de que está na hora de mexer na previdência pública. E desde o momento em que o PT, que era o maior adversário das mudanças na aposentadoria do funcionalismo público, deslocou-se para uma posição favorável à reforma, as condições políticas para sua aprovação aumentaram consideravelmente. No entanto, o PT está perdendo muito tempo. Essa história de discutir primeiro a reforma previdenciária no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, para só no final de maio enviar um projeto para o Congresso é, do ponto de vista político, um desatino, é um erro gravíssimo. Pode-se dizer que o Projeto de Lei Complementar número 9, que incide sobre os funcionários que venham a ingressar no serviço público, já está na Câmara. É verdade, mas ele só resolve os problemas daqui a 30 ou 35 anos. Os pro-blemas de curto e médio prazo, que afetam os servidores que estão hoje na ativa, precisam de medidas imediatas. E se o Congresso não votar essas medidas no primeiro semestre de 2003, talvez não as aprove mais tarde, porque o PT estará, seguramente, mais enfraquecido e Lula mais desgastado amanhã do que hoje. Ou seja, a força política para aprovar as reformas será muito menor dentro de seis ou oito meses. Vale lembrar que Fernando Henrique aprovou a reforma da Ordem Econômica no primeiro semestre de 1994 e, depois, não aprovou mais nenhuma reforma significativa - a não ser a emenda da reeleição, mas aí já eram outros quinhentos. A reforma administrativa e a da previdência do setor privado avançaram pouco - e os poucos avanços exigiram enorme esforço, porque também FH deixou passar seu melhor momento. Lula está se arriscando a cometer o mesmo erro. Gôndola: Como deve se comportar a economia em 2003 levando em conta todo esse cenário e também a guerra, mesmo que ela seja curta, como se está prometendo? Franklin: Ninguém sabe o que vai acontecer com a economia do Brasil ou com a economia mundial se houver a guerra, porque ninguém sabe se a guerra vai ser curta ou longa. Tudo isso é chute. Quem garante que em três semanas as tropas de Bush entrarão em Bagdá? Ninguém garante. Os Estados Unidos acreditam nisso, mas nada garante que eles estejam certos. Uma coisa é jogar bomba lá do alto, outra é botar a tropa no chão e entrar em uma cidade de 5 milhões de habitantes como Bagdá. Os EUA terão de esmagar resistências talvez significativas e isso não se faz com mísseis. Em geral, entra-se numa guerra achando que ela será rápida e ela acaba se mostrando mais complicada do que se imaginava. Se não tivéssemos a guerra, a economia brasileira tenderia a ir se ajustando aos poucos, completando o ajuste das contas externas, fazendo um ajuste fiscal mais consistente, o que permitiria, a médio prazo, derrubar juros e ativar a economia, que teria boas chances de terminar 2003 embicada para cima. Era razoável trabalhar com a idéia de um 2004 bem positivo. Mas, se vem a guerra, o preço do petróleo sobe, o fluxo de capitais se interrompe, a aversão ao risco aumenta ainda mais. Ou seja, aumenta a "turbulência" no Brasil e tudo pode acontecer. E ninguém sabe o que vai acontecer com a economia dos Estados Unidos com essa guerra. Gôndola: O programa Fome Zero aos poucos vai saindo do papel. Na sua opinião quais as chances desta ação ser bem sucedida? Franklin: Em tese, ele é um programa exeqüível e, do ponto de vista político, é um achado. Pode-se eliminar a fome no Brasil num prazo de quatro anos e, se isso ocorrer, o País terá mudado. Mas as chances do programa ser bem sucedido dependem do governo parar de patinar no Fome Zero. O primeiro é o foco. Não existem, como diz o ministro José Graziano, 46 milhões de pessoas passando fome no Brasil. Não é verdade que um em cada três brasileiros passe fome _ pode passar dificuldades, mas fome não. E quando se dispersa o foco dessa maneira, não se bota o foco onde tem de se botar: nas pessoas que efetivamente passam fome. As estatísticas variam, alguns falam em 22 milhões, outros em 16 milhões, ninguém sabe ao certo. Eu avalio que o número de pessoas passando fome permanentemente é menor ainda - e justamente por isso, focando corretamente no público-alvo, é possível resolver o problema. Mas se o programa se dispersar, dificilmente terá sucesso. O segundo problema é exigir nota fiscal. É muito mais simples botar o dinheiro - digamos, 50 reais - na conta das pessoas. No fundamental, elas vão gastar a grana com comida. Está certo: um ou outro vai gastar com cachaça ou com cigarro, haverá algum tipo de pequeno desvio. Mas se o governo partir para montar uma estrutura para controlar esses desvios, gastará mais dinheiro nisso do que no programa. E é onde a classe média e a burocracia ganham dinheiro. Uma vez já se disse que se o governo jogasse dinheiro de helicóptero, distribuiria melhor os recursos do que através dos programas sociais. É verdade, mas só na primeira vez. Na segunda, a classe média já teria descoberto como organizar a recepção do dinheiro lançado pelo helicóptero. É incrível a capacidade de nossa classe média de descobrir mecanismos para ordenhar o Estado. Não tem que se criar estrutura alguma de controle de nota fiscal. O que tem que haver é contra-partida: quem se habilitar no programa precisará ter suas crianças na escola, estar estudando ou retribuir com trabalho de alguma forma. Mas, apesar de todos esses problemas, creio que a possibilidade do programa dar certo é muito grande, e por uma razão muito simples: o País decidiu que não quer mais ser tão absurdamente injusto como é hoje. Foi isso que levou à vitória de Lula. Houve uma opção do País, e mesmo que o governo erre aqui ou ali, o País acabará acertando as contas com esse problema. Gôndola: Lula está, na área internacional, se impondo chamando para si a liderança da América Latina utilizando uma estratégia, muito usada pelos Estados Unidos, de dar palpite e se "intrometer" em diversos assuntos internacionais. Esse pode ser um dos caminhos para se obter respeitabilidade e fazer valer a opinião brasileira? Franklin: O Brasil tem um peso importante na América do Sul, na América Latina e na África. E deve exercer um papel mais ativo, embora sem ficar proclamando-se líder de nada. Porque ou você é líder ou não é. Não precisa ficar dizendo "eu sou líder, eu sou líder". Mas deve ter uma política mais ativa. A política externa brasileira nos últimos anos foi pouco ativa na América do Sul, na América Latina, na África, e em algumas relações bilaterais fundamentais - China e Índia, por exemplo. Nesse sentido, é bom que Lula esteja mais ligado nessas áreas. Junto aos países ricos, é bom destacar a participação de Lula em Davos - foi altamente positiva. Ele também foi muito bem nas conversas com Chirac (presidente da França) e com Schroeder (primeiro ministro da Alemanha). Havia a idéia de que nunca mais o Brasil teria outro presidente tão bom em política externa como Fernando Henrique. Essa idéia não existe mais. Lula está indo tão bem ou melhor do que FH. Pode até ter avançado um pouquinho o sinal na Venezuela, mas o saldo - até na Venezuela, é favorável. A verdade é que jogávamos muito na retranca e deixávamos de exercer o papel que devemos exercer e que, muitas vezes, os nossos vizinhos esperam que nós exerçamos. Gôndola: E a reforma política qual a importância dela no desenvolvimento do país? Franklin: Na minha visão, a reforma política é fundamental. Mas, as pessoas falam muito nisso e não falam precisamente sobre o mais importante. Se não houver uma reforma eleitoral, que mude a forma de se eleger os deputados e constituir a Câmara, não teremos reforma política. Nosso sistema eleitoral está falido. É um sistema no qual o eleitor vota simultaneamente num deputado e num partido, o chamado voto unipessoal ou proporcional com lista aberta. Esse sistema só existe no Brasil e na Finlândia - e não dá certo. Teve seu papel, mas já está totalmente superado. Ele produz um congresso em que os partidos são fracos, fragmentados, em que cada Deputado é uma ilha, acha que está sozinho e faz o que quer. E não se resolve isso impondo fidelidade partidária. É preciso reformar o sistema eleitoral, avançando para o sistema distrital misto ou para o proporcional com lista aberta. Mas quem vai votar essas mudanças? Esse Congresso? De jeito nenhum. Afinal, ele se elegeu nesse sistema e não sabe se elege no próximo. Então, a mudança tem de ser feita agora para passar a valer em 2010. Mas tem que fazer logo por que se não só entrará em vigor bem mais tarde - em 2014. Gôndola: Qual a avaliação que você faz destes 40 dias de governo Lula, se é que é possível? Franklin: Está cedo. É um governo interessado em acertar - como a maioria dos governos, aliás, com um padrão ético elevado, com uma preocupação social nítida, mas é um governo que ainda não domina a "máquina", o que é normal. Sempre que a oposição assume, ela precisa de algum tempo para dominar a "máquina do Estado". Isso faz com que qualquer governo, especialmente os de oposição, comecem a se desgastar tão logo assumam o poder. O momento de glória é quando se ganha a eleição porque só se tem o bônus da situação, não se tem o ônus de contrariar ninguém. No caso de Lula, a popularidade continua altíssima, mas, mesmo com 40 dias, as pessoas já estão de olho, prontas para cobrar. Já, já começam a cobrar. Então temos essa corrida. De um lado, um governo que ainda não domina a "máquina", que não está maduro e seguro do que vai fazer; e do outro a erosão natural do tempo, o desgaste político. Como é que isso vai se cruzar ali na frente? Ninguém sabe.

Posts recentes

Ver tudo

17.Polêmica sobre as ONGs

Polêmica sobre as ONGs 11.06.1996 Excesso de peso - O Globo, 11/06/1996 As ONGs e a democracia por Herbert de Souza - O Globo, 27/6/1996 ONGs pra que te quero - O Globo, 06/1996 Debate condena exce

16.Prefácio do livro "Valeu a pena"

Prefácio do livro "Valeu a pena" 01.08.1996 Ao retirar-se da atividade política, ainda na década de 80, meu pai pretendia escrever suas memórias, mas, por uma razão ou por outra, o livro não avançou,

15.O que é um bom texto jornalístico?

O que é um bom texto jornalístico? 01.01.1997 Para escrever bem, é preciso ler - ler muito, ler tudo, ler o tempo todo. Mas o texto jornalístico é escrito por alguém que, além de ler, faz perguntas. E

bottom of page