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Conselho de D. João VI a D. Pedro - íntegra da carta (1822)


26/08/1822



Se o Brasil for se separar de Portugal, antes seja para ti, que me hás de respeitar, do que para algum desses aventureiros”. O conselho dado pelo rei a seu filho, lembrado pelo próprio D. Pedro em carta ao pai, escrita menos de três meses antes do Grito do Ipiranga, mostra como se misturam no processo da independência dois fenômenos distintos: o arranjo dinástico, do qual o próprio conselho é exemplo eloqüente, e o impulso separatista, evidente na referência feita aos aventureiros. A oscilação entre ruptura e compromisso marcaria não só a Independência como as disputas políticas entre os “partidos” dos portugueses e dos brasileiros durante o Primeiro Reinado. Rio de Janeiro, 19 de junho de 1822. Meu pai e meu Senhor, Tive a honra e o prazer de receber de Vossa Majestade duas cartas, uma pelo Costa Couto e outra pelo Chamberlain, em as quais Vossa Majestade me comunicava o seu estado de saúde física, a qual eu estimo mais que ninguém, e em que me dizia - "Guia-te pelas circunstâncias com prudência e cautela". Esta recomendação é digna de todo o homem, e muito mais de um pai a um filho e de um Rei a um súdito que o ama e respeita sobremaneira. Circunstâncias políticas do Brasil fizeram que eu tomasse as medidas que já participei a Vossa Majestade; outras mais urgentes forçaram-me por amor à Nação, a Vossa Majestade e ao Brasil a tomar as que Vossa Majestade verá dos papéis oficiais que somente a Vossa Majestade remeto. Por eles verá Vossa Majestade o amor que os brasileiros honrados lhes consagram à sua sagrada e inviolável pessoa e ao Brasil, que a Providência Divina lhes deu em sorte livre e que não quer ser escravo de luso-espanhóis, quais os infames déspotas (constitucionais in nomine) dessas facciosas, horrorosas e pestíferas Cortes. O Brasil, Senhor, ama a Vossa Majestade, reconhece-o e sempre o reconheceu como seu Rei; foi sectário das malditas Cortes, por desgraça ou felicidade (problema difícil de decidir-se), hoje, não só abomina e detesta essas, mas não lhes obedece nem obedecerá mais, nem eu consentiria tal, o que não é preciso, porque de todo não querem senão as leis da sua Assembléia Geral Constituinte e Legislativa, criada por sua livre vontade para lhes fazer uma Constituição que os felicite in eternum se possível for. Eu ainda me lembro, e me lembrarei sempre, do que Vossa Majestade me disse antes de partir dois dias, no seu quarto: (Pedro, se o Brasil se separar antes seja para ti que me hás de respeitar do que para algum desses aventureiros). Foi chegado o momento da quase separação, e estribado eu nas eloqüentes e singelas palavras expressadas por Vossa Majestade, tenho marchado adiante do Brasil, que tanto me tem honrado. Pernambuco proclamou-me Príncipe Regente sem restrição alguma no Poder Executivo, aqui consta-me que querem aclamar a Vossa Majestade Imperador do Reino Unido e a mim Rei do Brasil. Eu, Senhor, se isso acontecer, receberei as aclamações, porque me não hei de opor à vontade do povo a ponto de retrogradar, mas sempre, se me deixarem, hei de pedir licença a Vossa Majestade para aceitar, porque eu sou bom filho e fiel súdito. Ainda que isto aconteça, o que espero que não, conte Vossa Majestade que eu serei Rei do Brasil, mas também gozarei a honra de ser de Vossa Majestade súdito, ainda que em particular seja, para mostrar a Vossa Majestade a minha consideração, gratidão e amor filial tributado livremente. Vossa Majestade, que é Rei há tantos anos, conhecerá muito bem as diferentes situações e circunstâncias de cada país, por isso Vossa Majestade igualmente conhecerá que os Estados independentes (digo os que nada carecem como o Brasil) nunca são os que se unem aos necessitados e dependentes; Portugal é hoje em dia um Estado de quarta ordem e necessitado, por conseqüência dependente; o Brasil é de primeira e independente, argüi que a união sempre é procurada pelos necessitados e dependente, ergo a união dos dois hemisférios deve ser (para poder durar) de Portugal com o Brasil e não deste com aquele, que é necessitado e dependente. Uma vez que o Brasil todo está persuadido desta verdade eterna, a separação do Brasil é inevitável, a Portugal não buscar todos os meios de conciliar com ele por todas as formas. Peço a Vossa Majestade que deixe vir o mano Miguel para cá seja como for, porque ele é aqui muito estimado e os brasileiros o querem ao pé de mim para me ajudar a servir ao Brasil, e a seu tempo casar com a minha linda filha Maria. Espero que Vossa Majestade lhe dê licença, não queira lhe cortar a sua fortuna futura, quando Vossa Majestade, como pai, deve por obrigação cristã contribuir com todas as suas forças para a felicidade de seus filhos. Vossa Majestade conhece a razão, há de conceder-lhe a licença que eu e o Brasil tão encarecidamente pedimos pelo que há de mais sagrado. Como filho respeitoso e súdito constitucional, cumpre-me dizer sempre a meu Rei e meu pai aquela verdade, que de mim é inseparável; se abusei peço perdão, mas creio que falar a verdade nunca é abuso, antes, é obrigação e virtude ainda quando ela for proclamada e contra o próprio sujeito ou pessoa de alto coturno. As minhas cartas anteriores a esta, como haviam de aparecer a quem atacado a Deus e a Vossa Majestade, e tendiam a felicitar a Nação toda, haviam mister serem muito fortes; mas Vossa Majestade, conhecedor da verdade e amante dela, saberia desculpar o meu atrevimento de me servir de cartas de Vossa Majestade para atacar atacantes, perdão peço e decerto alcanço. Dou parte a Vossa Majestade que as minhas filhas estão boas (da Maria remeto um retrato tal qual ela) e a Princesa está também boa e já com uma falta de doze dias neste mês e parece-me não ser falsa. Remeto no meio dos papéis um figurino a cavalo da Guarda de Honra, formada voluntariamente pelos paulistas mais distintos da província e em que tem entrado também desta província: os de São Paulo têm na correia da canhanha SP e os do Rio de Janeiro RJ. Tenho a honra de protestar novamente a Vossa Majestade os meus sentimentos de amor, respeito, submissão de filho para um pai carinhoso e de súdito para um Rei justo. Deus guarde a preciosa vida e saúde de Vossa Majestade como todos os bons portugueses, e mormente nós brasileiros o havemos mister. Sou de Vossa Majestade súdito fiel e filho obedientíssimo que lhe beija a sua real mão - Pedro. Segue-se anotação de D. João VI, encaminhando a carta do príncipe 1as Cortes: Il.mo e Ex.- Sr.mo - Sua Majestade, firme na resolução de sustentar o sistema constitucional que felizmente nos rege e que de todo o seu coração jurou manter; e dando continuamente não equivocas provas da sua boa fé, sinceridade e franqueza com que abraçou a nova ordem de coisas, manda remeter a V. Ex.a para serem presentes ao soberano Congresso todas as cartas que ontem recebeu de Sua Alteza Real, o Príncipe D. Pedro, as instruções para a eleição de deputados das províncias do Brasil, e os mais papéis e peças que as acompanham. Manda, outrossim, Sua Majestade declarar ao mesmo soberano Congresso haver equivocação nas expressões sublinhadas da carta de 19 de junho deste ano, em que S. A. Real alude às conversas que tivera com seu augusto pai. Deus guarde a V. Ex.a, Palácio de Queluz, 26 de agosto de 1822 - Il.mo e Ex.mo Sr. João Baptista Filgueiras - José da Silva Carvalho. Na margem)- Em sessão de 26 de agosto de 1822. Foram lidos e se mandou que fossem restituídos os originais, ficando cópia para se imprimir tudo e remeta-se aquela à Comissão dos Negócios Políticos do Brasil.

Caráter geral dos brasileiros - José Bonifácio ( Entre 1823 e 1829)


1823/1829



Os textos curtos que se seguem foram escritos por José Bonifácio no exílio, como anotações pessoais. Provavelmente não visavam à publicação. O título é do próprio autor. Versão conforme o livro “Projetos para o Brasil”, da coleção “Retratos do Brasil”, da Companhia das Letras, editado em 1998 e organizado por Míriam Dolhnikoff. Sob o subtítulo “Avulsos”, estão incluídas outras anotações dispersas de JB sobre os brasileiros. Os brasileiros são entusiastas de um belo ideal, amigos da sua liberdade, e mal sofrem perder as regalias que uma vez adquiriram. Obedientes ao justo, inimigos do arbitrário, suportam melhor o roubo que o vilipêndio; ignorantes por falta de instrução, mas cheios de talento por natureza; de imaginação brilhante, e por isso amigos de novidades que prometem perfeição e enobrecimento; generosos, mas com bazófia; capazes de grandes ações, contanto que não exijam atenção aturada, e não requeiram trabalho assíduo e monotônico; apaixonados do sexo por clima, vida e educação. Empreendem muito, acabam pouco. Sendo os atenienses da América, se não forem comprimidos e tiranizados pelo despotismo. Avulsos Os brasileiros mostram altivez nas baixezas, amor-próprio nas bagatelas, e obstinação em puerilidades. * O brasileiro é ignorante, porém vaidoso; antes da independência não estimavam senão Portugal, hoje se julgam melhores que os portugueses. * Os brasileiros folgam de ser padres, rábulas, escrivães, porque são modos de vida que não carecem de trabalho aturado e de boa conduta - ser lavrador e negociante exigiria deles mais atividade e economia, que detestam. Os ofícios são para os negros e mulatos, ou para os pobres de Portugal. Que chegam de novo e ainda não estão afeitos à preguiça e orgulho bestial - Sr. coronel é o primeiro título, porém pelo menos senhor às vezes a mim me chamavam: Sr. coronel desembargador - congonhar, fumar e cavalhotar são as três felicidades dos paulistas de serra acima. * Falsidade e dissimulação fazem o caráter geral dos brasileiros - curiosos e inquietos, mas não ativos, nem aplicados. * No Brasil a natureza é amiga do homem; mas o homem é ingrato às meiguices da natureza; e todavia o homem vive aqui mais com a natureza do que com os outros homens. * No Brasil, a virtude, quando existe, é heróica, porque tem que lutar com a opinião, e o governo. * A maior corrupção se acha onde a maior pobreza está ao lado da maior riqueza. 17 Manifesto do Frei Caneca - íntegra. Recife, 1824 Pernambuco reage à Constituição outorgada por D. Pedro, recusando-se a jurá-la, como queria o Imperador. O texto abaixo, escrito por Frei Caneca, jornalista, tribuno e agitador político, no primeiro semestre de 1824, justifica essa atitude. Navios zarpam para tomar Recife, mas são obrigados a voltar atrás para defender o Rio, devido a rumores de que uma frota portuguesa estava a caminho do Brasil. Aproveitando-se da indecisão, o chefe do governo pernambucano, Manuel de Carvalho Pais de Andrade, proclama em 2 de julho de 1824, a Confederação do Equador, que pretendia, sob a forma de uma república federativa, reunir as províncias do Nordeste. Em pouco tempo, o Ceará, a Paraíba, o Rio Grande do Norte e o interior do Piauí aderem à sublevação, que seria dominada a ferro e fogo no segundo semestre de 1824. Pais de Andrade fugiu do país, ao qual só voltou em 1831, elegendo-se senador mais tarde. Frei Caneca foi fuzilado em janeiro de 1825. Reunião popular no Recife para deliberar-se sobre o juramento do Projeto de Constituição. Algumas pessoas de patriotismo fogoso, sabendo ou conjeturando com bons fundamentos, que a Câmara Municipal da Cidade do Recife se dispunha a jurar e fazer jurar o Projeto de Constituição, que o Imperador impunha, reuniram-se na Casa da mesma Câmara; e esta ausente, a declaram deposta, e elegeram outra; tudo isto, se ilegalmente feito, o fizeram todavia sem o menor barulho, e em serena tranqüilidade. Dissemos se ilegalmente feita; mas no estado que desorganização social, em que nos achávamos, pela dissolução da Assembléia Constituinte, suposto o diverso modo de confeccionar-se a Constituição Política do Brasil, modo novo e avesso do que tínhamos proclamado e jurado, e conosco o Imperador, novidade e mudança a que não aderíamos; que havia aí de rigorosamente ilegal, naquelas deposição e eleição? Em tão extraordinárias circunstâncias toda a aplicação e cuidado, todo o zelo e afago dos espíritos exaltados e atônitos dirigiam-se a procurar e manter o bem e dignidade nacional, a vigiar e defender a nossa honra, inteligência e direitos, à salvação da pátria, podemos dizê-lo. Havia boa-fé, e a melhor intenção. Nem se pode fugir de reconhecer, que posto a salvação da Pátria seja as mais das vezes um pretexto para o despotismo ou a anarquia, não deixa algumas vezes o emprego dessa suprema lei de ser um verdadeiro e saudável recurso para a boa conservação e liberdade social. Mas a quem se deve imputar, em última análise, tais ilegalidades, se de qualificarmos assim aquelas deposição e eleição não cabe desdizer-nos? A nova câmara por editais, que repetidos fêz afixar, e por inumeráveis cartas, que dirigiu a todas as autoridades, empregados públicos de todas as classes, proprietários e pessoas notáveis do seu distrito, convidou-os a comparecer no dia, que marcou, na casa da mesma câmara, para ai livremente darem o seu voto sobre a execução do decreto, que mandava jurar o projeto de constituição política, que oferecera o imperador; pois que este magno assunto pertencia a todos resolver, e não a ela só, e menos impor com o seu voto e conduta aos cidadãos do seu município. Muitos dos convidados por cartas deixaram de comparecer no dia aprazado, e pelos que compareceram foi o negócio discutido, e afinal venceu-se, que se não devia receber nem jurar o projeto; primeiro por ser iliberal, contrário à liberdade, independência e direitos do Brasil, e apresentado por quem não tem poder para o dar; e segundo por envolver o seu juramento perjúrio ao juramento cívico, em que se prometeu reconhecer e obedecer à assembléia constituinte e legislativa. Frei Joaquim do Amor Divino Caneca leu o seu voto, e este impresso correu pelas mãos de todos; ei-lo aqui: "Senhor presidente, tendo eu recebido a honra de ser convidado por V. Ex.a para, como membro do corpo literário desta cidade, dar o meu voto sobre a matéria do decreto de S.M.I. e C. de 11 de março deste presente ano, pelo qual o dito senhor manda jurar, como constituição do império do Brasil, o projeto feito pelo ministério e conselho de estado, apareci neste lugar, não só para provar a V. Ex.a quanto prezei o seu convite, mas também para fazer ver aos meus honrados compatriotas, que me não poupo a cooperar com eles para o bem e felicidade da Pátria, quanto permitem minha fraqueza e meu estado; e não tenho, nem passar por oráculo em uma assembléia que compreende tantas pessoas acima de mim em princípios luminosos e sentimentos liberais. Portanto, me abalanço a manifestar as minhas curtas e mesquinhas idéias na esperança de que dos sábios merecerei correção, e dos que não se acham nesta linha, desculpa e docilidade; digo pois; que não se deve adotar, nem jurar como constituição do império o projeto oferecido para este fim. A certeza, em que estou, de falar entre cidadãos livres, patriotas e coroáveis da verdade, é o sustentáculo da liberdade e fraqueza, com que avanço esta proposição, que por mais escabrosa que pareça aos ânimos prejudicados, e idólatras fanáticos de antigos prejuízos, se fará aceitável, se me não engano, pelas razões, que desenvolverei; e é a quanto aspiro. Parecia-me, que seria útil, para melhor estabelecer o meu voto, fazer aqui uma ligeira exposição das vicissitudes e mudanças políticas, por que há passado a nossa Pátria, o Brasil, desde que S. M. I. se dignou ficar conosco até agora; mas respeitáveis senhores, lembrando-me que talvez a julgásseis supérflua, por estardes ao fato de tudo, a deixei de mão e passo logo a tratar da matéria. Falarei primeiramente da qualidade do presente projeto, quanto posso alcançar, para ao depois examinar, se se deve ou não adotar. Uma constituição não é outra coisa, que a ata do pacto social, que fazem entre si os homens, quando se ajuntam e associam para viver em reunião ou sociedade. Esta ata, portanto, deve conter a matéria, sobre que se pactuou, apresentando as relações, em que ficam os que governam, e os governados, pois que sem governo não pode existir sociedade. Estas relações, a que se dão os nomes de direitos e deveres, devem ser tais, que defendam e sustentem a vida dos cidadãos, a sua liberdade, a sua propriedade, e dirijam todos os negócios sociais à conservação, bem-estar e vida cômoda dos sócios, segundo as circunstâncias de seu caráter, seus costumes, usos e qualidade do seu território etc. Projeto de constituição é o rascunho desta ata, que ainda se há de tirar a limpo, ou apontamentos das matérias que hão de ser ventiladas no pacto; ou, usando de uma metáfora, é o esboço na pintura, isto é, a primeira delineação, nem perfilada, nem acabada. Portanto, o projeto oferecido por S. M. nada mais é do que o apontamento das matérias, sobre que S. M. vai a contratar conosco. Vejamos, portanto, se a matéria ai lembrada, suas divisões e as relações destas são compatíveis com as nossas circunstâncias de independência, liberdade, integridade do nosso território, melhoramento moral e físico, e segura felicidade. Sendo a nossa primeira e principal questão, em que temos empenhado nossos esforços, brio e honra, a emancipação e independência de Portugal, esta não se acha garantida no projeto com aquela determinação e dignidade necessária; porque primeiro no projeto não se determina positiva e exclusivamente o território do império, como é de razão, e o tem feito sabiamente as constituições mais bem formadas da Europa e América; e com isto se deixa uma fisga, para se aspirar à união com Portugal; o que não só trabalham por conseguir os déspotas da santa aliança e o rei de Portugal, como o manifestam os periódicos mais apreciáveis da mesma Europa e as negociações do ministério português com o do Rio de Janeiro e correspondência daquele rei com o nosso imperador, com o que S. M. tem dado fortes indícios de estar deste acordo, não só pela dissolução arbitrária e despótica da soberana assembléia constituinte, e proibição da outra que nos havia prometido, mas também, além de outras muitas coisas, porque se retirou da capital do Império para não solenizar o dia 3 de maio, aniversário da instalação da assembléia, que por decreto era dia de grande gala; e no dia 13, dia dos anos do rei de Portugal, S. M. deu beija-mão no paço e foi à Ilha das Enxadas, onde se achavam as tropas de Portugal, vindas de Montevidéu, estando arvorada com o maior escândalo a bandeira portuguesa; segundo porquanto ainda que no primeiro artigo se diga, que a Nação brasileira não admite com outra qualquer laço algum de união ou federação, que se oponha a sua independência, contudo esta expressão é para iludir-nos; pois que o executivo, pela sua oitava atribuição (art. 102) pode ceder ou trocar o território do império ou de possessões, a que o império tenha direito, e isto independentemente da assembléia geral; terceiro porque jurando o Imperador a integridade e indivisibilidade do império, não jura a sua independência. Ao depois é este Juramento contraditório com esta oitava atribuição, porque se S. M. jura a indivisibilidade do Império, como pode ceder ou trocar o seu território? Só se isto se deve entender de ceder o território do Império todo por inteiro e passar-nos então a todos, com suas famílias e haveres, ou para os desertos da Tartaria, ou para os da África, ou afinal lá para os Botocudos, entregando as nossas cidades e vilas ao que com ele contratar. O art. 2.º não pode ser mais prejudicial à liberdade política do Brasil; porque permitindo que as províncias atuais sofram novas subdivisões, as reduz a um império da China, como já se lembrou e conheceu igual maquiavelismo no projeto dos Andradas o Deputado Barata; enfraquece as províncias, introduzindo rivalidades, aumentando os interesses dos ambiciosos para melhor poder subjugá-las umas por outras; e esta desunião tanto mais se manifesta pelo art. 83, em que se proíbe aos conselhos provinciais de poderem propor e deliberar sobre projetos de quaisquer ajustes de umas para as outras províncias, o que nada menos é, que estabelecer a desligação das províncias entre si, e fazê-las todas dependentes do governo executivo, e reduzir a mesma nação a diversas bordas de povos desligados e indiferentes entre si, para melhor poder em última análise estabelecer-se o despotismo asiático. O poder moderador de nova invenção maquiavélica é a chave mestra da opressão da nação brasileira e o garrote mais forte da liberdade dos povos. Por ele o imperador pode dissolver a câmara dos deputados, que é a representante do povo, ficando sempre no gozo dos seus direitos o senado, que é a representante dos apaniguados do imperador. Esta monstruosa desigualdade das duas câmaras, além de se opor de frente ao sistema constitucional, que se deve chegar o mais possível à igualdade civil, dá ao imperador, que já tem de sua parte o senado, o poder de mudar a seu bel prazer os deputados, que ele entender, que se opõem a seus interesses pessoais, e fazer escolher outros de sua facção, ficando o povo indefeso nos atentados do imperador contra seus direitos, e realmente, escravos, debaixo porém das formas da lei, que é o cúmulo da desgraça como tudo agora está sucedendo na França, cujo rei em dezembro passado dissolveu a câmara dos deputados, e mandando-se eleger outros, foram ordens do ministério para os departamentos a fim de que os prefeitos fizessem eleger tais e tais pessoas para deputados, declarando-se-lhes logo, que quando o governo empregava a qualquer, era na esperança de que este marchará por onde lhe mostrassem a estrada. Demais, eu não posso conceber como é possível, que a câmara dos deputados possa dar motivos para ser dissolvida, sem jamais poder dá-los a dos senadores. A qualidade de ser a dos deputados temporária, e vitalícia a dos senadores, não só é uma desigualdade, que se refunde toda em aumentar os interesses do imperador, como é o meio de criar no Brasil, que felizmente não a tem, a classe da nobreza opressora dos povos; a qual só se tem atendido naqueles povos, que foram constituídos depois de já terem entre si seus duques, seus condes, seus marqueses etc. E este é o mesmo fim da atribuição undécima do poder executivo, que na minha opinião é o braço esquerdo do despotismo, sendo o direito o ministério organizado da maneira que se vê no projeto. Podem os ministros de estado propor leis, (art. 53) assistir a sua discussão, votar sendo senadores e deputados (art. 54). Qual será a coisa, portanto, que deixarão eles de conseguir na assembléia geral? Podem ser senadores e deputados, (art. 30) exercitando ambos os empregos de senadores e ministros; e o mesmo se diz dos conselheiros, (art. 32) ao mesmo tempo que o deputado, sendo escolhido para ministro, não pode conservar um outro emprego; isto além de ser um estatuto sem o equilíbrio, que deve de haver entre os mandados e o mandante, é um absurdo em política, que aqueles que fazem ou influem na fatura das leis sejam os mesmos que as executem; e não se pode apresentar uma prova mais autêntica da falta de liberdade do projeto, do que esta. É por este motivo, que diz o sábio cardeal Maury, que: "Todo o cidadão que sabe calcular as conseqüências dos princípios políticos, deve abjurar uma pátria em que aqueles que fazem as leis, são magistrados, e onde os representantes do povo que têm fixado a legislação, pretendem influir na administração da justiça." A suspensão da sanção imperial a qualquer lei formada pela assembléia geral por duas legislaturas (art. 65) é inteiramente ruinosa à felicidade da nação, que pode muito bem depender de uma lei, que não deva admitir uma dilação pelo menos de oito anos, muito principalmente quando vemos, que para a lei como sancionada, pela dilação do tempo, é indispensavelmente necessário que as duas legislaturas seguintes insistam a eito sobre a mesma lei (art. 65). A oitava atribuição do poder executivo, que é de fazer tratados de aliança defensiva e ofensiva, levando-os depois de concluídos ao conhecimento da assembléia geral, é de muito perigo para a nação, pois que ela não interfere com o seu conhecimento e consentimento em negócio que tanta importância, muito principalmente quando se vê, que o mesmo executivo julga necessária a aprovação prévia da assembléia geral para execução dos breves, letras pontifícias, decretos e concílios, quando envolverem disposição geral (art. 14). A atribuição privativa do executivo de empregar, como bem lhe parecer conveniente à segurança e defesa do império, a força armada de mar e terra (art. 148), é a coroa do despotismo e a fonte caudal da opressão da nação, e o meio de que se valeram todos os déspotas para escravizar a Ásia e Europa, como nos conta a história antiga e moderna. Pelos arts. 55, 56, 57, 58 e 59, a câmara doa deputados está quase escrava da dos senadores, e o remédio que se aplica, no caso de discórdia, me parece paliativo, obscuro e impraticável. Os conselhos das províncias são uns meros fantasmas para iludir os povos; porque devendo levar suas decisões à assembléia geral e ao executivo conjuntamente, isto bem nenhum pode produzir às províncias; pois que o arranjo, atribuições e manejo da assembléia geral faz tudo em último resultado depender da vontade e arbítrio do Imperador que arteiramente avoca tudo a si, e de tudo dispõe a seu contento e pode oprimir a nação do modo mais prejudicial, debaixo da forma da lei. Depois, tira-se aos conselhos o poder de projetar sobre a execução das leis, atribuindo esta, que parece de suma necessidade ao conselho; pois que este mais que nenhum outro, deve de estar ao fato das circunstâncias do tempo, lugar, etc., da sua província, conhecimentos indispensáveis para a cômoda e frutuosa aplicação das leis. Estas são as coisas maiores, que minha fraqueza pode descobrir no projeto em questão, e que eu julgo de sumo perigo para a independência do império, sua integridade, sustentação da liberdade dos povos e conservação sagrada da sua propriedade; e estas mesmas coisas as expus sumariamente, ou levemente tocadas, por não admitir a presente conferência discursos extensos. Talvez eu nestas mesmas me engane, e não tenha idéias exatas, nem saiba combiná-las e conceder-lhes a necessária relação, que há entre si, por cujo motivo me pareça mau, opressor e contraditório o projeto; mas no entanto é o que por ora entendo, e sendo chamado para dar o meu voto, hei de votar não pelas idéias que os outros têm, sim pelas minhas; portanto digo, que pelo que é em si esta peça de política, estes rascunhos de constituição não se deve admitir. Agora direi o mesmo por outro princípio, a saber, pela fonte de que manou. É princípio conhecido pelas luzes do presente século, e até confessado por S. M., que a soberania, isto é, aquele poder, sobre o qual não há outro, reside na nação essencialmente; e deste princípio nasce como primária conseqüência, que a mesma nação é quem se constitui, isto é, quem escolhe a forma do governo, quem distribui esta suma autoridade nas partes, que bem lhe parece, e com as relações; que julga mais adequadas ao seu aumento, segurança da sua liberdade política e sua felicidade; logo é sem questão, que a mesma nação, ou pessoa de sua comissão, é quem deve esboçar a sua constituição, purificá-la das imperfeições e afinal constitui-la; portanto como S. M. I. não é nação, não tem soberania, nem comissão da nação brasileira para arranjar esboços de constituição e apresentá-los, não vem este projeto de fonte legítima, e por isso se deve rejeitar por exceção de incompetência. Muito principalmente quando vemos, que estava a representação nacional usando da sua soberania em constituir a nação, e S. M. pelo mais extraordinário despotismo e de uma maneira a mais hostil dissolveu a soberana assembléia e se arrogou o direito de projetar constituições. Reflito, que só a ação de escolher por si a matéria do pacto social, e dá-lo, como faz S. M., é um ato da soberania, que ele não tem. Isto é uma conseqüência imediata da soberania da nação, como pode ocorrer a qualquer que pensar por alguns minutos neste negócio; mas se fossem precisos argumentos externos, além de outros muitos, que por abreviar eu calo, basta lembrar o autor das reflexões contra os redatores do investigador Português da Inglaterra, o qual prova forte e justamente, que as cortes de Lamego, e outras de Portugal nunca tiveram o poder legislativo, como as câmaras dos pares e comuns da Inglaterra, porque os reis de Portugal foram os que nas cortes propuseram a matéria das ordenações e das leis. Em segundo lugar, que em S. M. não há atribuição alguma, donde se possa deduzir o poder de nos dar constituição e mandá-la jurar, porquanto o título de imperador, com que o Brasil extemporaneamente o condecorou, não foi mais que uma declaração antecipada de que ele seria o chefe do poder executivo no sistema constitucional, que proclamamos, com um certo poder provisório, que se fazia indispensável para preparar a nação para o efeito de se constituir como mesmo S. M. confessou no dia 3 de maio da abertura da assembléia soberana, o qual poder provisório cessou com a abertura da assembléia, e as atribuições que ele teria, ainda haviam de ser declaradas pela mesma assembléia; é por isso que S. M a dissolveu: as suas atribuições são tudo aquilo, que lhe adquirem as suas armas, e lhe cederem a fraqueza e medo dos povos. S. M. está tão persuadido, que a única atribuição, que tem sobre os povos, é esta do poder da força, a que chamam outros a última razão dos estados, que nos manda jurar o projeto com um bloqueio à vista, fazendo-nos todas as hostilidades; por cujo motivo não se deve adotar nem jurar semelhante esboço de constituição, pois o juramento para ligar em consciências, e produzir seu efeito, é indispensavelmente necessário ser dado em plena liberdade, e sem a menor coação; e ninguém jamais obrou livremente obrigado da fome, e com bocas de fogo aos peitos. Ainda que, Ilustre senhores, para se estabelecer uma verdade, não se faca mister multidão de provas, contudo há ocasiões, em que ela deve ser encarada por todos os lados, muito principalmente quando é de tanta monta como esta, e pode produzir conseqüências funestíssimas; e além disto, correm impressos sedutores, que se esforçam em sustentar o erro, adornando-o com as galas emprestadas da verdade e da justiça. Portanto, ainda vos lembro, que este juramento vos conduziria a um horroroso perjúrio, que vos tornará detestáveis à face dos homens. Vós, senhores, no dia 17 de outubro de 1822, na Igreja matriz do Sacramento, dissestes - Nós juramos perante Deus, seus sacerdotes e altares, adesão à causa geral do Brasil, e seu sistema atual, debaixo dos auspícios do Sr. Pedro, príncipe regente constitucional, e defensor perpétuo do Brasil, a quem obedecemos; e assim juramos reconhecer e obedecer as cortes brasilianas constituintes e legislativas, e defender a nossa pátria, liberdade e direitos ate vencer ou morrer." Como agora podereis jurar uma carta constitucional que não foi dada pela soberania da nação, que vos degrada da sociedade de um povo livre e brioso para um valongo de escravos e curral de bestas de carga? Um projeto, que destrói a vossa categoria no meio das nações livres do orbe? Seria injusta a matéria do primeiro juramento para não vos ligar? Ou estareis agora loucos rematados? Ou haverá poder, que, dispensando-vos do primeiro juramento, possa de vós exigir o segundo? Onde está vossa moral, vossos costumes, vossa religião? Se tal desgraça sucedesse, como olhariam para nós os outros povos nossos conterrâneos e externos? Quem quererá contratar com um povo tão imoral e tão sem respeito aos laços mais sagrados da sociedade, e tão sem acatamento para a religião de que faz glória? Tenho ouvido a algumas pessoas, que se pode jurar o projeto, à exceção daqueles artigos, que ofendam os nossos interesses. Isto ou é uma velhacaria, para por este jeito manhoso nos lançarem os ferros do cativeiro; ou uma Ignorância pueril, que merece compaixão. Porque havendo-se demonstrada, que este artefato político é um sistema de opressão; que os principais anéis desta cadeia, são inteiramente destruidores da nossa independência, da integridade do Brasil, liberdade política e civil, tem-se feito ver que o sistema é mau, opressor e ruinoso, e portanto inadmissível, bem que hajam alguns elos intermédios, que sejam bons, como se vêm alguns nas disposições gerais. Depois disto, esperar-se, que o imperador, que teve a valentia de dissolver a assembléia constituinte com o maior escândalo da razão, da justiça e da constitucionalidade jurada; que se arrogou a monstruosa atribuição de dar constituição a quem não devia dar, se abaixe a reformar o seu projeto por representação daqueles, que ele julga com o dever de lhe obedecer cegamente. Se esta reflexão não vos convence de que o oferecimento do projeto às câmaras para ser discutido era ilusório, e sem o sincero desejo de o reformar conforme as anotações dos povos, eu me lembro, senhores, que a capital da Bahia depois de tantos sacrifícios de sua honra e dignidade, depois de tanto servilismo, não mereceu a reforma de dois únicos artigos que requereram, e tiveram do ministro do império a seguinte resposta: - "É conquanto desejasse S.M.I. poder responder já a esta representação, manda pela secretaria de estado dos negócios do império particular à sobredita câmara, que requerendo todas as outras, se jure o projeto sem restrição, não é possível por ora fazer nele mudança alguma, não havendo inconveniente em que se remetam essas observações, para quando se fizer a revisão marcada no mesmo projeto". (Cart. de 11 de março de 1822). É por todas estas razões, que eu sou de voto, que se não adote e muito menos jure o projeto de que se trata, por ser inteiramente mau, pois não garante a independência do Brasil, ameaça a sua integridade, oprime a liberdade dos povos, ataca a soberania da nação, e nos arrasta ao maior dos crimes contra a divindade, qual o perjúrio, e nos é apresentado a maneira mais coativa e tirânica."

Sobre a escravidão. Texto à Constituinte. José Bonifácio (1823)


1823



(*) O título oficial deste texto é "Representaçãoà Assembleía Constituinte e Geral do Império do Brasil". No texto original, após a justificativa, que se publiuca abaixo, seguem-se os 32 artigos do projeto apresentado na Constituinte de 1823. Embora não proponha a abolição imediata da escravidão no país, mas uma transição planejada para o trabalho livre, o autor mete o dedo na ferida. Faz uma denúncia vigorosa e uma análise profunda da escravidão, mostrando como ela envenenava moralmente o país e impedia seu progresso. O texto deixa claro que a parcela mais lúcida da elite brasileira sabia perfeitamente que era necessário cortar o nó górdio. Disso dependia a construção da Nação. Mas a abolição foi retardada por quase um século. Perdemos o século XIX. O projeto de José Bonifácio jamais chegou a ser votado. A Constituinte foi dissolvida por Pedro I sete meses depois de instalada e José Bonifácio, exilado. Retornaria ao Brasil em 1829, mas sem exercer a influência dos primeiros momentos da Independência. O texto integral apresentado à Constituinte, que inclui os artigos do projeto, pode ser consultado no livro “Projetos para o Brasil”, de José Bonifácio de Andrada e Silva, editado na coleção “Retratos do Brasil”, pela Companhia das Letras, em 1998. As notas abaixo são da organizadora da edição mencionada, Miriam Dolhnikoff, ou do próprio José Bonifácio. Chegada a época feliz da regeneração política da nação brasileira, e devendo todo cidadão honrado e instruído concorrer para tão grande obra, também eu me lisonjeio que poderei levar ante à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa algumas idéias, que o estudo e a experiência têm em mim excitado e desenvolvido. Como cidadão livre e deputado da nação dois objetos me parecem ser, fora a Constituição, de maior interesse para a prosperidade futura deste império. O primeiro é um novo regulamento para promover a civilização geral dos índios do Brasil, que farão com o andar do tempo inúteis os escravos, cujo esboço já comuniquei a esta Assembléia. Segundo, uma nova lei sobre o comércio da escravatura, e tratamento dos miseráveis cativos. Este assunto faz o objeto da atual representação. Nela me proponho mostrar a necessidade de abolir o tráfico da escravatura, de melhorar a sorte dos atuais cativos, e de promover a sua progressiva emancipação. Quando verdadeiros cristãos e filantropos levantaram a voz pela primeira vez em Inglaterra contra o tráfico de escravos africanos, houve muita gente interesseira ou preocupada, que gritou ser impossível ou impolítica semelhante abolição, porque as colônias britânicas não podiam escusar um tal comércio sem uma total destruição: todavia passou o Bill,(1) e não se arruinaram as colônias. Hoje em dia que Wilberforces e Buxtons (2) trovejam de novo no Parlamento a favor da emancipação progressiva dos escravos, agitam-se outra vez os inimigos da humanidade como outrora; mas espero da justiça e generosidade do povo inglês, que se conseguirá a emancipação, como já se conseguiu a abolição de tão infame tráfico. E por que os brasileiros somente continuarão a ser surdos aos gritos da razão, e da religião cristã, e direi mais, da honra e brio nacional? Pois somos a única nação de sangue europeu que ainda comercia clara e publicamente em escravos africanos. Eu também sou cristão e filantropo; e Deus me anima para ousar levantar a minha fraca voz no meio desta augusta Assembléia a favor da causa da justiça, e ainda da sã política, causa a mais nobre e santa, que pode animar corações generosos e humanos. Legisladores, não temais os urros do sórdido interesse: cumpre progredir sem pavor na carreira da justiça e da regeneração política; mas todavia cumpre que sejamos precavidos e prudentes. Se o antigo despotismo foi insensível a tudo, assim lhe convinha ser por utilidade própria: queria que fôssemos um povo mesclado e heterogêneo, sem nacionalidade, e sem irmandade, para melhor nos escravizar. Graças aos céus, e à nossa posição geográfica, já somos um povo livre e independente. Mas como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutais e inimigos? Comecemos pois desde já esta grande obra pela expiação de nossos crimes e pecados velhos. Sim, não se trata somente de sermos justos, devemos ser penitentes; devemos mostrar à face de Deus e dos outros homens que nos arrependemos de tudo o que nesta parte temos obrado há séculos contra a justiça e contra a religião, que nos bradam acordes que não façamos aos outros o que queremos que não nos façam a nós. É preciso pois que cessem de uma vez os roubos, incêndios, e guerras que fomentamos entre os selvagens da África. É preciso que não venham mais a nossos portos milhares e milhares de negros, que morriam abafados no porão dos nossos navios, mais apinhados que fardos de fazenda: é preciso que cessem de uma vez todas essas mortes e martírios sem conta, com que flagelávamos e flagelamos ainda esses desgraçados em nosso próprio território. É tempo pois, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bárbaro e carniceiro; é tempo que vamos acabando gradualmente até os últimos até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar em poucas gerações uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes. É da maior necessidade ir acabando tanta heterogeneidade física e civil; cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto, que se não esfarele ao pequeno toque de qualquer nova convulsão política. Mas que ciência química, e que desteridade não são precisas aos operadores de tão grande e difícil manipulação? Sejamos pois sábios e prudentes, porém constantes sempre. Com efeito, Senhores, nação nenhuma talvez pecou mais contra a humanidade do que a portuguesa, de que fazíamos outrora parte. Andou sempre devastando não só as terras da África e da Ásia, como disse Camões, mas igualmente as do nosso país (3). Foram os portugueses os primeiros que, desde o tempo do infante d. Henrique, fizeram um ramo de comércio legal de prear homens livres, e vendê-los como escravos nos mercados europeus e americanos. Ainda hoje perto de quarenta mil criaturas humanas são anualmente arrancadas da África, privadas de seus lares, de seus pais, filhos e irmãos, transportadas às nossas regiões, sem a menor esperança de respirarem outra vez os pátrios ares, e destinadas a trabalhar toda vida debaixo do açoite cruel de seus senhores, elas, seus filhos, e os filhos de seus filhos para todo o sempre! Se os negros são homens como nós, e não formam uma espécie de brutos animais; se sentem e pensam como nós, que quadro de dor e de miséria não apresentam eles à imaginação de qualquer homem sensível e cristão? Se os gemidos de um bruto nos condoem, é impossível que deixemos de sentir também certa dor simpática com as desgraças e misérias dos escravos; mas tal é o efeito do costume, e a voz da cobiça, que vêem homens correr lágrimas de outros homens, sem que estas lhes espremam dos olhos uma só gota de compaixão e de ternura. Mas a cobiça não sente nem discorre como a razão e a humanidade. Para lavar-se pois das acusações que merecia, lançou sempre mão, e ainda agora lança de mil motivos capciosos, com que pretende fazer a sua apologia: diz que é um ato de caridade trazer escravos da África, porque assim escapam esses desgraçados de serem vítimas de despóticos régulos; diz igualmente que, se não viessem esses escravos, ficariam privados da luz do evangelho, que todo cristão deve promover, e espalhar: diz que esses infelizes mudam de um clima e país ardente e horrível para outro, doce, fértil e ameno; diz por fim que, devendo os criminosos e prisioneiros de guerra (ser) mortos imediatamente pelos seus bárbaros costumes, é um favor, que se lhes faz, comprá-los, para lhes conservar a vida, ainda que seja em cativeiro. Homens perversos e insensatos! Todas essas razões apontadas valeriam alguma coisa, se vós fósseis buscar negros à África para lhes dar liberdade no Brasil, e estabelecê-los como colonos; mas perpetuar a escravidão, fazer esses desgraçados mais infelizes do que seriam, se alguns fossem mortos pela espada da injustiça, e até dar azos certos para que se perpetuem tais horrores, é decerto um atentado manifesto contra as leis eternas da justiça e da religião. E por que continuaram e continuam a ser escravos os filhos desses africanos? Cometeram eles crimes? Foram apanhados em guerra? Mudaram de clima mau para outro melhor? Saíram das trevas, do paganismo para a luz do evangelho? Não por certo, e todavia seus filhos, e filhos desses filhos, devem, segundo vós, ser desgraçados para todo o sempre. Fala pois contra vós a justiça e a religião, e só vos podeis escorar no bárbaro direito público das antigas nações, e principalmente na farragem das chamadas l leis romanas; com efeito , os apologistas da escravidão escudam-se com os gregos, e romanos, sem advertirem que entre os gregos e os romanos não estavam ainda bem desenvolvidos e demonstrados os princípios eternos do direito natural, e os divinos preceitos da religião; e todavia como os escravos de então eram da mesma cor e origem dos senhores, e igualmente tinham a mesma, ou quase igual, civilização que a de seus amos, sua indústria, bom comportamento, e talentos os habilitavam facilmente a merecer o amor de seus senhores, e a consideração de outros homens; o que de nenhum modo pode acontecer em regra aos selvagens africanos. Se ao menos os senhores de negros no Brasil tratassem esses miseráveis com mais humanidade, eu certamente não escusaria, mas ao menos me condoeria da sua cegueira e injustiça; porém o habitante livre do Brasil, e mormente o europeu, é não só, pela maior parte, surdo às vozes da justiça, e aos sentimentos do evangelho, mas até é cego aos seus próprios interesses pecuniários, e à felicidade doméstica da família. Com efeito, imensos cabedais saem anualmente deste império para África; e imensos cabedais se amortizam dentro deste vasto país, pela compra de escravos, que morrem, adoecem, e se inutilizam, e demais pouco trabalham. Que luxo inútil de escravatura também não apresentam nossas vilas e cidades, que sem ele poderiam limitar-se a poucos e necessários criados? Que educação podem ter as famílias, que se servem destes entes infelizes, sem honra, nem religião? De escravas, que se prostituem ao primeiro que as procura? Tudo porém se compensa nesta vida; nós tiranizamos os escravos, e os reduzimos a brutos animais, e eles nos inoculam toda a sua imoralidade, e todos os seus vícios. E na verdade, senhores, se a moralidade e a justiça social de qualquer povo se fundam, parte nas suas instituições religiosas e políticas, e parte na filosofia, para dizer assim, doméstica de cada família, que quadro pode apresentar o Brasil, quando o consideramos debaixo destes dois pontos de vista? Qual é a religião que temos, apesar da beleza e santidade do evangelho, que dizemos seguir? A nossa religião é pela maior parte um sistema de superstições e de abusos anti-sociais; o nosso clero, em muita parte ignorante e corrompido, é o primeiro que se serve de escravos, e os acumula para enriquecer pelo comércio, e pela agricultura, e para formar, muitas vezes, das desgraçadas escravas um harém turco. As famílias não têm educação, nem a podem ter com o tráfico de escravos, nada as pode habituar a conhecer e amar a virtude, e a religião. Riquezas e mais riquezas gritam os nossos pseudo-estadistas, os nossos compradores e vendedores de carne humana; os nossos sabujos eclesiásticos; os nossos magistrados, se é que se pode dar um tão honroso título a almas, pela maior parte, venais, que só empunham a vara da justiça para oprimir desgraçados, que não podem satisfazer à sua cobiça, ou melhorar a sua sorte. E então, senhores, como pode grelar a justiça e a virtude, e florescerem os bons costumes entre nós? Senhores, quando me emprego nestas tristes considerações, quase que perco de todo as esperanças de ver o nosso Brasil um dia regenerado e feliz, pois que se me antolha que a ordem das vicissitudes humanas está de todo invertida no Brasil. O luxo e a corrupção nasceram entre nós antes da civilização e da indústria; e qual será a causa principal de um fenômeno tão espantoso? A escravidão, senhores, a escravidão, porque o homem, que conta com os jornais de seus escravos, vive na indolência, e a indolência traz todos os vícios após si. Diz porém a cobiça cega que os escravos são precisos no Brasil, porque a gente dele é frouxa e preguiçosa. Mentem por certo. A província de S. Paulo, antes da criação dos engenhos de açúcar, tinha poucos escravos, e todavia crescia anualmente em povoação e agricultura, e sustentava de milho, feijão, farinha, arroz, toucinhos, carnes de porco etc. a muitas outras províncias marítimas e interiores. Mas conceda-se (caso negado) que com efeito a gente livre do Brasil não pode com tantos trabalhos aturados da lavoura, como na Europa, pergunto, se produzindo o milho, por exemplo em Portugal nas melhores terras quarenta por um, e no Brasil acima de duzentos, e as mais sementeiras à proporção; e estando ás horas do trabalho necessário da lavoura na razão inversa do produto da mesma; para que se precisa de maior robustez e trabalhos mais aturados? Os lavradores da Índia são porventura mais robustos do que um branco, um mulato, um cabra do Brasil? Não por certo, e todavia não morre aquele povo de fome. E porque eles não têm escravos africanos, deixam as suas terras de ser agriculturadas, e o seu país um dos mais ricos do globo, apesar de sua péssima religião e governo, e da impolítica infernal da divisão em castas? Hoje em dia a cultura dos canaviais e o fabrico do açúcar têm crescido prodigiosamente, cujo produto já rivaliza nos mercados públicos da Europa com o do Brasil e ilhas do golfo do México. Na Cochinchina não há escravos, e todavia a produção e exportação do açúcar já montava em 1750, segundo nos diz o sábio Poivre (3), a quarenta mil pipas de duas mil libras cada uma, e o seu preço era baratíssimo no mercado: ora, advirta-se que todo este açúcar vinha de um pequeno país sem haver necessidade de estragar matas e esterilizar terrenos, como desgraçadamente entre nós está sucedendo. Demais, uma vez que acabe o péssimo método da lavoura de destruir matas e esterilizar terrenos em rápida progressão, e se forem introduzindo os melhoramentos da cultura européia, decerto com poucos braços, a favor dos arados e outros instrumentos rústicos, a agricultura ganhará pés diariamente, as fazendas serão estáveis, e o terreno, quanto mais trabalhado, mais fértil ficará. A natureza próvida, e sábia em toda e qualquer parte do globo, dá os meios precisos aos fins da sociedade civil, e nenhum país necessita de braços estranhos e forçados para ser rico e cultivado. Além disto, a introdução de novos africanos no Brasil não aumenta a nossa população, e só serve de obstar a nossa indústria. Para provar a primeira tese bastará ver com atenção o censo de cinco ou seis anos passados, e ver-se-á que apesar de, entrarem no Brasil, como já disse, perto de quarenta mil escravos anualmente, o aumento desta classe é ou nulo, ou de mui pouca monta: quase tudo morre ou de miséria, ou de desesperação, e todavia custaram imensos cabedais, que se perderam para sempre, e que nem sequer pagaram o juro do dinheiro empregado. Para provar a segunda tese, que a escravatura deve obstar a nossa indústria, basta lembrar que os senhores que possuem escravos vivem, em grandíssima parte, na inércia, pois não se vêem precisados pela fome ou pobreza a aperfeiçoar sua indústria, ou melhorar sua lavoura. Demais, continuando a escravatura a ser empregada exclusivamente na agricultura, e nas artes, ainda quando os estrangeiros pobres venham estabelecer-se no país, em pouco tempo, como mostra a experiência, deixam de trabalhar na terra com seus próprios braços e, logo que podem ter dois ou três escravos, entregam-se à vadiação e desleixo, pelos caprichos de um falso pundonor. As artes não se melhoram; as máquinas, que poupam braços, pela abundância extrema de escravos nas povoações grandes, são desprezadas. Causa raiva, ou riso, ver vinte escravos ocupados em transportar vinte sacos de açúcar, que podiam conduzir uma ou duas carretas bem construídas com dois bois ou duas bestas muares. A lavoura do Brasil, feita por escravos boçais e preguiçosos, não dá os lucros, com que homens ignorantes e fantásticos se iludem. Se calcularmos o custo atual da aquisição do terreno, os capitais empregados nos escravos que o devem cultivar, o valor dos instrumentos rurais com que deve trabalhar cada um destes escravos (5), sustento e vestuário, moléstias reais e afetadas, e seu curativo, as mortes numerosas, filhas do mau tratamento e da desesperação, as repetidas fugidas aos matos, quilombos, claro fica que o lucro da lavoura deve ser mui pequeno no Brasil, ainda apesar da prodigiosa fertilidade de suas terras, como mostra a experiência. No Brasil a renda dos prédios rústicos não depende da extensão e valor do terreno, nem dos braços que o cultivam, mas sim da mera indústria e inteligência do lavrador. Um senhor de terras é de fato pobríssimo, se pela sua ignorância ou desmazelo não sabe tirar proveito da fertilidade de sua terra, e dos braços que nela emprega. Eu desejara, para bem seu, que os possuidores de grande escravatura conhecessem que a proibição do tráfico de carne humana os fará mais ricos; porque seus escravos atuais virão a ter então mais valor, e serão por interesse seu mais bem tratados; os senhores promoverão então os casamentos, e estes a população. Os forros aumentados, para ganharem a vida, aforarão pequenas porções de terras descobertas ou taperas, que hoje nada valem. Os bens rurais serão estáveis, e a renda da terra não se confundirá com a do trabalho e indústria individual. Não só estes males particulares que traz consigo a grande escravatura no Brasil, o Estado é ainda mais prejudicado. Se os senhores de terras não tivessem uma multidão demasiada de escravos, eles mesmos aproveitariam terras já abertas e livres de matos, que hoje jazem abandonadas como maninhas. Nossas matas preciosas em madeiras de construção civil e náutica não seriam destruídas pelo machado assassino do negro, e pelas chamas devastadoras da ignorância. Os cumes de nossas serras, fonte perene de umidade e fertilidade para as terras baixas, e de circulação elétrica, não estariam escalvados e tostados pelos ardentes estios do nosso clima. É pois evidente que, se a agricultura se fizer com os braços livres dos pequenos proprietários, ou por jornaleiros, por necessidade e interesse serão aproveitadas essas terras, mormente nas vizinhanças das grandes povoações, onde se acha sempre um mercado certo, pronto e proveitoso, e deste modo se conservarão, como herança sagrada para nossa posteridade, as antigas matas virgens, que pela sua vastidão e frondosidade caracterizam o nosso belo país. É de espantar pois que um tráfico tão contrário às leis da moral humana, e às santas máximas do evangelho, e até contra as leis de uma sã política, dure há tantos séculos entre homens que se dizem civilizados e cristãos! Mentem, nunca o foram. A sociedade civil tem por base primeira a justiça, e por fim principal a felicidade dos homens; mas que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem, e o que é pior, dos filhos deste homem, e dos filhos destes filhos? Mas dirão talvez que se favorecerdes a liberdade dos escravos será atacar a propriedade. Não vos iludais, senhores, a propriedade foi sancionada para bem de todos, e qual é o bem que tira o escravo de perder todos os seus direitos naturais, e se tornar de pessoa a coisa, na frase dos jurisconsultos? Não é pois o direito de propriedade, que querem defender, é o direito da força, pois que o homem, não podendo ser coisa, não pode ser objeto de propriedade. Se a lei deve defender a propriedade, muito mais deve defender a liberdade pessoal dos homens, que não pode ser propriedade de ninguém, sem atacar os direitos da providência, que fez os homens livres, e não escravos; sem atacar a ordem moral das sociedades, que é a execução estrita de todos os deveres prescritos pela natureza, pela religião, e pela sã política: ora, a execução de todas estas obrigações é o que constitui a virtude; e toda legislação, e todo governo (qualquer que seja a sua forma) que a não tiver por base, é como a estátua de Nabucodonosor, que uma pedra desprendida da montanha a derribou pelos pés; é um edifício fundado em areia solta, que a mais pequena borrasca abate e desmorona. Gritam os traficantes de carne humana contra os piratas barbarescos, que cativam por ano mil, ou dois mil brancos, quando muito; e não gritam contra dezenas de milhares de homens desgraçados, que arrancamos de seus lares, eternizando em dura escravidão toda a sua geração. Não basta responder que os compramos com o nosso dinheiro; como se o dinheiro pudesse comprar homens! _ como se a escravidão perpétua não fosse um crime contra o direito natural, e contra as leis do evangelho, como disse. As leis civis, que consentem estes crimes, são não só culpadas de todas as misérias, que sofre esta porção da nossa espécie, e de todas as mortes e delitos que cometem os escravos, mas igualmente o são de todos os horrores, que em poucos anos devem produzir uma multidão imensa de homens desesperados, que já vão sentindo o peso insuportável da injustiça, que os condena a uma vileza e miséria sem fim. Este comércio de carne humana é pois um cancro que rói as entranhas do Brasil, comércio, porém, que hoje em dia já não é preciso para aumento da sua agricultura e povoação, uma vez que, por sábios regulamentos, não se consinta a vadiação dos brancos, e outros cidadãos mesclados, e a dos forros; uma vez que os muitos escravos, que já temos, possam, às abas de um governo justo, propagar livre e naturalmente com as outras classes, uma vez que possam bem criar e sustentar seus filhos, tratando-se esta desgraçada raça africana com maior cristandade, até por interesse próprio; uma vez que se cuide enfim na emancipação gradual da escravatura, e se convertam brutos imorais em cidadãos úteis, ativos e morigerados. Acabe-se pois de uma vez o infame tráfico da escravatura africana; mas com isto não está tudo feito; é também preciso cuidar seriamente em melhorar a sorte dos escravos existentes, e tais cuidados são já um passo dado para a sua futura emancipação. As leis devem prescrever estes meios, se é que elas reconhecem que os escravos são homens feitos à imagem de Deus. E se as leis os consideram como objetos de legislação penal, por que o não serão também da proteção civil? Torno a dizer porém que eu não desejo ver abolida de repente a escravidão; tal acontecimento traria consigo grandes males. Para emancipar escravos sem prejuízo da sociedade, cumpre fazê-los primeiramente dignos da liberdade: cumpre que sejamos forçados pela razão e pela lei a convertê-los gradualmente de vis escravos em homens livres e ativos. Então os moradores deste Império, de cruéis que são em grande parte neste ponto, se tornarão cristãos e justos, e ganharão muito pelo andar do tempo, pondo em livre circulação cabedais mortos, que absorve o uso da escravatura: livrando as suas famílias de exemplos domésticos de corrupção e tirania; de inimigos seus e do Estado; que hoje não têm pátria, e que podem vir a ser nossos irmãos, e nossos compatriotas. O mal está feito, senhores, mas não o aumentemos cada vez mais; ainda é tempo de emendar a mão. Acabado o infame comércio de escravatura, já que somos forçados pela. razão política a tolerar a existência dos atuais escravos, cumpre em primeiro lugar favorecer a sua gradual emancipação, e antes que consigamos ver o nosso país livre de todo deste cancro, o que levará tempo, desde já abrandemos o sofrimento dos escravos, favoreçamos, e aumentemos, todo os seus gozos domésticos e civis; instruamo-los no fundo da verdadeira religião de Jesus Cristo, e não em momices e superstições: por todos estes meios nós lhes daremos toda a civilização de que são capazes no seu desgraçado estado, despojando-os o menos que pudermos da dignidade de homens e cidadãos. Este é não só o nosso dever mas o nosso maior interesse, porque só então conservando eles a esperança de virem a ser um dia nossos iguais em direitos, e começando a gozar desde já da liberdade e nobreza de alma, que só o vício é capaz de roubar-nos, eles nos servirão com fidelidade e amor; de inimigos se tornarão nossos amigos e clientes. Sejamos pois justos e benéficos, senhores, e sentiremos dentro da alma que não há situação mais deliciosa que a de um senhor carinhoso e humano, que vive sem medo e contente no meio de seus escravos, como no meio da sua própria família, que admira e goza do fervor com que estes desgraçados adivinham seus desejos, e obedecem a seus mandos, observa com júbilo celestial o como maridos e mulheres, filhos e netos, sãos e robustos, satisfeitos e risonhos, não só cultivam suas terras para enriquecê-lo, mas vêm voluntariamente oferecer-lhe até as premissas dos frutos de suas terrinhas, de sua caça e pesca, como a um Deus tutelar. É tempo pois que esses senhores bárbaros, que por desgraça nossa ainda pululam no Brasil, ouçam os brados da consciência e da humanidade, ou pelo menos o seu próprio interesse, senão, mais cedo do que pensam, serão unidos das suas injustiças, e da sua incorrigível barbaridade. Eu vou, finalmente, senhores, apresentar-vos os artigos, que podem ser objeto da nova lei que requeiro: discuti-os, emendai-os, ampliai-os segundo a vossa sabedoria e justiça. Para eles me aproveitei da legislação dos dinamarqueses e espanhóis, e mui principalmente da legislação de Moisés, que foi o único, entre os antigos, que se condoeu da sorte miserável dos escravos, não só por humanidade, que tanto reluz nas suas instituições, mas também pela sábia política de não ter inimigos caseiros, mas antes amigos, que pudessem defender o novo Estado dos hebreus, tomando as armas, quando preciso fosse, a favor de seus senhores, como já tinham feito os servos do patriarca Abraão antes dele.” ...................................................................... (1) Bill: referência ao Ato de 2 de março de 1807, aprovado pelo Parlamento britânico, que aboliu o tráfico negreiro realizado por súditos ingleses. (2) William Wilberforce (1759-1833) e Sir Thomas Fowell Buxton (1786-1845): membros do Parlamento inglês, que tiveram importante papel na aprovação de leis antiescravistas. (3) Leia-se com atenção o eloqüentíssimo e veemente sermão do padre Vieira da 11 Dominga da Quaresma que foi o primeiro pregado em São Luís do Maranhão em 1653, t.12, p. 316 e seguintes. Leiam-se também outras obras do mesmo autor sobre esta matéria, e aplique-se ao cativeiro dos negros. (Nota de José Bonifácio.) (4) Pierre Poivre (1719-86): viajante e naturalista francês, autor da Viagem de um filósofo (1778). (5) Por exemplo, vinte escravos de trabalho necessitam de vinte enxadas, que todas se poupariam com um só arado. (Nota de José Bonifácio.)

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