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16.Prefácio do livro "Valeu a pena"

Prefácio do livro "Valeu a pena"


01.08.1996



Ao retirar-se da atividade política, ainda na década de 80, meu pai pretendia escrever suas memórias, mas, por uma razão ou por outra, o livro não avançou, empacando na fase das anotações e no manuscrito do primeiro capítulo. Mais tarde, com problemas de visão, passou a ter dificuldades para ler e escrever. Assim, na festa dos seus 80 anos, meus irmãos e eu sugerimos a contratação de um jornalista para auxiliá-lo no livro. A princípio, ele pareceu aceitar a idéia. Mas, meses depois, quando viu que ela era para valer, fulminou-a: - Com tanto filho jornalista, por que contratar alguém de fora da família? Não me sinto à vontade falando sobre a minha vida com um estranho. O recado não podia ser mais claro: um de nós teria de assumir pessoalmente a empreitada. Assim, em janeiro de 1994, ao viajar de férias para o Espírito Santo, levei comigo o gravador, o computador e a disposição de ajudá-lo a trazer ao mundo seu livro de memórias. No início, ele sentiu-se pouco à vontade, mas, aos poucos, desencabulou. Durante todo aquele mês, três vezes por semana, trabalhamos juntos no escritório de sua casa em Vila Velha. Logo estabelecemos uma rotina: eu lia o rascunho dos capítulos que escrevera nos dias anteriores com base nos depoimentos gravados, e ele propunha alterações, correções e acréscimos; eu expunha minhas dúvidas sobre o que me parecia obscuro ou confuso, ele as esclarecia e acrescentava novos detalhes; em seguida, ligávamos o gravador e retomávamos os depoimentos. Janeiro, é claro, não foi suficiente para terminar o trabalho. Tive de voltar mais quatro vezes ao Espírito Santo naquele ano, aproveitando feriadões. Em julho, concluímos a gravação dos depoimentos. Em setembro, durante a Semana da Pátria, tivemos nossa última sessão de trabalho, quando ele reviu os capítulos escritos até aquela época, mais ou menos o equivalente a quatro quintos do total que o livro teria ao final. Ele já estava bem cansado e sabia que não teria muito mais tempo pela frente. Morreu dormindo três meses depois, no dia 11 de dezembro de 1994. Desde o início, combinamos que o livro fugiria do padrão usual nas memórias dos políticos, em que as citações de discursos, os artigos de jornal e as argumentações em torno de polêmicas partidárias acabam soterrando a vida que se quer contar. Para meu pai, o livro deveria ser um passeio por sua vida e seu tempo - recheado, portanto, de casos e episódios, de lembranças de pessoas importantes e de gente humilde, de sonhos e de desilusões, de lutas e de momentos alegres. Tão importante quanto falar de sua participação no Senado seria recordar seus tempos de pugilista amador. Tão interessante quanto discorrer sobre sua atividade como vereador ou deputado seria escrever sobre Louise, sua namorada francesa na Zona do Mangue, ou sobre seus amigos de boêmia, como Orestes Barbosa e Ismael Silva. Tão significativo quanto relembrar sua renúncia ao mandato de deputado, a cassação política ou as sete vezes em que foi preso durante o Estado Novo e a ditadura militar seria falar sobre os pescadores de Manguinhos ou sobre seus encontros com Churchill ou Kruschev. Tudo isso sem esquecer dos colegas de profissão e das redações dos jornais em que trabalhou, do início dos anos 30 até a década de 70. Porque meu pai, embora tenha sido vereador, deputado federal e senador, mais do que um político, foi um jornalista. Gostava do Parlamento, mas sentia-se em casa mesmo era numa redação de jornal. Seja como político, seja como jornalista, ele sempre esteve na oposição. Nunca conseguiu ser governo, um pouco pelas circunstâncias políticas da época, mas muito pela sua personalidade. O fato é que desconfiava do poder e amava a rebeldia; desprezava a pose e a bajulação e encantava-se com quem remava contra a corrente. Mas, se sempre foi de oposição, nunca foi do contra. É que tinha um enorme apetite pela vida. Talvez essa tenha sido sua marca registrada: a alegria de viver. É curioso: quando comecei a trabalhar com ele no livro, não tinha tanta consciência de que esse era o traço marcante de sua personalidade. Pois o gosto pelo mundo e pelas pessoas era algo tão natural nele, que, ao menos para nós, da família, terminava não se destacando. Confundia-se com ele. Foi conversando com os outros, ao checar episódios e detalhes do livro, que percebi que o que nos parecia natural era, na verdade, uma marca extraordinária. Pois se um elogiava sua integridade, outro a coragem pessoal, um terceiro a inteligência, um quarto a lealdade, e assim por diante, todos, ou quase todos, depois de prestar tributos a essas qualidades, digamos, públicas de meu pai, acrescentavam, como quem revela um segredo ou confessa uma inveja: "Mas o que mais me fascinava nele era o gosto que tinha pela vida". Relendo suas memórias, agora que elas vão para a editora, constato como essa observação é verdadeira. Algumas explicações são necessárias sobre este livro. O primeiro capítulo foi escrito diretamente por meu pai, anos antes do restante da obra. Em termos de estilo, é diferente dos demais - a meu ver, é o mais elegante. Os outros foram escritos por mim, com base nos depoimentos gravados, tendo ele revisto o texto até o capítulo 43, inclusive. Pelos onze últimos capítulos, que não passaram pelo seu crivo, assumo inteira responsabilidade. Estou seguro de que ele os aprovaria sem modificações significativas. Como ghost-writer, procurei, ao máximo, manter as palavras, as expressões e o ritmo dos depoimentos. Meu pai era um excelente contador de casos e seria um crime não aproveitar esse dom na hora de contar a história de sua vida. Mas, ao mesmo tempo, tratei de fugir do estilo falado, que talvez desse mais sabor às primeiras cem linhas do texto, mas, ao longo de duzentas e tantas páginas, tornaria a leitura extremamente cansativa. Embora meu pai fosse dotado de uma memória prodigiosa, sobre a qual ele falará neste livro, não confiei cegamente nela. Sempre que surgiram dúvidas sobre algum episódio, detalhe, data etc., consultei outras fontes. Mesmo assim, é possível que, aqui e ali, uma ou outra imprecisão tenha escapado. Peço desculpas antecipadamente. Além disso, existirão outras versões para alguns episódios aqui narrados. Nesse caso, consolo-me com a observação clássica de que um livro de memórias é apenas um testemunho e, como todo testemunho, é tão-somente uma das muitas visões possíveis da realidade. Praticamente todos os meus irmãos, de uma forma ou de outra, trabalharam neste livro. Alguns ajudaram a tomar os depoimentos, outros reuniram fotos, jornais, documentos. Todos leram os originais e propuseram adendos e correções. Minha mulher, Nisa, fez a revisão do texto final e, mais do que isso, estimulou-me a concluir a tarefa quando pensei em abandoná-la depois da morte de meu pai. Maria Célia Fraga e Cristina Konder, do Centro de Documentação e Informação de O Globo, foram gentilíssimas auxiliando-me na pesquisa de jornais e fotos. Sou grato a Barbosa Lima Sobrinho, Evandro Carlos de Andrade, Lúcia Hipólito, Márcio Moreira Alves, Mauro Santayanna e Zuenir Ventura por terem lido os originais e feito sugestões e críticas, e a Sérgio Marques e Paulo Moreira, pela ajuda na reprodução das fotografias de arquivo. Uma última explicação: como o leitor notará, falta ao livro o capítulo 51, que deveria tratar da separação de Mario e Dinah e do casamento de Mario com Jane. Meu pai pretendia escrevê-lo ele próprio. Minha mãe já tinha morrido, esses assuntos são sempre delicados e ele queria escolher bem as palavras para não ferir ninguém. Mas, não teve tempo. Foi uma pena. O mais importante, porém, é que Mario viveu 34 anos com Dinah, com quem foi feliz, e vinte anos com Jane, com quem também foi feliz. Teve nove filhos do primeiro casamento e dois do segundo. Todos nos damos bem. Assim, o livro sai sem esse capítulo, o que, de certa forma, é uma injustiça com Jane, Marianne e Paulo Mario, que tiveram uma presença muito maior e mais forte na vida de meu pai do que este livro retrata. É um problema que não pude superar. Para evitar que, pela ausência do capítulo, a narrativa fosse quebrada, incluí uma nota com algumas informações factuais sobre o assunto. Além disso, Paulo Mario escreveu um curto depoimento sobre papai, que sai como posfácio. Uma última observação: para mim, foi muito bom fazer este livro junto com ele. Saímos "à boêmia" - como costumávamos fazer aos domingos, quando ele chamava os filhos pequenos para passear de carro sem destino certo, confiando no acaso - e escrevemos a história de sua vida. As impressões de meu pai sobre este último passeio estão no próprio livro. Adianto apenas que se divertiu muito. Quanto a mim, gostei do que vi, do que lembrei, do que aprendi, do que descobri. Mais do que tudo, gostei da companhia. Valeu a pena. Brasília, agosto de 1996

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