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Comunistas tomam poder em Natal e resistem 4 dias (1935)


23/11/1935



Na noite de 23 de novembro de 1935, enquanto o governo do estado do Rio Grande do Norte, assistia a uma solenidade de formatura no teatro Carlos Gomes, soldados, cabos e sargentos do 21º Batalhão de Caçadores, sediado em Natal, ligados à Aliança Nacional Libertadora (ANL) e ao Partido Comunista assumiram o controle do quartel, distribuíram armas ao povo, tomaram os pontos estratégicos da cidade e formaram o primeiro governo de inspiração comunista do Brasil. A revolta acabou precipitando a eclosão de rebeliões da ANL em unidades militares do Recife e do Rio Janeiro, logo dominadas pelas tropas fiéis a Getúlio Vargas. Em Natal, o governo revolucionário sobreviveu quatro dias, durante os quais diminuiu o preço do bonde e do pão e distribuiu comida e dinheiro à população. Leia as íntegras do primeiro manifesto dos rebeldes e do primeiro comunicado do governo revolucionário de Natal. Manifesto “Ao povo O Rio Grande do Norte, desafrontado nos dias amargos em que viveu tiranizado por um governo forjado na prostituição dos princípio republicanos de outrora, hasteia-se soberbo, como flâmula redentora no setentrião brasileiro, abrindo caminho largo no solo abençoado da Pátria à entrada triunfal do Cavaleiro da Esperança - LUÍS CARLOS PRESTES. Ao seu lado, erguem-se até agora, como mais duas esplêndidas vitórias já conquistadas com sangue, como dois gigantes invencíveis, Pernambuco e Paraíba. PÃO, TERRA e LIBERDADE é o nosso lema. É a vitória do Socialismo sobre a decantada Liberal-Democracia dos políticos profissionais; é a vitória da Aliança Nacional Libertadora; é a vitória de Carlos Prestes; é a vitória do direito do mais fraco, que nunca teve direito! Direito ao que é seu, usurpado pelo mais forte; direito ao PÃO com suficiência; direito às TERRAS; direito à LIBERDADE. E com este postulado, com estas três palavras escritas com fogo na grandeza do nosso idealismo - PÃO, TERRA e LIBERDADE, com essa bravura comprovada no antemanhã esplendente de hoje, marcharemos confiantes para o abraço fraternal dos irmãos do Sul. Nas nossas pegadas, seguindo o nosso passo e o nosso exemplo virão a legendária Amazônia, o valente Grão-Pará, o Maranhão da inteligência, o Piauí heróico, o Ceará escaldante de sol e idealismo. Soldados, cabos e sargentos do 21 BC, que fostes valentes como as vossas próprias armas no início edificante da derrubada de um governo que apodreceu de todo, o Rio Grande do Norte tudo espera de vossa bravura. Mulheres operárias, trabalhadores, gente simples e boa que experimentastes ontem e hoje a vossa resistência nas barricadas, continuai como indômitas sentinelas na defesa santa das reivindicações nacionais. Povo! Conquistastes com sangue um direito; Rio Grande do Norte, sois o marco iniciante, a fé, o orgulho de uma geração redimida. A Aliança Nacional Libertadora assegura garantias plenas a todos os cidadãos, sem distinção de credo político ou religioso, recebendo de braços abertos a todo aquele que deseje de boa fé cooperar na grande obra reconstrutiva que se alicerça. Natal, 24 de novembro de 1935 Comunicado “O Comitê Revolucionário, aclamado democraticamente em praça pública pelo povo de Natal, a capital do Rio Grande do Norte, às dez horas do dia 25 de novembro, e medindo a sua responsabilidade e a necessidade de defender e salvaguardar os interesses do povo e do Estado, DECRETA: 1) Em virtude de não ter sido encontrado em parte alguma deste estado o governador Rafael Fernandes Gurjão, fica o mesmo destituído de seu cargo, que não pode mais exercer. 2) Por não consultar mais aos interesses do povo e do Estado, fica dissolvida por este ato a Assembléia Constituinte do Estado do Rio Grande do Norte, ficando assim os senhores deputados destituídos de seus mandatos, sem remuneração de espécie alguma. Natal, 25 de novembro de 1935

Pior é morrer de fome em Canaã, de José Américo de Almeida


31/07/1937



Escritor e intelectual paraibano, José Américo de Almeida foi um dos principais chefes civis da Revolução de 30, sendo nomeado ministro da poderosa pasta da Viação e Obras Públicas. Em 1937, é indicado candidato a presidente da República, com o apoio do Nordeste, de Minas e de boa parte do Rio Grande do Sul, concorrendo contra Armando de Sales Oliveira, lançado por São Paulo. O então presidente, Getúlio Vargas, embora vetasse o nome do líder paulista, jamais apoiou efetivamente José Américo, que, aos poucos, foi radicalizando sua campanha, com um discurso cada vez mais populista, o que lhe valeu uma penetração crescente entre os eleitores mais humildes. É nessa época que ele cunha a frase que ficou célebre: “Pior do que morrer de sede no deserto, é morrer de fome em Canaã”. Assustadas, as elites começam a retirar o apoio a José Américo, que, em 31 de julho de 1937, pronuncia na Esplanada do Castelo, no Rio de Janeiro, então capital da República, seu discurso mais famoso. Ainda tenta se equilibrar na corda bamba. “O nosso homem de governo, mesmo com o coração batendo do lado esquerdo, será sempre um homem de centro”, diz no comício. Mas já era tarde. Vargas e a cúpula das Forças Armadas haviam passado à conspiração e, pouco antes da data marcada para as eleições, dão um golpe de Estado, suspendem o pleito e impõem a ditadura do Estado Novo. Abaixo, trechos do discurso na Esplanada do Castelo. Nunca na minha vida corri atrás da popularidade, como meio de subir, sabendo que não subiria sem a vontade do povo, porque essa escalada seria um passo em falso. Jamais cortejei as multidões, dizendo-lhes o que não sentia, prometendo-lhes o que não podia, dando-lhes o que não devia dar. E não me passaria pela mente vencer sem a consagração plebiscitária dos movimentos de opinião. Já conquistei a convenção solene dos partidos. Só me faltava esta, ao ar livre, sem luxo, sem fogos de artifício, sem artifício nenhum. O povo que não vai às festas e vem aqui de roupa de trabalho não quer outro cenário. Fica satisfeito, debaixo do céu, revendo os quadros eternos e sempre novos da terra miraculosa e a cidade inquieta que sobe e desce, nos seus contrastes humanos. Tudo natural, tudo de graça, tudo dado por Deus para os que não podem ter fantasmagorias suntuosas. Outro dia fugiu-nos o sol que teria sido a única pompa de nossa parada vespertina. E caiu a chuva que sempre foi minha esperança de domador das secas. O que mais desejei, o que mais pedi, o que mais criei foi a água milagrosa para a salvação da terra esquecida do céu. Ela será sempre bem-vinda, ainda que venha contra mim. E, naquela tarde de mau tempo, matou a sede dos jardins e das hortas e a sede mais sensível dos bairros ressequidos que a esperam de torneiras escassas como esguichos de felicidade. Uma porção de gente ainda foi, debaixo do aguaceiro, ensopada e delirante, ouvir-me a palavra que faltara. E a umidade da noite áspera aqueceu-se, naquele instante, de um calor de almas sinceras, que me entrou de casa adentro. O sol que falhou não é a luz vulgar de cada dia, que, ainda agora, esplende na magia crepuscular. É o que nos espera, na hora própria, como um símbolo fulgurante. Desgraçados dos que se servem das próprias leis da natureza para picuinhas facciosas. Sempre harmônicas, elas se vingam dessas profanações com uma harmonia mais perfeita, como a promessa de um sol novo. No meio do povo, sinto-me, agora, à vontade, sem forçar a natureza, sem fingimentos dramáticos. Ninguém dirá que me inclino de cima para baixo, com o gesto constrangido de quem quer subir, descendo, para subir ainda mais. Foi esse o meu nível, ombro a ombro, entre gente pobre, com o homem da rua, na onda humana em que vivemos muitas vidas, esquecendo a nossa, para podermos sentir a humanidade. Como Ministro de Estado, minha mais elevada função de governo, não deixei esse convívio. Sentei-me nos bancos duros de bondes plebeus; andei a pé, aos encontrões, de mistura com todas as camadas; entrei nos jardins abertos rodeados de guris que não tinham em casa onde brincar; assisti à luta dos trabalhadores e chorei as lágrimas dos mártires, no martírio da seca. Não sou um estranho no seio das massas. Nunca as olhei de cima, cheio de importância. Os amigos chamavam-me a atenção para que eu não me expusesse a essa vulgaridade. E eu respondia que era para não perder o hábito, para não estranhar, quando deixasse as posições. Queixam-se os adversários de que trato muito de minha pessoa. Não tenho medo de falar de mim, nem que falem de mim. Faço o balanço da vida e é dela que farei o balanço da ação pública. Falo porque posso. Censuravam-me por causa do que convencionavam chamar o decoro do cargo. Para mim, o decoro do cargo era coisa muito diferente. Eu queria colher os mistérios nos abismos d'alma coletiva. E ficava sabedor de tudo. Descobria um mundo que sofria e amava o sofrimento. Começa que só se conhece a vida conhecendo todas as vidas. Descobri o Brasil de baixo para cima. Não tenho medo de subir, nem medo de descer. De cima, saberei o que se passa embaixo; de baixo, aprenderei a viver em cima. Fome de idéias novas Os antagonistas mais sôfregos cobram-me, a cada passo, as idéias de governo, com fome de idéias novas. De cada comício meu esperam esse nutrido cabedal, como se eu fosse capaz de fazer de um simples discurso uma maciça plataforma. A plataforma ideal não sairia feita dos livros alheios, e sim do espírito que formei. Seria a tessitura de um pensamento político: cada palavra, uma convicção; cada princípio, uma profissão de fé; cada promessa, um ponto de honra. Comporia a essência do estudo que se diluiu na meditação e se impregnou dos tons mais reais da vida. Não exprimiria o detalhe inútil; delinearia um sistema cheio, como diria Baldwin, da faculty of seeing and tracing consequence. Procurando saber o que vai acontecer para saber o que se deve fazer. Se eu dissesse que praticaria isso ou aquilo, dessa ou daquela forma, não passaria de um leviano. O governo é ação conjunta. As idéias gerais e a especialização; o plano e a execução; a arquitetura e a mão-de-obra. Formarei a estrutura que, para manter contato com tudo que for humano e objetivo, para se arejar de realidades novas, ficará mais projetada no futuro, do que escrita no papel. Não se dirige um veículo com idéias preconcebidas, quanto mais um povo. Uma plataforma não pode ser uma enumeração; é um golpe de vista. Não serão palavreados vãos, fórmulas aleatórias, gosmados nevoentos, sem substância de alma, sem a força da sinceridade que nos corre nas veias. Não acenderá uma vela a Deus e outra ao diabo. Sei que não basta dispor de boa vontade; difícil é saber o que é bem servir, com o discernimento, a vocação, o tato do interesse geral. As plataformas são vulgares ou precárias. Não há brasileiro que não sinta o de que é que o Brasil precisa. Não compreende, mas sente. Os problemas gerais entram pelos olhos. Por exemplo: valorizar o homem e a terra, dando ao homem vigor, preparo e recursos para tornar a terra mais atraente e produtiva; tirar do Brasil tudo o que ele pode dar para a sua independência econômica - ferro, petróleo, carvão-de-pedra, energia elétrica, trigo, mesmo fazendo sacrifício para mostrar que não dá, por ser menos penosa uma desilusão do que a pecha vergonhosa de não saber utilizar suas próprias riquezas; abrir estradas, um lugar-comum sempre novo, como abrir escolas; fragmentar a propriedade, proteger o trabalho, especializar a mão-de-obra, incentivar a policultura, para elevar o nível de vida do homem brasileiro; desenvolver a técnica da propaganda, dentro e fora do País, para que se consuma e venda mais; montar as indústrias da guerra e, principalmente, a construção naval e aérea, para nos defendermos, como é natural, de dentro para fora; armar o Brasil para que as classes armadas possam ter, materialmente, esse nome etc. Não faltará a política dos planos, contanto que se cristalizem as soluções adequadas. O que importa, muito mais do que a proliferação das iniciativas fáceis, são as qualidades morais da ação. É o caráter que constrói: a coragem das resoluções; o entusiasmo fecundo; o método; a tenacidade; a resistência aos interesses contrários e, acima de tudo, espírito público. Por uma recomposição geral, a máquina administrativa funcionará, no seu conjunto, peça por peça, com um só ritmo, sem emperros, sem desconexão e, sobretudo, sem as descontinuidades que a esterilizam. E não se dará o mal das soluções parciais, sem supervisão, cuidando de parte, antes de conhecer o todo. Se patriotas retardados continuam a aprazar-me para a enunciação do meu programa, direi, desde logo, que tenho um. É o maior e o menor de todos: "Prometo manter e cumprir com lealdade a Constituição Federal, promovendo o bem geral do Brasil, observar as leis, sustentar-lhe a união, a integridade e a independência". Não passa do compromisso constitucional. Não só prometo, como juro. Na verdade, se a Constituição não for letra morta, o Governo também não o será. E o Brasil se salvará do pessimismo inato que o julga um país perdido. Eu nunca cometi essa heresia. Perdidos são os brasileiros que procuram perdê-lo. Antes de me empossar, antes de eleito, presto, perante o povo, que é um juiz terrível, o juramento sagrado de promover o bem geral, não de boca, como uma formalidade vã, mas de alma e coração. A Constituição de 16 de julho prescreve, sem embargo de sua falta de unidade, os fundamentos de uma nova construção da democracia brasileira: um nacionalismo que não repudia, nem se despoja; a fiscalização financeira apta a moralizar as despesas, que é moralizar tudo mais; um regime de responsabilidade, de alto a baixo, como instrumento de reabilitação da vida pública; os direitos políticos e os direitos e garantias individuais, sem a hipocrisia liberal das ditaduras de fato. Começarei por dar o exemplo da independência dos poderes; nem me intrometerei nos outros, nem cederei o meu. E a coordenação dos órgãos da soberania nacional se exercerá com um pensamento mais puro e fecundo da boa administração, das boas leis, da boa justiça. Assim, sem enfraquecer os outros, tornar-me-ei, por minha vez, mais forte. Faremos essa experiência que não será a primeira, nem a última, mas será a minha. Com uma direção efetiva, em vez da atividade fragmentária e desigual, o Governo não se diluirá na irresponsabilidade estéril. Basta fixar o sistema administrativo e os preceitos do seu funcionamento. Será essa a melhor inovação, a réplica liberal às organizações absorventes. Basta formar a alma democrática e racionalizar a democracia; criar o espírito público e racionalizar a administração. Hei de dar o bom exemplo. O melhor exemplo é o que vem do alto, como meio de educar pela imitação, em toda escala, do Presidente da República ao Ministro, do Ministro ao chefe de serviço, do chefe de serviço ao oficial, do oficial ao contínuo. E o Brasil poderá realizar o destino das grandes nações organizadas com as reservas morais e materiais que raras possuem. As franquias do regime não servirão de obstáculo a essa transformação normal; serão ouro sobre azul. Se for preciso, o poder público se constituirá em árbitro do interesse geral, regulando, nesse interesse, a própria liberdade. O Estado deixará de ser apenas uma máquina jurídica para ser também uma máquina econômica. Veremos quais sejam os problemas do dia e correremos aos mais urgentes, com um programa do seu tempo. Precedentes de ação Meus próprios inimigos poderiam escusar-se dessa exposição formalística. Minha plataforma é um passado que exprime um futuro e autoriza a confiança no que farei, por conta própria, pelo que fiz, tendo feito o que pude e não tudo o que quis. Será a reafirmação de um lastro de atividades úteis, da amostra de gosto do trabalho que já dei, de um título que documentos concretos me conferem. Rui Barbosa dizia que seu programa era a sua vida e eu poderei dizer, sem me gabar, que meu programa é a minha obra. Ainda colheis os frutos dessa semeadura. Fui membro de um governo, cujo chefe outorgava aos seus Ministros toda a faculdade de ação. A visão de conjunto era, naturalmente, dele; mas, a par dessa coordenação geral, ressaltava a iniciativa dos auxiliares, com métodos próprios. Com esse sentimento público, nunca desaprovou os mais arrojados cometimentos de um temperamento de reforma. Extraio de um dos meus discursos na Assembléia Nacional Constituinte uma passagem que documenta essa disposição de sacrifício: "Depois de estabelecido o princípio do monopólio das comunicações em geral, deparou-se-me um obstáculo que parecia invencível. Fechadas as primeiras estações radiotelegráficas, restava uma empresa poderosa que atribuíra à revolução triunfante o mais inestimável concurso: a Telefônica Rio-Grandense. O Chefe do Governo ponderou o valor desses serviços, advertindo-me de que sem sua atuação não se teria, talvez, alcançado a vitória no Sul. Era preciso, porém, que seu Estado desse o exemplo de renúncia. A Telefônica resistia. Um dia fui avisado de que sua agência, na Avenida Rio Branco, continuava funcionando. Dei ordens terminantes ao diretor-geral dos Telégrafos para fechá-la, e ele informou que o diretor da companhia respondera não depender sua situação do Ministério da Viação, mas do Catete. Telefonei, então, ao secretário do Governo: 'Hoje, ou se fecha o Ministério da Viação ou a Telefônica Rio-Grandense'. O Sr. Getúlio Vargas mandou chamar-me e me disse que eu estava fazendo uma tempestade num copo de água. Autorizou-me a expedir ordens decisivas para que se encerrasse esse incidente." Poderei, desse modo, indicar, como minhas, as realizações em favor do povo carioca, que exprimem esse cunho inicial. (............) A casa do pobre Sem alardes sentimentais, exercitei esse espírito de proteção, em favor do povo carioca, do que nunca fiz praça, mas faço agora propaganda. A alegria das favelas é uma alegria que faz pena. Até os sambas, tão humanos e espontâneos, parecem, em dias difíceis, passos de almas penadas, fazendo penitência. A gente avista, de longe, a poesia dos morros, uma paisagem irreal, debruçada sobre a paisagem chata da cidade: cachos de casas, escada de casas, casas escorregando uma por cima das outras. E panos velhos nos varais, rasgados pelo vento, têm o ar de bandeirolas festivas. Mas, de dentro, é um primitivismo miserável. Faz de conta que é casa. Asfixia-se, embaixo, a população dos cortiços, ainda mais desgraçada: dezenas de famílias misérrimas, pegando vícios, pegando doenças, pegando tudo; brigas de guris amontoados, e as mães tomando as dores pelos filhos. É verdade. Não há um minuto de paz. Como Ministro da Viação, eu não tinha nada a ver com isso. Mas quantas cogitações me sugeriam esses quadros dolorosos! O que me interessava era apresentar os saldos na exploração dos serviços do Estado. Não prejudicar meu programa de correção de deficits. Havia, entretanto, os deveres da revolução, um pensamento mais alto de solidariedade da raça. Pensei que poderia contribuir com a minha cota de boa vontade para minorar as aperturas dessa superpopulação comprimida. E, desde 1931, promovi a redução das passagens das linhas de subúrbio e de pequeno percurso da Central do Brasil, visando a facilitar o escoamento de uma parte dos moradores pelos bairros mais desafogados. Depois, a diretoria da Estrada reclamava que essa concessão se tornava responsável pela depressão da renda. E eu não cedia: haveria outros meios de compensar o deficit. Demos habitação ao pobre. Não casa de cachorro. Seja pequenina, seja um figurino, mas seja de gente. Não só a construção proletária, como a moradia do funcionário, do comerciário, do bancário, do marítimo, do ferroviário, desses que não têm onde morar ou morrem de fome para pagar o aluguel. E eles se lembrarão que também são deste mundo. Cada casa será, mais do que o ambiente íntimo, o ambiente social de resistência da família feliz ao espírito subversivo do seu próprio chefe. E o dinheiro? É sempre a pergunta mole, desanimada, a pergunta que fica no ar. É fácil. É facílimo. Eu sei onde está o dinheiro. Em vez de um arranha-céu, serão duzentas casas. A redução do preço das passagens foi o primeiro benefício que promovi, em vosso favor, na solução do problema de habitação, que não me competia, mas me parecia, mais do que uma crise, um verdadeiro crime. Agora, poderei enfrentá-lo, porque me competirá. Sombras na grande luz Quando assumi a pasta, a Light tinha outro nome: era o "polvo". Assim se chamava na boca dos pequenos consumidores. Levei um ano a fio, apelando para seus diretores: vamos reconciliar a Light com o povo. Vamos baratear os preços de gás e luz para que se chame mesmo a Light, e não o "polvo". E faziam ouvidos de mercador. Faziam pouco de mim, porque eu tinha maneiras tímidas e não ameaçava. Viam-se casas no escuro. Donas de casas não tiravam o olho do interruptor, acendendo e apagando, apagando e acendendo. E dormia-se cedo por economia. Os lares humildes eram manchas na grande luz. Resolvi ouvir os técnicos, e muitos se escusavam, alegando que os governos passavam e a Light ficava. O meu dever era tornar essas utilidades mais acessíveis. Parecia uma aventura. Mas que é que eu podia perder? Só o lugar que não me faria falta; estava acostumando a viver sem posição. Conseguira a redução do preço do gás, em favor dos pequenos consumidores, em número de 25.007, que passaram a pagar $144, em vez de $200 por metro cúbico. Impusera a hora de economia de luz no verão. E não consegui mais nada, apesar dos rogos. Um dia, sem ninguém esperar, antes mesmo de preparar o expediente oficial, publiquei na imprensa o decreto destinado a remover essa resistência, para que a pressão também se exercesse de fora. E o Sr. Getúlio Vargas não me faltou com a mão forte. Sofri a campanha mais brutal. Não consentindo que a censura de imprensa se exercesse em meu favor, fui arrastado pela rua das amarguras, sem me queixar, antes satisfeito, porque me desobrigara de um compromisso de consciência. (.........) Hoje o consumo aumentou. As casas mais pobres se aclaram, e a Light já não tem razões de queixa contra mim, porque, noutro caso, lhe fiz justiça e farei tantas vezes merecê-la, embora os recibos tragam ainda o carimbo do decreto que é minha constante propaganda eleitoral. O melhor é que o povo carioca já fez a economia de mais de trezentos mil contos que a Light teria recebido a mais pelas tarifas antigas. Quando a cidade se ilumina, com o Cristo Redentor faiscando, no alto, envolto dos raios de luz que lhe presenteei, sinto uma grande claridade na consciência. Uma tragédia crônica No meu tempo, houve raros desastres na Central. Se é fraca a memória dos homens, as estatísticas registram uma justiça irrevogável. Mesmo que não houvesse desastre, o tráfego suburbano era um cenário de tragédia, com um mundo de pingentes dependurados em trens podres. Reproduzia-se esse quadro emocional, sem se contar mais o tempo. Eram hecatombes triviais, com os montões de corpos espatifados e muitas risadas nos teatros populares, onde a Central não chegava atrasada. Eu não podia fechar os olhos a essa desolação. Minha sentimentalidade não me dá vontade de chorar, mas procura remédio para os males alheios. Não resisti aos apelos de ordem técnica, econômica e, sobretudo, humanitária que esse problema formulava. E a tragédia passou também a ser minha. Ninguém acreditava que, num tempo encalacrado, de falta de confiança, de retração de crédito, se pudesse realizar uma obra que já se frustrara em tantas tentativas promissoras. Metiam a bulha nessa minha pretensão julgada destituída de qualquer senso prático. Primeiro, foi a crise dos estudos. O maior técnico em eletrificação abandonou a estrada para não incorrer na responsabilidade de um empreendimento precário. Chocaram-se rivalidades, com incidentes incômodos, embora houvesse, no começo, uma mocidade comunicativa a acender o entusiasmo da iniciativa. Não desanimei. Realizou-se, em tempo, a concorrência. E qual não foi a surpresa dos mais cépticos com o interesse manifestado por empresas das mais idôneas, de conceito mundial? Seguiu-se outra fase que me pôs à prova toda a força de vontade. E, por minha conta, aprovei a proposta considerada mais vantajosa pela comissão julgadora que compus, para ficar a coberto de qualquer maledicência, de representantes das principais instituições de engenharia e escolas superiores do País. Consumiu-se mais um ano sem andamento do processo, numa espera angustiosa, com o meu nome empenhado pelo ato da aprovação, em despacho fundamentado, da proposta preferida. Até que, uma vez, falei ao Ministro da Fazenda, que já se achava de malas preparadas para a Embaixada de Washington: você vai desfrutar o conforto de uma civilização modelar; quando chegar por lá a notícia dos desastres da Central, sentirá doer-lhe a consciência. Desde esse momento, abriu-se-lhe o grande coração, passando a regular todas as providências que faltavam, na parte financeira, para a lavratura do contrato vencendo mesmo, com a têmpera mais decidida, algumas relutâncias do Banco do Brasil. O Chefe do Governo deu-me o seu decisivo apoio. Não fraquejei. Deixei o contrato da eletrificação em ordem, e a Metropolitan Wickers executou-o, mediante a fiscalização do Ministério da Viação, que teve de atender também às obras complementares. Os trens elétricos estão correndo. Essa iniciativa ninguém me tira, porque me custou dispêndios de sacrifícios que me marcaram a alma. É um quadro de soluções objetivas: o aparelhamento de estradas em petição de miséria; a eletrificação do parque ferroviário; a solução dos transportes urbanos. Prolongarei as linhas elétricas da Central e farei o possível para que a Leopoldina aperfeiçoe os seus serviços, embora com ônus para o Governo. E o metropolismo não tardará. Assim, o tráfego deixará de ser um jogo de paciência e um devorador de vidas para ser um belo desafogo. Pelo que fiz poderei avaliar o que farei nesse terreno. O horror do pântano Encarei os efeitos desastrosos do sol e da água. Voei, primeiro, para acudir à aflição do Nordeste. Caí e fiz da Santa Casa de Misericórdia da Bahia meu ministério trabalhoso, sem ter deixado, um momento, de cuidar, com alma de irmão, dos infortúnios da seca. Mal refeito, voei, de novo, para ir atravessar o ambiente de fome e peste, com o mesmo interesse humano. Nos sertões, era a seca e aqui, à beira da cidade, era o horror da baixada fluminense, com a população invisível que a infestava. Meu sentido humanitário não podia recusar essa assistência a um povo atolado na podridão. A seca ia e vinha, mas o pântano não havia sol que secasse. Não era terra nem água. Era a lama paludosa, o chão empapado, enterrando viva a gente mais sofredora do Brasil. Dava febre. A terra toda anuviava-se de mosquitamas mortíferas. Pegavam outras doenças, o amarelão mudava a cor da vida. Rescindi o contrato velho de dez anos que não ia nem vinha; promovi a indenização para abrir o caminho; mandei proceder ao estudo de conjunto e encontrei o homem para realizar a obra. Já se opera a transformação. Retraem-se as enchentes espraiadas; descobrem-se latifúndios de valor que viviam debaixo de água; goza-se saúde e a área perdida cobre-se de vida nova. É uma indicação da política de aproveitamento que nos convém, com um resultado tão notável como o da campanha romana. São os problemas da terra, na sua feição mais sábia de correção da natureza, fechando os boqueirões e entupindo os pauis. Aplicarei essa iniciativa, em maior escala, valorizando-a com a colonização permanente, como padrão de outros empreendimentos nos territórios abandonados. Falo-vos na Baixada Fluminense, que será vosso maior celeiro. Quando ela, além do benefício que o seu saneamento representa, completar a paisagem de pomares saborosos e de culturas pródigas, não haverá tanta fome nas favelas cariocas. (....) O candidato pobre Não me seduz a designação vulgar de "candidato pobre". Pobreza não recomenda; recomenda é ter tido facilidades de ser rico e ser mais pobre. O que eu sou, com a mais comovida satisfação, é candidato dos pobres. Confesso que, de fato, não são os governadores contra mim, menos dois que estão com o meu competidor - isso mesmo porque desobriguei um deles, na undécima hora, senão seria um só. São os representantes do poder constituído que vêem na minha candidatura uma solução normal assegurada pela legitimidade democrática das maiorias. Declaro, por igual, que conto ainda com os partidos que apóiam os governadores, exceto dois que deram preferência ao meu antagonista, um dos quais chefiado pelo próprio Governador com ele solidário. Sou, apesar de considerado pelos contrários como candidato oficial, o escolhido de todas as oposições, do Centro, do Norte, do Sul, salvo as de Mato Grosso, Minas, Bahia e Amazonas, sendo de admirar que em alguns Estados foi aceita a minha candidatura por duas e até mais dessas agremiações independentes. E o mais curioso é que me prestigiam as próprias oposições de São Paulo e Rio Grande do Sul, onde meu competidor só dispõe dos elementos oficiais, sendo que no meu Estado a oposição me acompanha, na sua totalidade. Os partidos, situacionistas ou não, compõem-se da mesma variedade do eleitorado de todas as condições, de todas as cores, de ambos os sexos. O que eu sou, conseqüentemente, é candidato do povo brasileiro, dos ricos e dos pobres, sobretudo dos últimos, dos que não esperam ser ricos, mas esperam ser felizes. Candidato da grande maioria dos brasileiros, que vivem na pobreza, que é humildade, e não demagogia. Não porque me faltem bens de fortuna, senão porque nunca deixei de nutrir o sentimento coletivo, como evidenciei, no tempo de ministro, procurando desafogar as condições de vida das classes desamparadas, barateando os preços de gás e luz, reduzindo as taxas postais e telegráficas, as tarifas ferroviárias, os fretes marítimos, todos os serviços industriais a meu cargo. E tendo um gabinete de portas abertas; indo socorrer em pessoa os sem-trabalho da seca, com risco de vida; amparando o direito dos mais fracos e nunca deixando de fazer o bem para fazer o mal. Eis por que - não me canso de repetir - sou candidato do povo, inclusive dos que votarão em mim levantando as mãos aos céus por não saberem ler nem escrever. Não embairei sua boa-fé. Pior do que explorar o dinheiro dos ricos é explorar a boa fé dos pobres. Se pensam que é com dinheiro que se ganha, estão enganados. Ganha-se é com o povo. Nas eleições, o povo que nada tem é que dá tudo. Os problemas humanos Consciências inquietas profetizam, em vozes tremendas, adventos ruidosos. Atiçam a miséria impotente, as explosões da coragem coletiva, com risco dos choques desiguais. Não percamos a esperança. Poderemos, sem maldições, sem desforras sangrentas, na paz do Senhor, atingir o ideal democrático da inteligência, da cultura, das virtudes públicas, do bom governo que é a melhor propaganda contra as subversões. Não serão auroras messiânicas. Basta que o Estado moderno cumpra a sua missão, em vez de exercer, apenas, a tutela da ordem pública. Eduquemos a pobreza, a fim de que ela compreenda o seu papel nessa nova civilização brasileira de valores espirituais, morais e econômicos. O á-bê-cê não adianta. Pratiquemos a democracia do ensino técnico-profissional ao alcance de todos, como o meio mais prático de começarmos a organizar o Brasil que só precisa de organização. E incorporemos os intelectuais que precisam trabalhar como ornamento político e um atributo mais útil da mentalidade oficial. A inteligência será a guardiã da democracia. E não deixemos a ralé passar necessidade. Olhemos as multidões desfeitas como o mais doloroso contraste de nossa pujança natural. Dirão que isso acontece em toda parte, desde que o mundo é mundo; mas, é um crime maior acontecer no Brasil. A melhor forma de abafar os gritos de revolta é encher a boca dos famintos. Ninguém grita de boca cheia. Os pobres comem pouco. O passadio insuficiente tira-lhes o resto da vida. As subpopulações do interior ainda passam, porque Deus encheu o Brasil de pomares nativos, de vitaminas baratas. E os ricos comem mal, envenenando-se com os erros de alimentação de uma cozinha bárbara. Ainda não se vulgarizou, no Brasil, a ciência da nutrição, que preocupa povos mais atrasados, com sua organização experimental. Já que não podemos elevar, de uma hora para outra, esse padrão de vida, pela impossibilidade do ajustamento imediato num país de salários chineses e de economia incipiente, de tão mesquinha capacidade de aquisição, procuremos, pelo menos, reduzir-lhe o custo. Tenho um precedente que me dá esperança de acudir a esse problema. Na seca mais tremenda, com as lavouras desfeitas, sem um caroço de milho ou de feijão, evitei a carestia de vida no campo e nas cidades do Nordeste. Maior fora a penúria em tempos normais. Primeiro abarrotei esses lugares de gêneros alimentícios, com o caráter de campanha, servindo-me de todos os recursos ao meu alcance. Em seguida, para não prejudicar o comércio local, permiti a concorrência, reduzindo os fretes e impondo, em compensação, uma pauta razoável. E não houve alta. Os retirantes tomaram ainda o café condenado à queima com o açúcar da quota de sacrifício, que eu ia conseguindo, a muito custo, para que a calamidade lhes amargasse menos. Essas coisas são fáceis para quem quer vencê-las, de verdade, sem medo de ser vencido. Por que morrem tantos meninos? Pela ordem natural das coisas, o primeiro gesto do homem de governo deveria ser curvar-se sobre os berços da pobreza, para evitar que as crianças cresçam doentes. Podemos aparelhar nosso futuro até com gerações de analfabetos; nunca com gerações de enfermos. São poucas todas as maternidades e todas as creches. O que mais falta, porém, é a escola que ensina a ler e a viver. Por que já rareiam os velhos no povo baixo? Há, talvez, muitos hospitais, mas é pouca a educação sanitária para evitar as doenças. Demos os meios à mulher para que ela construa, além do lar, a sua própria vida, a fim de que, quando deixar de ser o ornamento decorativo da graça, da beleza e das virtudes da raça, não se transforme na parte mais infeliz da sociedade. Aperfeiçoamos o corpo e a alma, pela oficialização da cultura física e proteção dos desportos, pela alegria de viver. Com todo o seu potencial de riqueza, o Brasil não pode continuar com as camadas inferiores sofrendo miséria e doença, desnutridas e achacadas. Prometem nutrir, vestir, curar. Mas o dia de amanhã é nosso pior dia: não chega nunca. A mais instante tarefa de governo é a solução dos problemas humanos. O centro que oscila Não tenham medo, meus amigos: ninguém tirará a fortuna alheia. Meu desejo é que todos os brasileiros fiquem ricos; assim o Governo se tornará menos pesado. O que faz receio é deixar a miséria fermentar. A idéia nova só é perigosa quando é falsa. O nosso homem de governo, mesmo com o coração batendo do lado esquerdo, será sempre o homem do centro. É a posição de equilíbrio que regula as contradições do nosso tempo. Poderá oscilar, sem tocar os extremos que se confundem e se chocam, voltando-se para o clamor das necessidades, sua função mais imperativa. A justiça e a caridade são leis divinas e humanas. São as missões sobrenaturais que aproximam o homem de Deus. A inteligência pode ser sectária, mas o coração é sempre idealista. Vemos com satisfação que já muito se fez. A revolução cumpriu até agora seus compromissos de solidariedade nacional, procurando equilibrar uma sociedade desajustada. Serei o continuador dessa empresa humanitária, aperfeiçoando a política trabalhista, com um ritmo mais brasileiro, para que os interesses se organizem, sem choques dissolventes. Para que, em vez de planar tão alto, seja mais objetiva na concessão do benefício imediato. Para que seja igual e se preserve das injunções intrusas. O Ministério do Trabalho terá de ser, simplesmente, o Ministério do Trabalho, para preencher toda sua finalidade, sem atividades estranhas ao seu campo de ação. A indústria e o comércio ajustar-se-ão a outros setores que se tocam numa perturbadora complexidade. O trabalho é tudo; trabalhador não é somente o proletário. Será o ministério das profissões, da representação das classes, do controle das leis trabalhistas, da justiça do trabalho e da organização da previdência. Será, notadamente, o ministério dos que não têm profissão para que passem a tê-la. Não há braços e há vadios. Uma legião de desocupados que não encontram emprego, porque não temos trabalho organizado, nem quem os encaminhe para a profissão mais adequada. Será o ministério que, antes de conhecer a vida do trabalhador, procure conhecer as condições do trabalho, para só exigir o que se pode dar e suprir o que falta. O contrário seriam dois pobres, em vez de um, pedindo a mesma esmola. Será o ministério da estabilidade de uma civilização sentimental das três raças que se fundiram no sangue e na alma. Será, acima de tudo, o ministério dos pobres, dos inválidos, dos órfãos, dos velhos, de todos os que sofrem e precisam, por uma organização mais assídua, da assistência e da previdência sociais. Procurarei assegurar, além da vida mais fácil, uma justiça igual e mais liberdade individual. Para os pobres quase tudo é proibido. E imporei a ordem. Não com a disciplina dos infernos, coberta de sangue do comunismo sombrio como um rolo compressor e do integralismo estrangeiro que ainda agora tenta implantar-se, com ameaças de punição aos indiferentes e de massacres coletivos, como se a consciência livre, mais bravia do que a força bruta, tivesse medo de caretas. Transfundiu-se-me com a idade, o amor à luta em energia moral que é uma coragem maior. Rio-me dessas ameaças, apontando a mais terrível: a desgraça que seria para um povo de tanta doçura de sentimentos a vitória dessa sede de sangue, pior que a sede de ouro. Para alcançar o ideal de felicidade coletiva basta tornar o Brasil mais produtivo. Criar a prosperidade que não se tira da boca dos pobres, mas do trabalho racional. Falo assim porque tenho sido um criador de riquezas: as barragens feitas; a recuperação da baixada fluminense; milhares de quilômetros de estrada de rodagem; ferrovias melhoradas; portos e aeródromos. Foi esse o meu primeiro impulso; poderei ser um instrumento de maiores realizações. Deixarei vir todo o ouro do mundo sem procurar saber donde vem, mas somente se é honesto ou suspeito. Não tenho dinheiro de contado para as dissipações eleitorais, mas darei muito mais. Posso fazer a promessa de dias melhores, do benefício permanente que, sem ser de ninguém, será de todos. Não prometo negócios da China, panamás, coisas do outro mundo. Minhas soluções são primárias. Quero começar, sem complicar as coisas, de baixo para cima, como se constrói. Fui eu que inscrevi no preâmbulo da Constituição a legenda do bem-estar social e econômico. Tomei esse compromisso sem saber que ele cairia sobre os meus ombros. Só desejo uma felicidade para o meu governo: a de tornar o povo mais feliz. Demos a cada um seu quinhão de felicidade que o Brasil chega para todos.

O Estado Novo - Discurso-manifesto de Getúlio Vargas à Nação. Rio (1937)


10/11/1937




Vargas lê a nova Constituição, 1937No dia 10 de novembro de 1937, às vésperas das eleições para presidente disputadas por José Américo de Almeida e Armando de Salles Oliveira, o presidente Getúlio Vargas, com o apoio dos chefes militares, deu um golpe de estado, suspendeu as eleições, fechou o Congresso e os partidos políticos e impôs ao país uma nova Constituição, apelidada de Polaca, de caráter nitidamente ditatorial, parcialmente inspirada nos modelos nazi-fascistas. No discurso-manifesto, Vargas tenta justificar o novo tipo de Estado que impõe ao país. Ele duraria até 1945. “À NAÇÃO O homem de Estado, quando as circunstâncias impõem uma decisão excepcional, de amplas repercussões e profundos efeitos na vida do País, acima das deliberações ordinárias da atividade governamental, não pode fugir ao dever de tomá-la, assumindo, perante a sua consciência e a consciência dos seus concidadãos, as responsabilidades inerentes à alta função que lhe foi delegada pela confiança Nacional. A investidura na suprema direção dos negócios públicos não envolve, apenas, a obrigação de cuidar e prover as necessidades imediatas e comuns da administração. As exigências do momento histórico e as solicitações do interesse coletivo reclamam, por vezes, imperiosamente, a adoção de medidas que afetam os pressupostos e convenções do regime, os próprios quadros institucionais, os processos e métodos de governo. Por certo, essa situação especialíssima só se caracteriza sob aspectos graves e decisivos nos períodos de profunda perturbação política, econômica e social. A contingência de tal ordem chegamos, infelizmente, como resultante de acontecimentos conhecidos, estranhos à ação governamental, que não os provocou nem dispunha de meios adequados para evitá-los ou remover-lhes as funestas conseqüências. Oriundo de um movimento revolucionário de amplitude nacional e mantido pelo poder constituinte da Nação, o Governo continuou, no período legal, a tarefa encetada de restauração econômica e financeira e, fiel às convenções do regime, procurou criar, pelo alheamento às competições partidárias, uma atmosfera de serenidade e confiança, propícia ao desenvolvimento das instituições democráticas. Enquanto assim procedia, na esfera estritamente política, aperfeiçoava a obra de justiça social a que se votara desde o seu advento, pondo em prática um programa isento de perturbações e capaz de atender às justas reivindicações das classes trabalhadoras, de preferência as concernentes às garantias elementares de estabilidade e segurança econômica, sem as quais não pode o indivíduo tornar-se útil à coletividade e compartilhar dos benefícios da civilização. Contrastando com as diretrizes governamentais, inspiradas sempre no sentido construtivo e propulsor das atividades gerais, os quadros políticos permaneciam adstritos aos simples processos de aliciamento eleitoral. Tanto os velhos partidos como os novos, em que os velhos se transformaram sob novos rótulos, nada exprimiam ideologicamente, mantendo-se à sombra de ambições pessoais ou de predomínios localistas, a serviço de grupos empenhados na partilha dos despojos e nas combinações oportunistas em torno de objetivos subalternos. A verdadeira função dos partidos políticos, que consiste em dar expressão e reduzir a princípios de governo as aspirações e necessidades coletivas, orientando e disciplinando as correntes de opinião, essa, de há muito, não a exercem os nossos agrupamentos partidários tradicionais. O fato é sobremodo sintomático se lembrarmos que da sua atividade depende o bom funcionamento de todo sistema baseado na livre concorrência de opiniões e interesses. Para comprovar a pobreza e desorganização da nossa vida política, nos moldes em que se vem processando, aí está o problema da sucessão presidencial, transformado em irrisória competição de grupos, obrigados a operar pelo suborno e pelas promessas demagógicas, diante do completo desinteresse e total indiferença das forças vivas da Nação. Chefes de governos locais, capitaneando desassossegos e oportunismo, transformaram-se, de um dia para outro, à revelia da vontade popular, em centros de decisão política, cada qual decretando uma candidatura, como se a vida do País, na sua significação coletiva, fosse simples convencionalismo, destinado a legitimar as ambições do caudilhismo provinciano. Nos períodos de crise, como o que atravessamos, a democracia de partidos, em lugar de oferecer segura oportunidade de crescimento e de progresso, dentro das garantias essenciais à vida e à condição humana, subverte a hierarquia, ameaça a unidade pátria e põe em perigo a existência da Nação, extremando as competições e acendendo o facho da discórdia civil. Acresce, ainda, notar que, alarmados pela atoarda dos agitadores profissionais e diante da complexidade da luta política, os homens que não vivem dela mas do seu trabalho deixam os partidos entregues aos que vivem deles, abstendo-se de participar de vida pública, que só poderia beneficiar-se com a intervenção dos elementos de ordem e de ação construtora. O sufrágio universal passa, sim, a ser instrumento dos mais audazes e máscara que mal dissimula o conluio dos apetites pessoais e de corrilhos. Resulta daí não ser a economia nacional organizada que influi ou prepondera nas decisões governamentais, mas as forças econômicas de caráter privado, insinuadas no poder e dele se servindo em prejuízo dos legítimos interesses da comunidade. Quando os partidos tinham objetivos de caráter meramente político, com a extensão de franquias constitucionais e reivindicações semelhantes, as suas agitações ainda podiam processar-se à superfície da vida social, sem perturbar as atividades do trabalho e da produção. Hoje, porém, quando a influência e o controle do Estado sobre a economia tendem a crescer, a competição política tem por objetivo o domínio das forças econômicas, e a perspectiva da luta civil, que espia, a todo momento, os regimes dependentes das flutuações partidárias, é substituída pela perspectiva incomparavelmente mais sombria da luta de classes. Em tais circunstâncias, a capacidade de resistência do regime desaparece e a disputa pacífica das urnas é transportada para o campo da turbulência agressiva e dos choques armados. É dessa situação perigosa que nos vamos aproximando. A inércia do quadro político tradicional e a degenerescência dos partidos em clãs faciosos são fatores que levam, necessariamente, a armar o problema político, não em termos democráticos, mas em termos de violência e de guerra social. Os preparativos eleitorais foram substituídos, em alguns Estados, pelos preparativos militares, agravando os prejuízos que já vinha sofrendo a Nação, em conseqüência da incerteza e instabilidade criadas pela agitação facciosa. O caudilhismo regional, dissimulado sob aparências de organização partidária, armava-se para impor à Nação as suas decisões, constituindo-se, assim, em ameaça ostensiva à unidade nacional. Por outro lado, as novas formações partidárias surgidas em todo o mundo, por sua própria natureza refratárias aos processos democráticos, oferecem perigo imediato para as instituições, exigindo, de maneira urgente e proporcional à virulência dos antagonismos, o reforço do poder central. Isso mesmo já se evidenciou por ocasião do golpe extremista de 1935, quando o Poder Legislativo foi compelido a emendar a Constituição e a instituir o estado de guerra, que, depois de vigorar mais de um ano, teve de ser restabelecido por solicitação das forças armadas, em virtude do recrudescimento do surto comunista, favorecido pelo ambiente turvo dos comícios e da caça ao eleitorado. A consciência das nossas responsabilidades indicava, imperativamente, o dever de restaurar a autoridade nacional, pondo termo a essa condição anômala da nossa existência política, que poderá conduzir-nos à desintegração, como resultado final dos choques de tendências inconciliáveis e do predomínio dos particularismos de ordem local. Colocada entre as ameaças caudilhescas e o perigo das formações partidárias sistematicamente agressivas, a Nação, embora tenha por si o patriotismo da maioria absoluta dos brasileiros e o amparo decisivo e vigilante das forças armadas, não dispõe de meios defensivos eficazes dentro dos quadros legais, vendo-se obrigada a lançar mão, de modo normal, das medidas excepcionais que caracterizam o estado de risco iminente da soberania nacional e da agressão externa. Essa é a verdade, que precisa ser proclamada, acima de temores e subterfúgios. A organização constitucional de 1934, vazada nos moldes clássicos do liberalismo e do sistema representativo, evidenciara falhas lamentáveis, sob esse e outros aspectos. A Constituição estava, evidentemente, antedatada em relação ao espírito do tempo. Destinava-se a uma realidade que deixara de existir. Conformada em princípios cuja validade não resistira ao abalo da crise mundial, expunha as instituições por ela mesma criadas à investida dos seus inimigos, com a agravante de enfraquecer e anemizar o poder público. O aparelhamento governamental instituído não se ajustava às exigências da vida nacional; antes, dificultava-lhe a expansão e inibia-lhe os movimentos. Na distribuição das atribuições legais, não se colocara, como se devera fazer, em primeiro plano, o interesse geral; aluíram-se as responsabilidades entre os diversos poderes, de tal sorte que o rendimento do aparelho do Estado ficou reduzido ao mínimo e a sua eficiência sofreu danos irreparáveis, continuamente expostos à influência dos interesses personalistas e das composições políticas eventuais. Não obstante o esforço feito para evitar os inconvenientes das assembléias exclusivamente políticas, o Poder Legislativo, no regime da Constituição de 1934, mostrou-se, irremediavelmente, inoperante. Transformada a Assembléia Nacional Constituinte em Câmara de Deputados, para elaborar, nos precisos termos do dispositivo constitucional, as leis complementares constantes da mensagem do Chefe do Governo Provisório de 10 de abril de 1934, não se conseguira, até agora, que qualquer delas fosse ultimada, malgrado o funcionamento quase ininterrupto das respectivas sessões. Nas suas pastas e comissões se encontram, aguardando deliberação, numerosas iniciativas de inadiável necessidade nacional, como sejam: o Código do Ar, o Código das Águas, o Código de Minas, o Código Penal, o Código do Processo, os projetos da Justiça do Trabalho, da criação dos Institutos do Mate e do Trigo, etc., etc. Não deixaram, entretanto, de ter andamento e aprovação as medidas destinadas a favorecer interesses particulares, algumas, evidentemente, contrárias aos interesses nacionais e que, por isso mesmo, receberam veto do Poder Executivo. Por seu turno, o Senado Federal permanecia no período de definição das suas atribuições, que constituíam motivo de controvérsia e de contestação entre as duas Casas legislativas. A fase parlamentar da obra governamental se processava antes como um obstáculo do que como uma colaboração digna de ser conservada nos termos em que a estabelecera a Constituição de 1934. Função elementar e, ao mesmo tempo, fundamental, a própria elaboração orçamentária nunca se ultimou nos prazos regimentais, com o cuidado que era de se exigir. Todos os esforços realizados pelo Governo no sentido de estabelecer o equilíbrio orçamentário se tornavam inúteis, desde que os representantes da Nação agravavam sempre o montante das despesas, muitas vezes, em benefício de iniciativas ou de interesses que nada tinham a ver com o interesse público. Constitui ato de estrita justiça consignar que em ambas as casas do Poder Legislativo existiam homens cultos, devotados e patriotas, capazes de prestar esclarecido concurso às mais delicadas funções públicas, tendo, entretanto, os seus esforços invalidados pelos próprios defeitos de estrutura do órgão a que não conseguiam emprestar as suas altas qualidades pessoais. A manutenção desse aparelho inadequado e dispendioso era de todo desaconselhável. Conservá-lo seria, evidentemente, obra de espírito acomodatício e displicente, mais interessado pelas acomodações da clientela política do que pelo sentimento das responsabilidades assumidas. Outros, por certo, prefeririam transferir aos ombros do Legislativo os ônus e dificuldades que o Executivo terá de enfrentar para resolver diversos problemas de grande relevância e de graves repercussões, visto afetarem poderosos interesses organizados, interna e externamente. Compreende-se, desde logo, que me refiro, entre outros, aos da produção cafeeira e regularização da nossa dívida externa. O Governo atual herdou os erros acumulados em cerca de vinte anos de artificialismo econômico, que produziram o efeito catastrófico de reter stocks e valorizar o café, dando em resultado o surto da produção noutros países, apesar dos esforços empreendidos para equilibrar, por meio de quotas, a produção e o consumo mundial da nossa mercadoria básica. Procurando neutralizar a situação calamitosa encontrada em 1930, iniciamos uma política de descongestionamento, salvando da ruína a lavoura cafeeira e encaminhando os negócios de modo que fosse possível restituir, sem abalos, o mercado do café às suas condições normais. Para atingir esse objetivo, cumpria aliviar a mercadoria dos pesados ônus que a encareciam, o que será feito sem perda de tempo, resolvendo-se o problema da concorrência no mercado mundial e marchando decisivamente para a liberdade de comércio do produto. No concernente à dívida externa, o serviço de amortização e juros constitui questão vital para a nossa economia. Enquanto foi possível o sacrifício da exportação de ouro, afim de satisfazer as prestações estabelecidas, o Brasil não se recusou a fazê-lo. É claro, porém, que os pagamentos, no exterior, só podem ser realizados com o saldo da balança comercial. Sob a aparência de moeda, que vela e disfarça a natureza do fenômeno de base nas relações econômicas, o que existe, em última análise, é a permuta de produtos. A transferência de valores destinados a atender a esses compromissos pressupõe, naturalmente, um movimento de mercadorias do País devedor para os seus clientes no exterior, em volume suficiente para cobrir as responsabilidades contraídas. Nas circunstâncias atuais, dados os fatores que tendem a criar restrições à livre circulação das riquezas no mercado mundial, a aplicação de recursos em condições de compensar a diferença entre as nossas disponibilidades e as nossas obrigações só pode ser feita mediante o endividamento crescente do País e a debilitação da sua economia interna. Não é demais repetir que os sistemas de quotas, contingenciamentos e compensações, limitando, dia a dia o movimento e volume das trocas internacionais, têm exigido, mesmo nos países de maior rendimento agrícola e industrial, a revisão das obrigações externas. A situação impõe, no momento, a suspensão do pagamento de juros e amortizações, até que seja possível reajustar os compromissos sem dessangrar e empobrecer o nosso organismo econômico. Não podemos por mais tempo continuar a solver dívidas antigas pelo processo ruinoso de contrair outras mais vultosas, o que nos levaria, dentro de pouco, à dura contingência de adotar solução mais radical. Para fazer face às responsabilidades decorrentes dos nossos compromissos externos, lançamos sobre a produção nacional o pesado tributo que consiste no confisco cambial, expresso na cobrança de uma taxa oficial de 35%, redundando, em última análise, em reduzir de igual percentagem os preços, já tão aviltados, das mercadorias de exportação. É imperioso pôr um termo a esse confisco, restituindo o comércio de câmbio às suas condições normais. As nossas disponibilidades no estrangeiro, absorvidas, na sua totalidade, pelo serviço da dívida e não bastando, ainda assim, às suas exigências, dão em resultado nada nos sobrar para a renovação do aparelhamento econômico, do qual depende todo o progresso nacional. Precisamos equipar as vias férreas do País, de modo a oferecerem transporte econômico aos produtos das diversas regiões, bem como construir novos traçados e abrir rodovias, prosseguindo na execução do nosso plano de comunicações, particularmente no que se refere à penetração do Hinterland e articulação dos centros de consumo interno com os escoadouros de exportação. Por outro lado, essas realizações exigem que se instale a grande siderurgia, aproveitando a abundância de minério, num vasto plano de colaboração do Governo com os capitais estrangeiros que pretendam emprego remunerativo, e fundando, de maneira definitiva, as nossas indústrias de base, em cuja dependência se acha o magno problema da defesa nacional. É necessidade inadiável, também, dotar as forças armadas de aparelhamento eficiente, que as habilite a assegurar a integridade e a independência do País, permitindo-lhe cooperar com as demais nações do Continente na obra de preservação da paz. Para reajustar o organismo político às necessidades econômicas do País e garantir as medidas apontadas, não se oferecia outra alternativa além da que foi tomada, instaurando-se um regime forte, de paz, de justiça e de trabalho. Quando os meios de governo não correspondem mais às condições de existência de um povo, não há outra solução senão mudá-los, estabelecendo outros moldes de ação. A Constituição hoje promulgada criou uma nova estrutura legal, sem alterar o que se considera substancial nos sistemas de opinião: manteve a forma democrática, o processo representativo e a autonomia dos Estados, dentro das linhas tradicionais da federação orgânica. Circunstâncias de diversas naturezas apressaram o desfecho desse movimento, que constitui manifestação de vitalidade das energias nacionais extrapartidárias. O povo o estimulou e acolheu com inequívocas demonstrações de regozijo, impacientado e saturado pelos lances entristecedores da política profissional; o Exército e a Marinha o reclamaram como imperativo da ordem e da segurança nacional. Ainda ontem, culminando nos propósitos demagógicos, um dos candidatos presidenciais mandava ler da tribuna da Câmara dos Deputados documento francamente sedicioso e o fazia distribuir nos quartéis das corporações militares, que, num movimento de saudável reação às incursões facciosas, souberam repelir tão aleivosa exploração, discernindo, com admirável clareza, de que lado estavam, no momento, os legítimos reclamos da consciência brasileira. Tenho suficiente experiência das asperezas do poder para deixar-me seduzir pelas suas exterioridades e satisfações de caráter pessoal. Jamais concordaria, por isso, em permanecer à frente dos negócios públicos se tivesse de ceder quotidianamente às mesquinhas injunções da acomodação política, sem a certeza de poder trabalhar, com real proveito, pelo maior bem da coletividade. Prestigiado pela confiança das forças armadas e correspondendo aos generalizados apelos dos meus concidadãos, só acedi em sacrificar o justo repouso a que tinha direito, ocupando a posição em que me encontro, com o firme propósito de continuar servindo à Nação. As decepções que o regime derrogado trouxe ao País não se limitaram ao campo moral e político. A economia nacional, que pretendera participar das responsabilidades do Governo, foi também frustrada nas suas justas aspirações. Cumpre restabelecer, por meio adequado, a eficácia da sua intervenção e colaboração na vida do Estado. Ao invés de pertencer a uma assembléia política, em que, é óbvio, não se encontram os elementos essenciais às suas atividades, a representação profissional deve constituir um órgão de cooperação na esfera do poder público, em condições de influir na propulsão das forças econômicas e de resolver o problema do equilíbrio entre o capital e o trabalho. Considerando de frente e acima dos formalismo jurídicos a lição dos acontecimentos, chega-se a uma conclusão iniludível, a respeito da gênese política das nossas instituições: elas não corresponderam, desde 1889, aos fins para que se destinavam. Um regime que, dentro dos ciclos prefixados de quatro anos, quando se apresentava o problema sucessório presidencial, sofria tremendos abalos, verdadeiros traumatismos mortais, dada a inexistência de partidos nacionais e de princípios doutrinários que exprimissem as aspirações coletivas, certamente não valia o que representava e operava, apenas, em sentido negativo. Numa atmosfera privada de espírito público, como essa em que temos vivido, onde as instituições se reduziam às aparências e aos formalismos, não era possível realizar reformas radicais sem a preparação prévia dos diversos fatores da vida social. Torna-se impossível estabelecer normas sérias e sistematização eficiente à educação, à defesa e aos próprios empreendimentos de ordem material, se o espírito que rege a política geral não estiver conformado em princípios que se ajustem às realidades nacionais. Se queremos reformar, façamos, desde logo, a reforma política. Todas as outras serão consectárias desta, e sem ela não passarão de inconsistentes documentos de teoria política. Passando do Governo propriamente dito ao processo da sua constituição, verificava-se, ainda, que os meios não correspondiam aos fins. A fase culminante do processo político sempre foi a da escolha de candidato à Presidência da República. Não existia mecanismo constitucional prescrito a esse processo. Como a função de escolher pertencia aos partidos e como estes se achavam reduzidos a uma expressão puramente nominal, encontrávamo-nos em face de uma solução impossível, por falta de instrumento adequado. Daí, as crises periódicas do regime, pondo, quadrienalmente, em perigo a segurança das instituições. Era indispensável preencher a lacuna, incluindo na própria Constituição o processo de escolha dos candidatos à suprema investidura, de maneira a não se reproduzir o espetáculo de um corpo político desorganizado e perplexo, que não sabe, sequer, por onde começar o ato em virtude do qual se define e afirma o fato mesmo da sua existência. A campanha presidencial, de que tivemos, apenas, um tímido ensaio, não podia, assim, encontrar, como efetivamente não encontrou, repercussão no País. Pelo seu silêncio, a sua indiferença, o seu desinteresse, a Nação pronunciou julgamento irrecorrível sobre os artifícios e as manobras a que se habituou a assistir periodicamente, sem qualquer modificação no quadro governamental que se seguia às contendas eleitorais. Todos sentem, de maneira profunda, que o problema de organização do Governo deve processar-se em plano diferente e que a sua solução transcende os mesquinhos quadros partidários, improvisados nas vésperas dos pleitos, com o único fim de servir de bandeira a interesses transitoriamente agrupados para a conquista do poder. A gravidade da situação que acabo de escrever em rápidos traços está na consciência de todos os brasileiros. Era necessário e urgente optar pela continuação desse estado de coisas ou pela continuação do Brasil. Entre a existência nacional e a situação de caos, de irresponsabilidade e desordem em que nos encontrávamos, não podia haver meio termo ou contemporização. Quando as competições políticas ameaçam degenerar em guerra civil, é sinal de que o regime constitucional perdeu o seu valor prático, subsistindo, apenas, como abstração. A tanto havia chegado o País. A complicada máquina de que dispunha para governar-se não funcionava. Não existiam órgãos apropriados através dos quais pudesse exprimir os pronunciamentos da sua inteligência e os decretos da sua vontade. Restauremos a Nação na sua autoridade e liberdade de ação: na sua autoridade, dando-lhe os instrumentos de poder real e efetivo com que possa sobrepor-se às influências desagregadoras, internas ou externas; na sua liberdade, abrindo o plenário do julgamento nacional sobre os meios e os fins do Governo e deixando-a construir livremente a sua história e o seu destino.”

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