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Manifesto dos mineiros - uma virada na luta contra Getúlio (1943)


24/10/1943



O “Manifesto dos mineiros”, divulgado em 24 de outubro de 1943, representa uma virada na luta contra a ditadura de Vargas, que, até então, estivera praticamente entregue à oposição de esquerda. Trata-se da primeira nítida manifestação das elites – no caso, as de Minas Gerais – contra o Estado Novo, sinalizando a abertura de um novo momento na luta política, que se concluiria dois anos depois com a deposição de Vargas. O texto, cuja redação final é de Afonso Arinos de Mello Franco, em cima de versões anteriores preparadas por Odilon Braga, Virgílio de Melo Franco e Dario de Almeida Magalhães, é relativamente moderado. Não chega sequer a propor o fim do regime. Mas, mesmo assim, teve enorme impacto. Mais importante do que o conteúdo, foi o gesto: a fina flor da elite política mineira afrontava a ditadura de Vargas. O Palácio do Catete reagiu imediatamente: os signatários que ocupavam cargos públicos foram demitidos; os que trabalhavam na iniciativa privada foram perseguidos e muitos deles perderam os empregos. Tanta gente foi para a rua em Minas que Milton Campos, um dos cabeças da articulação que produziu o documento, dizia em tom de blague: “O Manifesto, feito para criar onda, acabou criando vagas”. A maioria dos signatários do “Manifesto dos Mineiros” participou da fundação, um ano e meio depois, da União Democrática Nacional, a UDN, que jogaria um importante papel na derrubada de Vargas. AO POVO MINEIRO As palavras que nesta mensagem dirigimos aos mineiros, queremos que sejam serenas, sóbrias e claras. Nelas não se encontrará nada de insólito, nenhuma revelação. Dirigimo-nos, sobretudo, ao espírito lúcido e tranqüilo dos nossos coestaduanos, à sua consciência firme e equilibrada, onde as paixões perdem a incandescência, se amortecem e deixam íntegro o inalterável senso de análise e julgamento. Este não é um documento subversivo; não visamos agitar nem pretendemos conduzir. Falamos à comunidade mineira sem enxergar divisões ou parcialidades, grupos correntes ou homens. Assim como não pretendemos conduzir, não temos o propósito de ensinar. Mas ensinar é uma coisa e recordar, retomar consciência de um patrimônio moral e espiritual, que seria perigoso considerar uma vez por todas como definitivamente adquirido, é outra muito diferente. Num tom de conversação em família - família numerosa, porém unida e solidária -, queremos recordar aos mineiros que o patrimônio moral como o espiritual não sobrevive ao desleixo. Os bens materiais arruinam-se e se perdem quando a diligência do dono não se detém sobre eles. As conquistas espirituais também se perdem quando o homem as negligencia, por lhe parecer assegurada a sua posse. As idéias e sentimentos a que buscamos aqui dar expressão, cessaram de ser um estado natural de coisas. Uma dúvida paira sobre elas, no seio dos povos cujo espírito de demissão se acomodou com os atentados aos mais imprescritíveis direitos do homem e do cidadão. O Brasil pertence à cultura ocidental e dela não se poderá isolar nunca. Exatamente porque o nosso destino está de maneira indissolúvel ligado ao Ocidente, nós sofremos a flutuação dos seus valores morais e espirituais. A democracia não era mais, há alguns anos passados, um bem assegurado. Vivia ameaçada de dentro e de fora das nações, e em muitos países falhou completamente. Em conseqüência desses acontecimentos, que atingiram várias das maiores nações do Ocidente, o povo de Minas Gerais como, afinal, o de todo o Brasil, vê-se forçado a uma atitude de total retraimento e absoluto mutismo. Por isso, as idéias que aqui recordamos aos mineiros, passaram a constituir, apenas, o tema das palestras e comentários privados, no seio dos lares da nossa pacífica e grave Minas Gerais. A extinção de todas as atividades políticas e de todos os movimentos cívicos forçou os mineiros, reduzidos à situação de meros habitantes da sua terra, a circunscreverem a sua vida aos estreitos limites do que é quotidiano e privado. Quem conhece a história das tradições da nossa gente, pode medir a extensão da violência feita ao seu temperamento por essa compulsória e prolongada abstinência da vida pública. O amor à crítica e ao debate, o apego às prerrogativas da cidadania, o dever político, no seu mais nobre e dignificante sentido, numa palavra, a irresistível vocação para a vida pública, não são, sem dúvida, felizmente, no Brasil, privilégio dos mineiros; mas devemos orgulhar-nos, por todas as razões, do fato de ser a comunidade mineira no País, por influência dos fatores de ordem histórica e social, aquela onde esse sentimento dos interesses coletivos e essa compreensão do munus cívico, essa indomável e altiva tendência política nunca perderam sua força e constância. As palavras ponderadas desta mensagem, que dirigimos aos nossos coestaduanos, inspiram-se, pois, nas suas mais firmes tradições de civismo e no seu reconhecido apego aos ideais políticos que se realizam pela autonomia estadual e pela democracia. Nada mais são do que o eco, por nós recolhido e intensificado, das que foram proferidas, nos prenúncios da Independência, por Tiradentes e seus companheiros de infortúnio e de glória e que mais tarde, no Império, deveriam reboar pelos vales e quebradas da nossa província, no decurso de lutas memoráveis e de incessantes arremetidas contra a personificação do Poder, sempre conducente aos desequilíbrios e paralisias do unitarismo e às restrições das liberdades públicas e privadas. Fomos buscar inspiração no passado, porque nele procuram assentar a constância de sua regência política os que, entre nós, por uma errônea interpretação da História, nele somente vislumbram algumas não contestadas vantagens da centralização administrativa e do Governo monocrático, sem atentarem para os males, de muito maior extensão, que lhes são inerentes, sobretudo para a sua fatal tendência a usurpações da soberania. Recorrendo por nosso turno àquele passado, temos em vista focalizar, de preferência, as ininterruptas reivindicações cívicas e provinciais que deveriam manter a opinião do País em contínua vigilância e suspender, no impulso dos seus movimentos, entre muitos outros, homens da têmpera e da vocação democrática de Teófilo Ottoni, Francisco Otaviano, Tavares Bastos, José Bonifácio, o Moço, Aristides Lobo, Quintino Bocaiúva, Campos Sales, Prudente de Morais, Cesário Alvim, João Pinheiro, Rui Barbosa, Benjamim Constant, Assis Brasil e Júlio de Castilhos. Tal qual se vê, desejamos retomar o bom combate em prol dos princípios, das idéias e das aspirações que, embora contidas ou contestadas, haveriam de nos dar a Federação e a República, não como criações artificiais de espíritos românticos e exaltados, mas sim como iniludíveis imposições de forças históricas profundas. E ao fazê-lo queremos afirmar, peremptória e lealmente, que não nos movemos contra pessoas nem nos impele qualquer intuito de ação investigante ou julgadora de atos ou gestos que estejam transitoriamente compondo o presente capítulo dos nossos anais. Apenas não foi este o estilo de vida a que aspiramos no passado e não é o que almejamos para o futuro. A prosperidade nos negócios, o êxito nas atividades profissionais, a riqueza, o conforto, o gozo da tranqüilidade fácil de todos os dias, mesmo que existissem, não esgotariam as nossas aspirações, nem resumiriam a nossa concepção do destino humano. Para que não se ponha em dúvida a sinceridade dos sentimentos que nos animam, reconhecemos que o Brasil está em fase de progresso material e tem sabido mobilizar muitas de suas riquezas naturais, aproveitando inteligentemente as realizações do passado e as eventualidades favoráveis do presente. Limitar-nos-emos a notar que, em outros países, assim como vinha sucedendo no nosso próprio, idênticos resultados foram conseguidos sem o sacrifício dos direitos cívicos, o que demonstra não serem peculiares a formas autoritárias de governo. Não se infira, porém, da ressalva feita, que desejamos voltar aos vícios das organizações e práticas políticas anteriores a 1930. Impossível seria negar que, de posse do poder, muitos dos seus homens não raro se valiam, como se suas próprias fossem, das graves faculdades de pagar e prender, nomear e demitir, promover e premiar, a fim de adquirir e penhorar dedicações pessoais, com que armavam e mantinham máquinas eleitorais, destinadas a corromper a expressão dos sufrágios populares e a impedir o livre desenvolvimento das nossas melhores vocações políticas. Condenamos, com firmeza, os erros, as corrupções e os abusos do regime transposto definitivamente em outubro de 1930. Mas se um desses abusos, aquele que, antes de todos, deveria suscitar a Revolução, foi precisamente o da hipertrofia no Poder Executivo, manifestação atávica do poder pessoal, nunca suficientemente condenado no Império e nos últimos tempos da chamada República Velha, caracterizado pela incidência da chefia suprema do Governo e da política nas mãos de um só homem, sempre desejoso de perpetuar-se mediante indicação de um sucessor, se, entre aqueles erros, os mais apontados entendiam com o ludíbrio da opinião pública, traduzida em sufrágio, e com a opressão de estados de sítio de duvidosa legitimidade e de excessiva duração, claro é que, recusando-nos a volver ao passado, impossível nos seria aceitar como definitiva qualquer ordem política na qual, para evitar a defraudação de sufrágios, se fechassem as urnas; para prevenir o estado de sítio ilegal se fizesse legal a sua perpetuidade e, por derradeiro, para obstar à hipertrofia do Poder Executivo, fosse este transformado em poder constitucional realmente único. Não é bastante que figurem em diplomas constitucionais franquias e direitos dos cidadãos. O essencial é que sejam assegurados e que possam ser exercidos. Louvando os homens de 1930, civis e militares, pelo empenho posto na destruição das velhas máquinas eleitorais, montadas com o indevido emprego das seduções e recursos do poder público, estamos seguros de que não teremos de assistir a repetição daqueles processos, nem mesmo sob a aparência de ensaios de corporativismo, quando estes se afastam da espontaneidade histórica e se transformam numa simples alavanca de governos de índole fascista. Bem fixadas as marcas características da nossa formação e das nossas tendências, não poderemos fugir, sem grave desfiguração de ambas, ao dever de constatar que não é suprimindo a liberdade, sufocando o espírito público, cultivando o aulicismo, eliminando a vida política, anulando o cidadão e impedindo-o de colaborar nos negócios e nas deliberações do seu governo que se formam e engrandecem as nações. A ilusória tranqüilidade e a paz superficial que se obtêm pelo banimento das atividades cívicas podem parecer propícias aos negócios e ao comércio, ao ganho e à própria prosperidade, mas nunca benéficas ao revigoramento e à dignidade dos povos. Se tais são as nossas disposições de espírito e se mal algum poderá advir, para o esforço de guerra do Brasil, do estudo e da preparação de planos para a ponderada reestruturação constitucional da República, ao ser firmada a paz, no uso da liberdade de opinião, pela qual o Brasil também se bate, pedimos a todos os mineiros de boa vontade, sem qualquer compromisso de solidariedade partidária, que meditem sobre a organização política e administrativa que, à luz da experiência dos melhores homens e de sua atilada prudência, possam evitar os males do passado e os equívocos do presente e assegurar a ordem e a prosperidade do País. Como temas históricos de necessária meditação, sugerimos os constantes da circular de 19 de setembro de 1860, de Teófilo Ottoni; do manifesto republicano de 3 de dezembro de 1870; dos programas da convenção e do congresso realizados em fevereiro de 1882 e maio de 1884, no Rio Grande do Sul, adaptáveis às atuais circunstâncias. Igual atenção merecem as Constituições de 1891 e de 1934 e a Carta outorgada em 10 de novembro de 1937, bem como os documentos básicos das nossas grandes campanhas eleitorais de 1910, 1919, 1922 e 1930. Atendendo à rapidez da evolução da humanidade para novas modalidades de equilíbrio social e internacional, julgamos da máxima importância o estudo e o desenvolvimento dos postulados da Carta do Atlântico e das Recomendações Preliminares para os problemas de após-guerra, da Comissão Jurídica Americana. Assumindo a responsabilidade de iniciar, no grave momento que atravessamos, a preparação do povo mineiro para o exercício das suas prerrogativas fundamentais, cumpre-nos deixar, desde logo absolutamente certo que tudo faremos para que ela, de maneira alguma, possa comprometer a união cívica e moral que tanto importa resguardar, em face dos tremendos problemas da guerra. Segundo pensamos, união é harmonia espontânea e não unanimidade forçada, convergência de propósitos lúcidos e voluntários e não soma de adesões insinceras. Um povo reduzido ao silêncio e privado da faculdade de pensar e de opinar é um organismo corroído, incapaz de assumir as imensas responsabilidades de correntes da participação num conflito de proporções quase telúricas, como o que desabou sobre a humanidade. Se lutamos contra o fascismo, ao lado das Nações Unidas, para que a liberdade e a democracia sejam restituídas a todos os povos, certamente não pedimos demais reclamando para nós mesmos os direitos e as garantias que as caracterizam. A base moral do fascismo assenta sobre a separação entre os governantes e os governados, ao passo que a base moral e cristã da democracia reside na mútua e confiante aproximação dos filhos de uma mesma pátria e na conseqüente reciprocidade da prática alternada do poder e da obediência por parte de todos, indistintamente. No momento em que o mais antigo - o precursor dos Estados totalitários - naufraga no mar profundo dos seus próprios vícios, pressente-se que se aproxima, para todos os povos, a oportunidade de uma retomada de consciência dos valores democráticos, ou, para melhor dizer, de sua regeneração pelo sentimento e pelo pensamento. Seu passageiro declínio explica-se pelo encanto da aparente novidade de que se revestiu a doutrina fascista. Só não desejam mudar os homens que estão tranqüilos. Os que sofrem, quaisquer que sejam eles, são ávidos de coisas novas. O que Júlio César dizia dos gauleses, que eram novarum rerum cupidi, pode ser atribuído a todos os seres humanos, com especialidade nas tormentosas quadras de reacomodações sociais e econômicas. Quando surgiu, no ano de 1922, na Itália, o primeiro governo totalitário, toda a gente lhe augurou um próximo e inglório fim. Homens nascidos e criados dentro do espírito que o imenso acontecimento que foi a Revolução Francesa espalhou pelo mundo, os daquela geração tiveram a maior dificuldade em compreender, desde logo, essa aberração política, hoje crismada de "fascismo" e antes e sempre denominada despotismo. A princípio, pretenderam circunscrevê-lo às fronteiras físicas e morais dos países atingidos pelo mal. Evidentemente, os fatos que o revelavam eram os italianos, ora alemães, ora espanhóis, ora portugueses, como portugueses, espanhóis, alemães e italianos eram os homens que o defendiam ou suportavam. Mas os traços essenciais do drama produzido pelo desaparecimento da fé na liberdade e nos direitos que dignificam o homem, eram os de um fenômeno universal, resultante da inútil resistência a transformações econômicas e sociais, reclamadas por indomáveis imperativos de justiça e de solidariedade humana. Chumbados a interesse de mesquinho egoísmo, não foram poucos os conservadores que aderiram à perigosa aventura de restauração das bastilhas do absolutismo e a financiaram, na ingênua suposição de que salvariam, por esse modo, anacrônicos privilégios. Desprevenido diante dos frios cálculos e manobras maquiavélicas do seu novo inimigo, o regime democrático, em muitas oportunidades, mas especialmente na reunião de Munique, concluiu tratados de má-fé recíproca entre a paz e a violência. As decepções decorrentes da abdicação não se fizeram esperar muito. Regenerados, porém, pelo sofrimento, purificados pela dor, os povos ocidentais compreenderam, ainda uma vez, que fora da democracia não há salvação possível, para a paz e para as liberdades que enobrecem e exaltam a espécie humana. E dão por igual um outro decisivo testemunho: o de que o seu princípio vital é realmente, a virtude, segundo a bela demonstração do assaz malsinado e raramente lido Montesquieu. Mas, para que a democracia produza frutos, é necessário que o homem da rua e o das classes dirigentes possuam o mesmo apurado sentido de bem comum e a mesma ardente e abnegada ambição de servir. Do contrário, será mera aparência. Para que esse regime sobreviva, como sobreviveu na Inglaterra e nos Estados Unidos, é necessário que as nações se convençam de que provocarão a guerra em lugar de bani-la sempre que o seu pacifismo for mais forte do que a decisão de lutar pela própria sobrevivência. Sendo a guerra um monstruoso crime, cumpre que as nações se armem moral e materialmente, para punir os grupos humanos que o pratiquem ou tentem praticar. Do que fica dito, fácil é inferir que a democracia por nós preconizada não é a mesma do tempo do liberalismo burguês. Não se constitui pela aglomeração de indivíduos de orientação isolada, mas por movimentos de ação convergente. Preconizamos uma reforma democrática que, sem esquecer a liberdade espiritual, cogite, principalmente da democratização da economia. Num e noutro domínio, o tempo do liberalismo passivo já findou. Não é de fraqueza renunciante e de tolerância céptica que a democracia precisa. Assim escoltada, ela pareceria digna de piedade, em face das doutrinas baseadas na violência e que nenhum escrúpulo detêm. Ao reconhecimento disto ligamos a renovação espiritual do regime democrático. Quanto à sua renovação econômica, toda a gente sabe o que significa. Sua culpa moral e sua inferioridade - que ao próprio fascismo dá oportunidade de fazer valer um arremedo de idealismo - reside no domínio do dinheiro, que, com a passividade da revolução burguesa, substituiu-se sub-repticiamente às desigualdades do feudalismo, o que é, sem dúvida, mais moderno, embora seja igualmente injusto. Queremos alguma coisa além das franquias fundamentais, do direito de voto e do habeas corpus. Nossas aspirações fundam-se no estabelecimento de garantias constitucionais, que se traduzam em efetiva segurança econômica e bem-estar para todos os brasileiros, não só das capitais, mas de todo o território nacional. Queremos espaço realmente aberto para os moços, oriundos de todos os horizontes sociais, a fim de que a nação se enriqueça de homens experimentados e eficientes, inclusive de homens públicos, dentre os quais venham a surgir no contínuo concurso das atividades políticas, os fadados a governá-la e a enaltecê-la no concerto das grandes potências, para o qual rapidamente caminha. Queremos liberdade de pensamento, sobretudo do pensamento político. Ao dar expressão desse modo às aspirações de Minas Gerais, dentro da comunhão brasileira, tivemos presente, acima dos pontos de vista regionais, as coordenadas que enquadram todo o vasto panorama dos anseios e das necessidades do Brasil, e esperamos que idênticos movimentos se processem em todos os demais Estados. Em verdade, Minas não seria fiel a si mesma se abandonasse sua instintiva inclinação para sentir e realizar os interesses fundamentais de toda a Nação. Concluindo, reiteramos a nossa solidariedade com os compromissos do Brasil, a cuja política de guerra - tal como todos os brasileiros dignos deste nome - temos prestado e continuaremos a prestar o nosso inteiro apoio. Exatamente por sermos fiéis a esses compromissos, entendemos que nos cumpre cogitar, desde já, com patriotismo e prudência, da organização política do país no após-guerra, tendo em vista principalmente as indicações da Carta do Atlântico. O povo a que alude este famoso documento que orienta a comunidade das Nações Unidas, só pode ser o que se manifesta pelo voto espontâneo e livre, pois, de outra sorte, absurdo e iníquo seria que se destruísse, com tão surpreendente dispêndio de sangue e de riqueza, o sistema político que Hitler e Mussolini e seus inúmeros cúmplices sempre proclamaram como aplaudido e consagrado pelos povos da Itália e da Alemanha, para mantê-lo sob especiosos disfarces depois da vitória. Em suma: anunciando que a Nação será convocada para a sua estruturação política, parece-nos - tal como já foi dito em Londres - que, se os povos aguardarem a vitória a fim de escolherem os seus rumos, terão para isso perdido uma das supremas oportunidades da História. Eis por que, no momento em que devemos, unidos e coesos, sem medir sacrifícios e sem quebra ou interrupção da solidariedade já manifestada, dar tudo pela vitória do Brasil, entendemos que é também contribuir para o esforço de guerra conclamar, como conclamamos, os mineiros a que se unam acima de ressentimentos, interesses e comodidades, sob os ideais vitoriosos a 15 de novembro de 1889 e reafirmados solenemente em outubro de 1930, a fim de que, pela federação e pela democracia, possam todos os brasileiros viver em liberdade uma vida digna, respeitados e estimados pelos povos irmãos da América e de todo o mundo. Belo Horizonte, 24 de outubro de 1943. Adauto Lúcio Cardoso - Adolfo Bergamini - Achilles Maia - Afonso Ari-nos de Melo Franco - Afonso Pena Jr. - Alaor Prata - Alberto Deodato - Alfredo Carneiro - Viriato Catão - Alfredo Martins de Lima Castelo Branco - Aloísio Ferreira de Sales - Álvaro Mendes Pimentel - André de Faria Pereira - Antônio Carlos Vieira Cristo - Antônio Neder - Artur Bernardes - Artur Bernardes Filho - Artur Soares de Moura - Astolfo Resende - Augusto Couto - Augusto de Lima Jr. - Belmiro Medeiros da Silva - Bilac Pinto - Bueno Brandão - Caio Mário da Silva Pereira - Caio Nelson de Sena - Cândido Na-ves - Carlos Campos - Carlos Horta Pereira - Carmelindo Pinto Coelho - Dalmo Pinheiro Chagas - Daniel de Carvalho - Dario de Almeida Magalhães - Darci Bessoni de Oliveira Andrade - Edgar de Oliveira Lima - Edmundo Meneses Dantas - F. Mendes Pimentel - Fausto Alvim - Feliciano de Oliveira Pena - Flávio Barbosa Melo Santos - Francisco de Assis Magalhães Gomes - Galba Moss Veloso - Geraldo Resende - Gilberto Alves da Silva Dolabela - Gudesteu Pires - Heitor Lima - J. Sandoval Babo - João do Amaral Castro - João Edmundo Caldeira Brant - João Franzen de Lima - João Romero - Joaquim de Sales - Jonas Barcelos Correia - José de Magalhães Pinto - José Maria Lopes Cansado - José Maria Leão - José do Vale Ferreira - Lincoln Prates - Luís Camilo de Oliveira Neto - Mário Brant - Maurício Limpo de Abreu - Milton Campos - Múcio Continentino - Nelson de Sena - Otávio Murgel de Resende - Odilon Braga - Ovídio de Andrade - Paulo Pinheiro Chagas - Pedro Aleixo - Pedro Batista Martins - Pedro da Silva Nava - Raul de Faria - Ronan Rodrigues Borges - Salomão de Vasconcelos - Sílvio Marinho - Tristão da Cunha - Virgílio A. de Melo Franco. Nota: Na impossibilidade de submeter este manifesto até 24 do corrente, à assinatura de outros coestaduanos que de certo o teriam firmado, os seus signatários a ele juntarão, oportunamente, os nomes daqueles que lhe queiram dar a sua aprovação.

A entrevista que acabou com a censura à imprensa (1945)


24/02/1945



No dia 24 de fevereiro de 1945, o “Correio da Manhã”, do Rio de Janeiro, publicou longa entrevista do escritor José Américo de Almeida concedida dois dias antes ao jornalista Carlos Lacerda. Ministro do Tribunal de Contas, ex-candidato a presidente de República nas eleições abortadas de 37, ex-ministro da Viação e um dos chefes da Revolução de 30 no Nordeste, José Américo usou toda a sua autoridade para vir a público criticar o Estado Novo, denunciar o fracasso administrativo do governo e dizer que era imprescindível a convocação de eleições, às quais Getúlio Vargas não poderia concorrer. A entrevista teve enorme repercussão, não apenas por seu conteúdo, mas pelo fato de não ter sido submetida à censura prévia das autoridades. Na prática, ela acabou com a tesoura. Nos dias seguintes, jornais de todo o país passaram a publicar matérias, reportagens e artigos contra o regime, sem dar bola para os censores, que, diante da desobediência generalizada, deixaram as redações. Segue-se a íntegra da entrevista: " - Nesta hora, não me nego a falar. Ao contrário, julgo chegado o momento de todos os brasileiros opinarem. Esta é uma hora decisiva, que exige a participação de todos no rumo dos acontecimentos. Com estas palavras o Sr. José Américo de Almeida, chefe civil da Revolução de 30 no Norte, Ministro da Viação e depois candidato à presidência da República, volta à participação ativa na vida pública. Baseado precisamente nessas credenciais e na sua condição de escritor, o que, no seu modo de ver, importa compromisso perante a opinião nacional, o Sr. José Américo, atualmente Ministro do Tribunal de Contas, invoca as decisões do Primeiro Congresso de Escritores Brasileiros, reunido em São Paulo em janeiro deste ano, para acentuar a obrigação de os homens de pensamento tomarem atitude ante "os problemas de sua época e do seu povo". - Todos devem intervir na vida pública, segundo sublinhou bem a Declaração de Princípios dos Escritores. Por isso mesmo, saio do retraimento em que me tenho mantido para manifestar uma opinião sincera em relação ao problema fundamental do meu País. Na varanda de sua casa da Rua Getúlio das Neves, com raras interrupções - a netinha, que vem pedir um envelope, a empregada, que traz o café, a chegada de um amigo -, na paz das samambaias umbrosas, junto à massa do Corcovado, ao fundo da pequena rua, o Sr. José Américo faz as suas declarações. Em plena maturidade, sem os óculos que os caricaturistas celebrizaram em duas espirais representando as lentes grossas, baixando um pouco a cabeça para falar, num jeito modesto e tímido, mas inexorável de dizer as suas verdades, é indisfarçável a emoção com a qual ele se dirige à opinião brasileira. - O povo me entende porque eu sempre procurei ser sincero, simples e direto. Falo de consciência tranqüila e coração aberto. Para ele, o problema nacional é menos político do que moral. - Acredito na existência da sensibilidade moral do nossos povo. Não sou um desencantado. Sei quanto vale o homem brasileiro. Romancista da gente nordestina, ele acredita profundamente no vigor essencial do brasileiro. Sendo o primeiro a proclamar a crise moral que lavra fundo na consciência nacional, considera possível curá-la com os próprios recursos da democracia, já que foi o regime autoritário que a agravou. A autoridade das suas palavras provém menos da experiência dos [ilegível] qual parece encarar essa própria realidade. O Sr. José Américo é uma força telúrica. Parece, realmente, um homem profundamente enraizado na terra. A sua emoção, hoje fortalecida pelo ostracismo e pela dignidade com que soube esperar, ressurge agora com a força concentrada da longa meditação sobre os homens e os fatos do País. Não existe amargura, antes alegria, ainda que discreta, nas suas palavras. E ele se prepara, com um indisfarçável orgulho, para enfrentar as conseqüências de suas atitudes, considerando necessário falar agora; nunca depois deste momento. - No momento em que se pretende transferir a responsabilidade da situação dominante no Brasil da força que a apoia para a chancela do povo, é a própria ditadura expirante que nos dá a palavra. É preciso que alguém fale, e fale alto, e diga tudo, custe o que custar. Clandestinidade e sinceridade - Já todos sabem o que se está processando clandestinamente. Forja-se um método destinado a legalizar poderes vigentes, a manter interventores e demais autoridades políticas, pela consagração de processos eleitorais capazes de coonestar essa transformação aparente. Mas - acentua - uma Constituição outorgada não será democrática porque lhe falta a legitimidade originária. O projeto que se anuncia, mas que não foi ainda divulgado, devia ser submetido a uma comissão de notáveis e à consideração de órgãos autorizados, como a Ordem dos Advogados, sempre atenta na defesa de nossas tradições jurídicas e ideais democráticos, que nunca deixou de associar como criações do mesmo espírito, para receber finalmente a aprovação ou modificação de uma Assembléia Constituinte, assegurados debates livres e capazes de permitirem que todos acompanhassem a elaboração da carta fundamental da Nação. Assim o documento seria legítimo. Palavras ao Chefe do Governo O Sr. José Américo prossegue: - Nunca mais me avistei com o Sr. Getúlio Vargas. Mas não somos inimigos. A habilidade que eu reconheço nele é a de não irritar adversários - pelo menos até certa época. Se eu pudesse ter um contato com o Sr. Getúlio Vargas, nesta hora, eu que lhe falei com franqueza e não raro com proveito pela fidelidade com que lhe transmitia a impressão de certos atos de governo, fora do âmbito palaciano, segundo reconheceu na carta que me dirigiu por ocasião da minha saída do Ministério, eu lhe diria: faça de conta que sou aquele ministro que nunca lhe faltou com a verdade. E a seguir enumera o Sr. José Américo os argumentos que iria apresentar ao seu antigo amigo e Chefe de Governo, para demovê-lo da idéia de se apresentar candidato à presidência da República, caso esse desejo esteja em suas cogitações. Falta de apoio Segundo o Sr. José Américo, seriam estes os argumentos: 1) Falta de apoio do mundo político. Amigos do Sr. Getúlio Vargas que lhe merecem a maior confiança já consultaram setores dos mais ponderáveis da opinião e chegaram à evidência de que lhe faltaria esse apoio imprescindível, não só para assegurar o êxito de uma eleição livre, como para autenticar a nova feição do seu poder. 2) Em conseqüência, ficaria o candidato reduzido ao quadro atual do Governo, restrito e fatigado. Passa o Sr. José Américo a fundamentar essas afirmações: - O Brasil vai ingressar no seu momento mais difícil. E precisa, sobretudo, da união nacional para encontrar os meios necessários a uma estruturação democrática, apta a lhe dar substância que fundamente a obra de restauração do pós-guerra. Faz-se necessário, para tamanha empresa, além do concurso das massas, a utilização de todos os elementos de cooperação capaz, de todos os valores mobilizáveis da nacionalidade. Precisamente isso _ acentua _ seria impossível se o atual Chefe do Governo se fizesse candidato. É certo que alguns chefes de Estado têm permanecido no poder em face da exigência de problemas graves. Mas renovando seu equipamento administrativo, o seu corpo de auxiliares. E, quanto maior a crise, mais profunda essa mudança de valores. Crise de confiança - Ora, essa substituição não se poderia realizar em conseqüência da crise de confiança declarada no País. Para atender aos reclamos da pacificação nacional, numa obra comum - direi - de salvação pública, seria necessário que o Governo como um todo, merecesse a confiança dos democratas. Mas a longa prática do poder, sobretudo de um poder discricionário, vicia os seus elementos políticos e administrativos, incapacitando-os, perante a opinião, para uma obra de renovação cívica e material. Esse material humano já não dispõe de crédito para empreender uma nova aventura. E não se pode cogitar de aventurar quando estão em jogo os destinos supremos do Brasil. Já não se pode tentar nova experiência com esse elemento, incapaz de eliminar voluntariamente todos os vestígios do governo autoritário, porque: 1) ele se tornou suspeito perante a opinião democrática; 2) devido ao seu insucesso na obra administrativa." Um exemplo: São Paulo Conseqüentemente, para o Sr. José Américo, intimamente ligada à crise de confiança política, existe uma crise, talvez ainda mais profunda, de confiança na capacidade administrativa da equipe política que compõe o Governo: - Vamos examinar um setor, para exemplo. E há de ser precisamente o exemplo da região nacional que, sendo a mais organizada e eficiente, é a que mais produz riqueza: São Paulo. Que é São Paulo, atualmente? E o Sr. José Américo sintetiza: - De vinte milhões, cai para dois milhões de sacos a produção do café, enquanto, pela proibição de novas culturas, o cafezal existente, envelhecido, apresenta rendimento mínimo para o custeio elevadíssimo; comprometidos o presente e o futuro da produção algodoeira; um parque industrial não renovado, inclusive por imposições oficiais, e que, portanto, não poderá suportar a concorrência da indústria estrangeira, mesmo sob a proteção alfandegária, quando ressurgirem os produtores mundiais dotados de equipamento moderno, ainda mais remunerador; além do mais, lá, como em todo o Brasil, o flagelo da inflação agravando todos os problemas e interesses; e - o que pareceria inconcebível ver-se em terras de São Paulo - esse grande celeiro chegando a sofrer necessidade e a apelar para a produção dos Estados do Sul, porque, tendo sido vedadas as novas plantações de café, cessou a cultura alternada de cereais que era feita pelos colonos! Basta esse quadro - continua - para mostrar que o Sr. Getúlio Vargas iria iniciar sem solução de continuidade uma nova fase de governo exatamente quando se está a encerrar uma outra e longa fase sem resultados compensadores. Com a sua renúncia expressa à hipótese de sua candidatura, poderia ele reconquistar a popularidade. Reconciliado, assim, com a opinião pública, deixaria um saldo para futuramente ressurgir, com maior e mais justa projeção. Eis nas suas serenas palavras o que o Sr. José Américo diria ao seu antigo amigo, o Presidente Getúlio Vargas, para evitar que, por falta de uma advertência leal, ele fosse levado a aceitar o lançamento do seu nome à sua própria sucessão. Uma guerra que é nossa Passa depois a analisar a guerra e a paz nas suas relações com o momento nacional: - Embora não queiramos sofrer influências estranhas, evidentemente o Brasil tem de receber os reflexos da guerra, do caráter ideológico da guerra, que é uma luta pela sobrevivência e purificação da democracia. A guerra, com todos os seus males, é uma grande oportunidade para nos organizarmos e ocuparmos o espaço territorial do nosso País, desenvolvermos a exploração de nossas riquezas. A vitória que os nossos compatriotas da Força Expedicionária Brasileira foram buscar na Europa é uma vitória atual para a nossa geração, sim, mas sobretudo uma vitória para o futuro do Brasil. Já estava premeditada a partilha do nosso território, mesmo antes do litígio, com os países do Eixo, conforme documentos da maior gravidade que foram a tempos apreendidos, de maneira que, triunfantes esses países, constituiríamos um dos seus mais ricos despojos. Foi a resistência vital das democracias que salvou a nossa independência. União nacional e homem providencial - Para atender às solicitações da guerra à consciência dos brasileiros, precisa o País de um governo de concentração nacional. Ora, um governo não se compõe de um homem providencial e de um povo anestesiado. Já há dias lembrava o meu amigo Adolfo Konder que qualquer cidadão capaz pode ser presidente da República - verdade elementar que íamos esquecendo. Um homem de bom senso e espírito amplo, que convoque a cooperação de todos os patriotas e se cerque de auxiliares que, pelo seu valor e idoneidade, mereçam a confiança nacional, esse homem, sim, poderá realizar o grande governo de que o Brasil mais do que nunca necessita. Assim, pois, reintegrado na ordem jurídica, fiadora dos interesses nacionais e estrangeiros que se disponham a colaborar na nossa riqueza, em ambiente de liberdade e justiça e conduzido por essa poderosa consciência de sua própria predestinação, atravessará os dias difíceis de reajustamento das novas condições do mundo. Só organizado nesses moldes, poderá valorizar a sua existência como nação e atender aos seus compromissos na reconstrução do mundo devastado. Um governo de equilíbrio, de ordem, de trabalho. A responsabilidade da crise - Costuma-se responsabilizar a guerra pela depressão econômica do Brasil. Não me parece que seja exato esse conceito. Nem se diga que a mobilização de um contingente mínimo em relação à nossa massa demográfica desviou atividades a ponto de prejudicar a normalidade produtiva que, ao contrário, devia ter sido desenvolvida, à maneira do que ocorreu em todos os países beligerantes exatamente para atender às novas necessidades criadas pela luta. Ao revés, o Brasil tem vivido, em parte, do estancamento e da paralisação de fontes produtoras, causados pela guerra em outros países. A guerra trouxe capitais, técnicos, cooperação na solução dos nossos problemas, descoberta de riquezas e valorização de produtos. Alguns Estados do Nordeste - para falar só nele - estariam famintos se não fosse a localização e valorização de seus minérios e produtos estratégicos. De fato, a guerra prejudicou um pouco o abastecimento, mas unicamente porque foi permitido exportar mais que o possível, com prejuízo do consumo interno. Só a escassez do petróleo poderia ser atribuída à guerra, mas isso acontece até nos países produtores desse combustível e deve ser levada à conta da ausência de estoques que deveriam ter sido feitos logo que se manifestaram os primeiros sinais da tormenta a avizinhar-se. O Sr. José Américo fixa então o seu interlocutor e declara: - O que houve realmente foi o maior pecado: a imprevisão. Imprevisão e incapacidade - De fato, por imprevisão, a guerra nos surpreendeu já sem aparelhamento de transporte, com déficit de material nas estradas de ferro, empresas de navegação desorganizadas, carência de produção. Só assim se explica que as nossas cidades tenham chegado à crise de abastecimento, que resulta: 1) de falta de produção; 2) da falta de transportes terrestres e marítimos; 3) e, mais prejudicial, da especulação que o Governo não teve forças para controlar. E deve-se considerar também a desorganização geral, cujo sintoma mais penoso são as filas, em que as populações urbanas perdem o tempo e esgotam os nervos, criando o ambiente de irritabilidade que já se pode observar com certa inquietação. Há uma pausa na enumeração, visivelmente destinada a assinalar o aspecto seguinte: - 4) O outro fator é a intervenção de um Estado desaparelhado e incapaz. Essa intervenção perturbou uns tantos problemas que a iniciativa particular ia conduzindo com relativa facilidade. O Estado incapaz, ao intervir, criou casos de perturbação, determinados ora pelo retraimento da iniciativa particular, ora pelo seu iniludível efeito sobre o nível dos preços das utilidades. E assim, com a sua característica franqueza, o Sr. José Américo feriu de frente a origem do problema do abastecimento, definindo a causa da crise da carne, do peixe, de ovos, do leite, da manteiga, do sal etc. - E - acrescentou ele - por que não dizer? - do açúcar, em que se transformou, aberrantemente, o fenômeno da superprodução em severo racionamento? Finalmente, da carência de tudo que aflige a população e que se procura em vão subtrair à responsabilidade do Governo, transferindo injustamente essa responsabilidade à emergência da guerra. E muito simplesmente conclui: - Esta é que é a verdade, e todos sabem o que eu digo. Todos sentem e comentam essas deficiências e esses erros. Basta comparar o aumento do custo de vida em países muito mais duramente atingidos pela guerra com o de astronômicas proporções que se registrou no Brasil, para ver que a guerra não é a causa principal da nossa crise econômica. Por certo, mesmo com a previsão, que faltou, seria difícil improvisar muita coisa. Mas, mesmo com a imprevisão, que evidentemente predominou, seria possível improvisar muito, no terreno da produção agrícola. Com a diversidade dos nossos climas, a caracterização de áreas de produção diversificável, seria possível intensificar, em poucos meses, a produção de cereais e outros gêneros de primeira necessidade. Concentração de esforços O Sr. José Américo não nega que: - No decorrer de tantos anos, e a partir de 1937, com uma soma de poderes que nenhum governante enfeixou no Brasil, ainda mais sem abalos da ordem pública, o Governo tenha procurado encaminhar alguns problemas. Por exemplo, o da siderurgia. Mas acrescenta: - Houve, no entanto, o abandono de iniciativas primárias, principalmente aquelas relacionadas com a produção e o transporte. É possível que tenha prevalecido a preocupação de impressionar com empreendimentos de maior vulto, de modo a justificar a fisionomia do regime. Mas, se tais empreendimentos absorveram atenções e recursos, não contribuíram para preferir atividades mais acessíveis e imediatas, destinadas, inclusive, a lastrear e garantir o êxito daquelas de mais remotos resultados. É, em suma, um governo que acaba exausto e impotente, apesar dos apelos imoderados à emissão de papel-moeda e da sangria fiscal. A política trabalhista Exaltada por muitos e desconhecida por outros, em menor número, a legislação trabalhista atual, que tem sido tabu, passa a ser examinada pelo Sr. José Américo do ponto de vista da sua aplicação efetiva: - Ela é avançada no papel - afirma o ministro -, mas não produz os benefícios apregoados. Está atrofiada pela burocracia e deformada pela propaganda. Desvirtuou-se pelo desvio na aplicação dos recursos acumulados pela contribuição compulsória de empregados e patrões. Falta-lhe um cunho mais prático de assistência social, pois as pensões mesquinhas, que não dão para viver, são ainda retardadas por um processo moroso e dispendioso. Recolhi, nesse particular, os depoimentos mais imparciais de chefes de indústrias e médicos de fábricas, que em contato com essa realidade reconhecem a precariedade da assistência oficial, que se tornou, assim, inoperante. Essa política do trabalho infelizmente serviu menos aos interesses a que devia aplicar-se do que às paradas do regime, com rigorosas sanções para os faltosos. A conclusão surge, inapelável: - Efetivamente, portanto, a legislação trabalhista não está amparando, como devia, o operário brasileiro. Mesmo que tivesse outra orientação, estaria anulada nos seus efeitos pela falência de sua função essencial, que é garantir o bem-estar do povo. Basta verificar a situação de pobreza e miséria a que chegaram a classe média e a classe trabalhadora, no conceito do próprio General Góis Monteiro, em sua recente entrevista. Desde que falta o que comer, falta tudo. A fome é a suprema necessidade. Candidatos que podem e que não podem - Só três brasileiros, na minha opinião, não podem ser candidatos à presidência da República nesta quadra. Os dois primeiros somos eu e o meu antigo competidor na malograda sucessão presidencial de 1937, o Sr. Armando de Sales Oliveira. Na campanha da sucessão, nós dividimos a opinião, como era natural em momento de normalidade eleitoral. Mas, hoje, precisamos estar unidos e contribuindo para a unificação das forças políticas do Brasil, em benefício da restauração democrática. E o terceiro inelegível? - O terceiro incompatível - afirma o Sr. José Américo - é o Sr. Getúlio Vargas, porque se incompatibilizou com as forças políticas do País. Malsinou tanto os políticos e as organizações partidárias, em seus recentes discursos, que os mais sensíveis, isto é, os mais briosos, já se arregimentaram contra ele. E o que convém à Nação é um homem capaz de fazer convergirem para o seu nome e o seu programa todas as correntes de colaboração. Um candidato irrevelado - As forças políticas nacionais já têm um candidato. É um homem cheio de serviços à Pátria, representa uma garantia de retidão e de respeito à dignidade do País. As preferências já foram fixadas. Os campos estão definidos. Já quase não há neutros. As posições estão ocupadas para a batalha política. O Sr. José Américo acelera o ritmo de suas frases, mas logo se refreia e observa: - Nesta altura, eu já estaria suspeito para falar em terceiro candidato. Mas, falando por mim, com a minha responsabilidade direta, não vejo homens; vejo soluções para o País. Se fosse possível suprimir essa linha de separação e congregar os brasileiros para que as energias não se consumissem e desperdiçassem na campanha eleitoral, mas em benefício geral, no interesse do êxito dos problemas que mais importam, se fosse possível encontrar, desde já, tão feliz solução, esta seria a forma mais indicada para a reconstrução política e material do Brasil. Acredita o Sr. José Américo que, nesse caso, o candidato não se oporia à apresentação de um terceiro. Formula assim a sua confiança: - Nessa hipótese, acredito que a fórmula de um terceiro candidato não seria recusada por aqueles mesmos que já tivessem a certeza da vitória. E analisa a possibilidade da vitória da candidatura do atual Chefe do Governo: - Mesmo porque a vitória, caso fosse vencedora a candidatura do Sr. Getúlio Vargas, seria apenas o começo de nova luta a reacender-se no Brasil. Por quê? Responde o Sr. José Américo: - Com governos constituídos pela oposição em vários Estados como São Paulo, Bahia etc., uma Câmara dividida, a opinião a emergir alertada da sombra da censura, a inquietação suscitada pelo período de transformações políticas que se vai inaugurar no mundo em busca de novo padrão de equilíbrio e aperfeiçoamento progressivo da democracia, ampla liberdade de crítica que o regime que se vai instituir tem de franquear para não renegar sua própria essência, a vitória da candidatura Getúlio Vargas, nas condições em que se debate o Brasil, com todos os seus elos de coesão desfeitos, inclusive os partidários, seria enfim o mergulho na anarquia. Poderia alguém governar nesse caso? A precariedade, ou melhor, a gravidade das condições gerais é que impõe a assistência de todos os brasileiros à tarefa de dirimir tais crises e dificuldades, o que só se positivaria em torno de uma figura que atraísse a confiança geral. Eis por que o Sr. José Américo declara: - Sem ter consultado ninguém, e apenas como resultado de minhas observações, conduzo-me nesta hora pela inspiração patriótica com que, ao apagar das luzes de 1937, me prontifiquei a renunciar em favor de um terceiro candidato, procurando desse modo conjurar o golpe de Estado então iminente. O General Eurico Gaspar Dutra e o Sr. Batista Luzardo são testemunhas dos passos espontâneos que dei nesse sentido. Certo de que os outros têm ainda mais pronta do que eu a capacidade de renunciar e de abrir mão de vitórias pessoais, quando assim o impõe o bem do País, é que proponho essa indicação, capaz de criar a unidade nacional mais instante do que sempre. Não tenho dúvidas de que o nosso candidato anuiria à escolha de um terceiro, uma vez afastada a possibilidade da candidatura do Sr. Getúlio Vargas. Novas perspectivas - Encontraríamos assim o caminho da paz interna com que ajudaríamos a sustentar com os nossos aliados a paz e a segurança universais e do futuro esplendoroso que nos aguarda no pós-guerra, se tivermos juízo e patriotismo, compreensão e desprendimento, cada um voltado menos para o seu egoísmo do que para as perspectivas da grande civilização que poderemos fundar nessa nova etapa do mundo. Nosso bom povo do Brasil merece respeito pela sua sorte e pelas suas decisões. Já disse que confio nele. Deverá esse Brasil do futuro valorizar o homem, esse homem resistente que realiza o milagre da sobrevivência entre tantos fatores adversos e tanto abandono da sua própria condição humana. Precisamos tratar da saúde desde o nascimento, reduzindo essa espantosa mortalidade infantil que representa o maior desfalque para o nosso progresso natural. Precisamos resolver o problema da casa, que eu disse ter solução, quando fui candidato. "Eu sei onde está o dinheiro", disse o Sr. José Américo num discurso famoso, referindo-se ao custeio da habitação popular com o dinheiro acumulado pelos institutos, mas que hoje não se poderia resolver depois de tanto tempo de soluções minguadas tentadas pelos institutos, pelo simples motivo de que uma casa padronizada, que naquele tempo custaria quinze contos, ficaria hoje por cinqüenta e sessenta mil cruzeiros. - O novo governo terá de cuidar da alimentação, que já era precária e foi agravada, nos últimos anos, pela maior crise de abastecimento de que há notícia, em nossa História. Deverá cuidar da educação, não pelo primitivismo do a-bê-cê, mas para preparar a criança para a vida moderna. Terá de reformar a política e sobretudo os costumes, para que o homem brasileiro possa ficar ao nível dos povos livres, civilizados e eficientes e à altura da grandeza da terra que a providência lhe doou. Afirmação da responsabilidade nacional - Os problemas do presente e os do futuro imediato, na recuperação da democracia, na sua valorização, na produção e intensificação da riqueza nacional, dependem no momento - não me canso de repetir - da união de todos os valores da vida brasileira, da conjugação dos esforços de todo o povo. Pelos motivos expostos, considero inviável a eleição do Sr. Getúlio Vargas, dos seus interventores, da sua estafada máquina administrativa, do seu reduzido quadro político. Reproduzo aqui o que tenho meditado e o que diria ao Sr. Getúlio Vargas, pessoalmente, caso me fosse facultada essa oportunidade. Com isso, dou-lhe uma prova de que não me desinteressei de todo pela sua sorte e, ainda mais, como sempre tenho procurado fazer, do respeito ainda maior que devo à verdade. E o Sr. José Américo conclui pela afirmação de que mais vale a luta do que a estagnação: - Caso, porém, não se verifique a desistência da sua propalada candidatura, ainda pior do que a luta da sucessão é a estagnação do espírito público. Nesse caso, uma campanha de respeito recíproco, de garantias cívicas, efetivamente asseguradas por autoridades insuspeitas, um severo regime de responsabilidade para os agentes do poder que se utilizem da máquina administrativa, dos dinheiros públicos ou da força para fins partidários, o funcionamento da Justiça Eleitoral, um pleito sinceramente efetuado, no qual o vencido pudesse respeitar o vencedor, submetendo-se ao resultado das urnas, seria também - e quanto! - uma forma de paz, paz nacional, de união do Brasil. A eleição por processos idôneos não desune. Ela reconcilia a Nação consigo mesma e restabelece o rumo do seu legítimo destino democrático. Cumprimento de um dever Ao finalizar a sua entrevista, o Sr. José Américo declarou: - Cumpri um dever. Falei por mim e sinto ter interpretado também o pensamento ainda vedado do povo brasileiro. Fui levado a exprimir-me desta forma por um poder de determinação que nunca me abandonou nos momentos decisivos.

Arinos, da tribuna, pede renúncia de Getúlio (1954)


09/08/1954



O discurso transcrito abaixo foi, sem dúvida, um dos mais duros e veementes já proferidos no Parlamento brasileiro. Nele, o líder da oposição, o deputado Afonso Arinos (UDN-MG) fala a Getúlio Vargas, “como presidente e como homem”, para pedir-lhe que renuncie à Presidência da República. Era o dia 9 de agosto de 1954. Quatro dias antes, o jornalista Carlos Lacerda, inimigo de Vargas, fora ferido em um atentado na rua Toneleros, em Copacabana, no Rio de Janeiro, no qual morreu o major da Aeronáutica Rubem Vaz. As investigações, conduzidas por oficiais da FAB, logo revelaram que por detrás do crime estavam elementos da guarda pessoal do presidente. O país ficou estarrecido. É nesse clima que Arinos sobe à tribuna da Câmara e, de improviso, profere o discurso demolidor. As semanas seguintes seriam dramáticas. Pressionado pelas Forças Armadas a renunciar, Getúlio matou-se com um tiro no peito na manhã de 24 de agosto. “Senhor Presidente, Os jornais desta manhã publicam copioso noticiário sobre a visita do Senhor Presidente da República ao meu Estado, sobre o discurso ali pronunciado por Sua Excelência e sobre as declarações por ele apresentadas durante a entrevista coletiva que concedeu à imprensa mineira. Na primeira parte do seu discurso o que existe de fundamental é o auto-elogio a pretexto das obras realizadas pelo seu Governo em beneficio da terra e do povo de Minas Gerais. Servindo-se da técnica habitual da autopropaganda, servindo-se do estilo peculiar aos ditadores e aos espíritos de formação ditatorial, aos personalistas e aos crentes de que os benefícios do Governo são devidos à pessoa do seu chefe, enumera Sua Excelência uma série de medidas administrativas promovidas em seguimento a determinações da Constituição e das leis; enumera o cumprimento da execução dos orçamentos da República; enumera as vantagens conferidas pela assistência do Estado às unidades federativas, nos termos da organização federal e nos termos das leis que regem a espécie. E não se esquece, também de enumerar, com minucioso cuidado, até mesmo as providências tomadas no cumprimento dos dispositivos constitucionais adotados pela Assembléia de 1946, em relação à valorização do Vale do São Francisco. Mas não é, Sr. Presidente, preocupado em colocar nos seus devidos termos esse rosário de auto-elogios com que o Senhor Presidente da República, na ausência do DIP, transformou-se no DIP de si mesmo; não é com o empenho de restabelecer a verdade, nem de abrir polêmica com Sua Excelência na minha qualidade de mineiro; não é mesmo preocupado com a idéia de opor a estas fugazes, a estas mendazes declarações aquelas realidades por todos nós conhecidas, aqueles episódios de humilhação e de vergonha, aqueles anos de opróbrio e de esmagamento que fizeram da outrora gloriosa Província de Minas Gerais o reduto de todas as ambições e o pasto de todos os excessos da política getuliana que vou prosseguir. Meu propósito é outro. Prefiro analisar o discurso de Sua Excelência naquilo em que mais diretamente se relaciona ele com os assuntos da hora, com os problemas do dia, com as paixões que atraem a atenção do povo brasileiro. Desejo respirar na fala otimista do Presidente àqueles trechos finais em que o Senhor Getúlio Vargas entra no debate do problema político. Ali diz Sua Excelência com todas as letras de cada palavra e com todas as palavras de cada frase, com álgida tranqüilidade e com absoluto desprendimento, que existe da parte do povo brasileiro - que ele confunde com a oposição, um propósito de gerar confusão pela mentira, acrescentando que a objurgatória, a mentira e a calúnia não conseguirão abater o seu ânimo. Duas vezes é repetida a palavra mentira; duas vezes arremete o Presidente contra a justiça dos seus acusadores, tratando-os de invencionistas e de caluniadores. Senhor Presidente, há uma versão histórica; há, pelo menos, uma tradição legendária que declara que, no momento em que a maior justiça se encontrou com a maior injustiça e no dia em que o erro supremo se defrontou com a suprema verdade, nesse dia o juiz, o interessado na justiça, o representante de poder estatal, que era Pôncio Pilatos, em face da perturbadora fúria, em face do transviamento das multidões arrebatadas, esquecendo-se dos deveres morais que incumbiam a sua pessoa e dos misteres políticos que incumbiam a seu cargo, respondeu, a uma advertência, com estas palavras melancólicas: "Mas, o que é a verdade?" A resposta a esta pergunta tem sido inutilmente procurada pelos pensadores e pelos filósofos. O que é a verdade? Para cada um ela se apresenta para cada além, para cada esperança, para cada paixão, para cada interesse. Para cada além, para cada esperança a verdade se reveste de roupagens enganosas. Ninguém jamais formulou esta pergunta em relação à negação da verdade, ninguém perguntou jamais: "O que é a mentira?" Ao Sr. Getúlio Vargas respondo que, se não é possível saber o que é a verdade, é perfeitamente possível saber-se o que não é a mentira. Ele nos acusa de estarmos proferindo mentiras contra seu Governo. Ele investe contra nós, declarando que da voz do povo sai um clamor de mentiras. E eu pergunto: será mentira a viuvez, o crime, a morte e a orfandade? Serão mentiras os corpos dos assassinados e dos feridos? Será mentira o sangue que rolou na sarjeta da Rua Toneleros? Será mentira a presença dos órfãos abandonados pelo pai que os devia assistir? Será mentira a viuvez lutuosa que outro dia assistimos, confrangida e ajoelhada na prece do perdão, na ausência do companheiro de sua vida? Será mentira que aquele velho político não saiba que um jovem herói tombou, siderado pela arma dos assassinos? Será mentira esta declaração de um condor das nossas Forças Armadas, um dos jovens condores, feito para morrer lutando no céu, que uma dessas aves poderosas, cujas asas metálicas se frisam ao sol do Brasil, não morreu "peleando", como diz essa figura oracular da nova República, o Tenente Gregório Fortunato? Será mentira dizer-se que esse jovem condor, feito para morrer nos embates e descer, como um rastro de fogo, pelo céu incendiado, não morreu "peleando", morreu golfando sangue generoso de mistura com a lama das ruas; não morreu peleando, porém, assassinado; porém que baleado, porém que fuzilado pelo sicário infame do Governo, numa tocaia sinistra? Será mentira - e clamo diante do Congresso, e lembro diante dos representantes da Nação, grito para as ruas, e recordo para o povo - será mentira que falte um homem em nossas Forças Armadas? Será mentira que sobre uma viúva entre as viúvas do Brasil e que sobrem órfãos entre as crianças brasileiras? Será mentira a pedra que rola pelo despenhadeiro do descrédito? Será mentira o desprestígio das autoridades, que vão de cambulhada, com o fracasso da administração? Será mentira que os rios do descrédito e do opróbrio, será mentira que os rios e ribeiros que descem as colinas de nossa vida pública se encontrem, convergem e vão de roldão para a desagregação e para a desmoralização deste governo falido? Será mentira que o País tenha assistido, de algum tempo a esta parte aos mais graves abalos na sua vida e em sua honra? Será mentira o inquérito da Última Hora? Será mentira o inquérito da Carteira de Exportação? Será mentira o espetáculo vergonhoso da submissão de nossa política internacional aos ditames e caprichos de um ditador platino? Serão acaso mentiras tantas pequenas misérias e pequenas infâmias? Serão mentirosas, ao lado da corrupção nacional, as pequenas corrupções estaduais, e as pequenas corrupções municipais dos caminhões das feiras-livres e das impressões de cédulas para os apaniguados do poder? Será mentira tudo isso? Estaremos nós vivendo num meio de realidades ou de sonhos? Ou será ele o grande mentiroso, ou será ele o grande enganado ou será ele o pai supremo de fantasmagoria e da falsidade? Nós não mentimos, Sr. Presidente. O que nós fazemos é conter a verdade, é reprimi-la dentro dos limites do nosso bom senso e do nosso patriotismo. É não permitir, é aconselhar, é insistir para que essa verdade não exploda na desordem e não rebente em torrentes de sangue. A evolução de nossa vida, a sucessão dos acontecimentos que têm golpeado a sensibilidade nacional atingiu, de fato, a limite insuperável; chegou, efetivamente, às fronteiras e aos lindes do inimaginável com o crime que nos últimos dias vem abalando a Nação. Não me perderei em referências conhecidas, não insistirei no protesto, na condenação e na revolta contra as conhecidas vergonhas. Procurarei apenas, com base em circunstâncias de fatos irrecusáveis, colocar perante a Nação, através de seus representantes, os mais recentes aspectos desta vergonhosa situação. Ontem à noite, recebi a visita dos Senhores Adauto Lúcio Cardoso e Pompeu de Sousa - o primeiro, advogado do jornalista Carios Lacerda, uma das vítimas do covarde atentado; e o outro, representante dos diretores dos jornais acreditados, nos termos da combinação realizada, entre as autoridade militares e as autoridades civis, junto ao desenvolvimento do inquérito. Estes dois ilustres profissionais do Foro e da imprensa vieram solicitar-me que transmitisse à Câmara dos Deputados a parte que, neste momento, já pode ser divulgada, referente às aquisições ontem verificadas no decorrer das investigações. Devo advertir que eu mesmo não estou no conhecimento de todos os detalhes, cumprindo-me ajuntar que alguns dos pormenores de que sou conhecedor não os poderei transmitir, porque a tanto me obrigo por compromisso formal, compromisso a ser entendido como manifestação de cooperação com as autoridades que prosseguem nas investigações, de vez que a revelação de todos os pormenores neste momento poderia trazer empecilhos irreparáveis à elucidação dos fatos. O que posso assegurar à Câmara, com absoluta certeza - o que, aliás já é do conhecimento das altas autoridades das Forças Armadas e da polícia, compreendidos entre elas o Brigadeiro Eduardo Gomes e o Chefe do Departamento Federal de Segurança Pública -, é estar inteiramente provado, de acordo com documentos que oportunamente virão a público, que, antes de as Forças Militares que procedem à investigação terem localizado o nome do último dos criminosos envolvidos neste assunto, já a guarda do Presidente da República, pressentindo que ele seria, afinal preso, lhe dava fuga oficialmente e tomava a iniciativa de protegê-lo com essa fuga. Isso ficou fora de dúvida. Eu aqui tento limitar a minha revelação e as minhas conclusões àquele campo objetivo que não possa ser posto em dúvida e inquinado de paixão, porque, na verdade, se eu estivesse disposto a abandonar-me ao desenvolvimento natural do meu raciocínio, eu poderia, com muitos bons fundamentos, chegar a responsabilizar o próprio Governo pelo que está acontecendo. Na verdade, se eu tivesse a leviandade do Senhor Presidente da República, ao nos acusar infundadamente de mentirosos; se eu quisesse retrucar com essa leviandade incompatível com a magnitude e com a importância do seu cargo, eu teria muito mais razão do que Sua Excelência, que nos chamou de mentirosos, para responder que, dos fatos chegados ao meu conhecimento, se poderia perfeitamente concluir que as investigações não pararam mais no Palácio do Catete, que as investigações transpuseram as portas do mesmo Palácio, que as investigações vão além das salas públicas do Palácio, alcançaram os próprios aposentos da intimidade presidencial. Mas lá não chegarei, lá não quero chegar, porque tal declaração estaria fora das imposições objetivas dos fatos conhecidos. Lá não chegarei porque não desejo, de forma nenhuma, dizer que estamos passando, por paixão, além dos limites permitidos pelo cumprimento do nosso dever. Entretanto, o que há de positivo, o que há de concreto, o que há de seguro, o que há de provado, o que há de irretorquível, é que a guarda do Palácio, como órgão coletivo, a guarda do Palácio, como instituição do Estado, a guarda do Palácio, como aparelho do poder getuliano, sabia do crime, participava do crime, teve conhecimento dele, e tomou todas as providências para dar fuga, para proteger, para inocentar, para tornar impunes os criminosos, para fazer com que eles estivessem fora do alcance do braço vingador da justiça. Esta é a verdade. Na madrugada de domingo, altas figuras das nossas Forças Armadas estiveram no Palácio presidencial onde altas figuras do Governo foram cientificadas do nome de um dos criminosos - Climério de Tal. Este foi um assunto confidencial; esta foi uma transmissão particular de indício que precisava ser esclarecido. No decorrer, entretanto, do dia de domingo, Fuão Valente, subchefe da guarda pessoal do Senhor Getúlio Vargas e homem, por conseqüência, que representava perfeitamente o espírito de equipe dessa luzidia corporação de bandidos, saía do Palácio do Catete e dirigia-se para a Casa de Fuão Soares, como ele bandido, corno ele ladrão, como ele, ou mais do que ele, guitarrista, emissionista de moeda falsa, chantagista e assassino. E na casa de Fuão Soares prevenia-o de que se alertasse, de que se cuidasse, porque as investigações cercavam o seu nome e o passo da justiça rondava a sua residência. Ficou demonstrada a presença de Fuão Valente em casa de Fuão Soares, antes que o nome de Fuão Soares fosse do conhecimento das autoridades militares incumbidas do assunto. Já na segunda-feira voltou Valente à casa de Soares. Ficou provada a presença de Valente em casa de Soares, instigando-o, dando-lhe detalhes, promovendo, enfim, as últimas providências para a sua fuga, que ocorreu na tarde de segunda-feira entre seis e meia e sete horas da noite. Portanto, Senhor Presidente, ficou demonstrado, ficou caracterizado, ficou indubitavelmente provado que a guarda do Palácio, pela pessoa de um dos seus dirigentes, sabia perfeitamente qual era o outro criminoso, cujo nome não tinha sido ainda trazido à tona do conhecimento das classes armadas. Esta é a declaração c por enquanto, me incumbe fazer à Câmara dos Deputados, a pedido do advogado e do representante dos diretores dos jornais. Evidente, as mais graves ilações, as mais sérias conseqüências, as mais terríveis suspeitas podem ser tiradas desta narrativa dos fatos. Não irei ao ponto de tirá-las desta tribuna. Deixo ao espírito de cada deputado, deixo à consciência de cada brasileiro a incumbência de ficar meditando sobre as terríveis realidades hoje aqui expostas. Deixo, Senhor Presidente, que o assunto prossiga amadurecendo por si mesmo, a fim de que, mais cedo ou mais tarde, essas conclusões se imponham e essas suspeitas se robusteçam, para desgraça nossa e para vergonha do Brasil, sem perder, entretanto, a esperança - e o digo para tranqüilizar a minha própria consciência e para marcar a minha própria posição - sem perder, entretanto, a esperança que veio, infelizmente, desvanecer-se cada dia, de que tais conseqüências não cheguem ao fim que todos nós prevemos e sinceramente lastimo prever. O SR. TRISTÃO DA CUNHA - E para se apurarem essas coisas, que já são do domínio público, foi preciso que a Aeronáutica saísse das suas funções e assumisse a direção do inquérito, pondo de lado a polícia e colocando sob suas ordens até o Presidente da República, que já declarou estar às ordens da Aeronáutica, a qualquer hora da noite, para ser ouvido. Vê Vossa Excelência a subversão completa da ordem pública. Vê Vossa Excelência a subversão completa da autoridade, porque o Governo da República não existe mais. Hoje, são os moços da Aeronáutica que estão dirigindo, para felicidade nossa, o policiamento no Brasil. O SR. AFONSO ARINOS – Senhor Presidente, este é um fato novo. Esta é uma verdade de hoje, que poderá, evidentemente, ser acoimada de mentira pelo Presidente ou pelos seus apaniguados. Chegou mesmo, esta noite, segundo informação que recebi, a ser tachada como falsa a irradiação das notícias, que ontem previam a declaração que aqui formulo. Ainda não tive tempo de ler os vespertinos desta tarde. Estou, entretanto, informado de que nas páginas um deles - O Globo - já existe um desmentido ao desmentido; já existe uma retificação à retificação; já existe, enfim, o cunho da verdade na palavra de um dos oficiais da FAB que estão participando das investigações, desmentido o desmentido que foi feito e reafirmando as verdades que foram desmentidas. Senhor Presidente, nós não caímos tão pouco, nós da oposição nacional e muito menos nós da oposição udenista, e ainda, menos nós da oposição parlamentar udenista, nessa armadilha infantil, nessa manobra ingênua à força de ser idiota, nessa urdidura primária, tosca, que é a de tentar colocar o problema, como a partir de ontem vem-se tentando, nos termos de polêmica entre oposição e Governo, nos termos de um debate entre a tribuna da Câmara e a Secretaria do Palácio do Catete, nos termos de uma controvérsia de ponto e contraponto, nos termos de uma espécie de diálogo musicado entre o orador do legislativo e o orador do Executivo. Nós não nos prestamos a essa manobra. Nós queremos dizer face a face, frente a frente, em alto tom, com a vista diretamente dirigida aos olhos do povo brasileiro, que nós não estamos agindo aqui como oposição, que eu não estou falando aqui como líder de meu partido, que eu estou falando aqui como deputado do meu povo, como representante de minha nação, que eu estou falando pela voz estrangulada dos que temem ou dos que não podem falar, que eu estou tendo o privilégio de dizer aquilo que toda gente pensa, inclusive os companheiros governistas que vêm aqui dizer que não pensam conosco; que eu estou sob qualquer risco, enfrentando qualquer ameaça, olhando de frente qualquer tentativa de intimidação, qualquer apodo, qualquer injúria, qualquer crime, cumprindo o meu dever de brasileiro, dizendo ao povo do Brasil que existe no Governo deste País uma malta de criminosos e que os negócios da nossa República estão sendo conduzidos ou foram conduzidos até agora sob a guarda de egressos das penitenciárias ou pretendentes às cadeias. É o que venho dizer, é o que estou dizendo, é o que nós todos diremos. Isso que dizemos não é palavra de oposição, isso que dizemos é o clamor popular, isso que estamos dizendo não é desafio da ambição, isso que estamos dizendo é o dever da humanidade, é o cumprimento duro, é o cumprimento inflexível da nossa obrigação. Por isto, Senhor Presidente, eu falo a Getúlio Vargas. Eu falo a Getúlio Vargas, como Presidente e como homem. Eu falo a Getúlio Vargas, como Presidente, e lhe digo: Presidente, lembre-se Vossa Excelência das incumbências e das responsabilidades do seu mandato; lembre-se dos interesses nacionais que pesam não sobre a sua ação somente, mas sobre a sua reputação. Eu lhe digo: Presidente, houve um momento em que Vossa Excelência encarnou, de fato, as esperanças do povo; houve um momento em que Vossa Excelência, de fato, se irmanou com as aspirações populares. Premido pelo povo, Vossa Excelência, que linha sido fascista e partidário dos fascistas, foi à guerra democrática. Levado nos ombros do povo, Vossa Excelência, que oprimiu o povo e que esmagou o povo, entrou, pela mão do povo, no Palácio do Catete. Mas eu digo a Vossa Excelência: Preze o Brasil que repousa na sua autoridade; preze a sua autoridade, sob a qual repousa o Brasil. Tenha a coragem de perceber que o seu Governo é, hoje, um estuário de lama e um estuário de sangue; observe que os porões do seu palácio chegaram a ser um vasculhadouro da sociedade; verifique que os desvãos de sua guarda pessoal são como subsolos de uma sociedade em podridão. Alce os olhos para o seu destino e observe as cores da bandeira, e olhe para o céu, a cruz de estrelas, que nos protege, e veja como é possível restaurar-se a autoridade de um governo que se irmana com criminosos, como e possível restabelecer-se a força de um Executivo caindo nos últimos desvãos da desconfiança e da condenação. Senhor Presidente Getúlio Vargas, eu lhe falo como presidente:. reflita na sua responsabilidade de presidente e tome, afinal, aquela deliberação, que é a última que um presidente, na sua situação, pode tomar. E eu falo ao homem. E eu falo ao homem Getúlio Vargas e lhe digo: lembre-se da glória da sua terra e dos ímpetos do seu povo; lembre-se das arremetidas da penada solta e do tropel dos baguais pelas campinas heróicas do Rio Grande; lembre-se do flutuar dos pombos e do relampejar das lanças; lembre-se do entrechoque e da poeira dos combates memoráveis; lembre-se, homem, de que em seu sangue corre, como no meu, o sangue dos heróis e não se acumplicie com os crimes dos covardes e com a infâmia dos traidores! E digo ao homem, que é pai, que tem filhos e irmãos: lembre-se das famílias; lembre-se, se tem realmente o coração cordato e a alma cristã a que ontem se referiu, de estar sendo olhado e surpreendido pelo povo como um Sileno gordo, pálido e risonho; indiferente ao sangue derramado; lembre-se, homem, de que é preciso levantar o coração dos homens; lembre-se, homem, de que é preciso dar esperança aos homens e mulheres deste País. E eu lhe digo, homem: ponha bem alto o seu coração. E eu lhe solicito, homem, em nome do que há de mais puro e mais alto no coração do meu povo; lembre-se, homem, pela luz do céu; lembre-se, homem, pelas folhas e pelas flores que começam a brotar neste princípio de primavera; lembre-se, homem, pelas igrejas da minha terra, que ontem bateram os sinos contra a sua voz; lembre-se, pelos olhos azuis da Irmã Vicência, que se curva, hoje, com os seus oitentas anos, no Convento de Diamantina, rezando pelo bem do Brasil; lembre-se, homem, pelos pequeninos, pelos humilhados, pelos operários, pelos poetas: lembre-se dos homens e deste País e tenha a coragem de ser um desses homens, não permanecendo no Governo se não for digno de exercê-lo. (Muito bem. Muito bem. Palmas. O orador é vivamente cumprimentado.)

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