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12.Prefácio do livro "A rebelião dos estudantes"

Prefácio do livro "A rebelião dos estudantes"


01.05.2001



Muito já se escreveu sobre o movimento de 1968, mas, mesmo assim, o livro “Brasília, 1968”, de Antonio de Pádua Gurgel, tem sabor de novidade. É que, em geral, os textos sobre o assunto referem-se às manifestações e à organização dos estudantes no Rio e em São Paulo, ou ainda analisam o tema a partir de uma perspectiva nacional. Resultado: o Distrito Federal foi esquecido ou não teve o destaque que merecia por sua participação nos acontecimentos daquela época. Qual a razão disso? Arrisco algumas hipóteses. Primeira: em 1968, Brasília era uma cidade muito jovem - havia sido fundada oito anos antes, e ainda não formara sua própria identidade cultural. Tinha dificuldades para entender-se e, conseqüentemente, para explicar-se ao mundo. Segunda: mesmo amordaçada, a UnB tinha como referência um projeto de vanguarda. No quadro de arcaísmo das demais universidade públicas brasileiras, era um peixe fora d’água. Terceiro: talvez em nenhum lugar a repressão dentro das escolas tenha sido tão dura quanto no Distrito Federal. No Rio, em São Paulo ou no Nordeste, a tradição de autonomia universitária dificultou o estabelecimento de um clima de ordem unida no topo do mundo acadêmico. Havia mais espaço para manobrar. Na UnB, talvez por que a instituição ainda usava fraldas, talvez por que estava muito próxima do poder, ditadura militar e reitoria logo confundiram-se. Como nas ruas a polícia batia à vontade, não havia para onde correr. Ou seja, a cidade era diferente, a universidade era diferente e as condições da luta eram diferentes em Brasília. Tanta especificidade talvez explique por que os textos sobre 68 não se detêm muito na informação e na análise sobre o movimento no Distrito Federal. Pessoalmente, como vice-presidente da União Metropolitana dos Estudantes (UME) e como presidente do Diretório Central dos Estudantes da UFRJ, entidades cariocas, tive freqüentes contatos com os dirigentes da FEUB (Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília) nos anos de 1967 e 1968, nos conselhos e congressos da UNE. Eram reuniões intermináveis, confusas e marcadas por duros enfrentamentos. Impressionava-me a radicalização do movimento em Brasília. A FEUB sempre estava na dianteira das alternativas mais duras, opondo-se às posições mais amplas - ou mais moderadas, depende do ponto de vista, da UME e da União Estadual dos Estudantes de São Paulo. Desconfiava das propostas intermediárias, rejeitava tudo que cheirasse a compromisso. O interessante é que essa radicalização não era fruto da ação de um pequeno grupo, distante das salas de aula e encastelado na entidade, como ocorria em alguns lugares. Ao contrário, na capital da República, era expressão da radicalização do próprio movimento. A base empurrava os líderes para posições extremas. Tanto que a principal força política na UnB , a Ação Popular - organização de origem católica em trânsito para o marxismo, que, na maioria dos estados, capitaneava a ala mais à esquerda do movimento, em Brasília era acusada de reformista e moderada pelo pessoal mais xiita, ligado à IV Internacional. Repressão duríssima e radicalização espontânea - esses foram os dois traços marcantes do ME de Brasília nos idos de 68. E eles surgem em cada página deste livro, nos episódios relatados, nos fatos trazidos à tona, nos depoimentos colhidos. São estudantes entrando na borracha, policiais sendo presos e interrogados por adolescentes, deputados e senadores participando de assembléias universitárias, reuniões no palácio do Planalto convocadas às pressas para dar resposta a uma passeata iniciada dez minutos antes na W-3. Num momento, aparece Roman Blanco, misto de professor, picareta e policial, organizando a dedo-duragem e a repressão no campus. No outro, flagra-se a escalada da linha dura rumo ao controle total da UnB. Mais adiante, topa-se com os secundaristas do Colégio Agrícola, em Planaltina, ocupando a escola sob a liderança de um “Diretório Revolucionário Ernesto Guevara” - mais um pouco, teríamos uma Sierra Maestra a 25 quilômetros do Palácio do Planalto. A narrativa desses e de outros episódios dá colorido e força ao livro. Afinal, não se bota de pé um sistema de repressão digno desse nome sem a colaboração pressurosa dos carreiristas de plantão e dos oportunistas de ocasião. Tampouco se pode ir à luta contra a ditadura sem a participação incendiária de alguns delirantes recém saídos dos livros. Algumas questões mais gerais são importantes para se entender o movimento estudantil brasileiro em 68. Sem querer me alongar no assunto, que já consumiu toneladas de papel e rios de tinta, acho que a explosão daquele ano foi fruto de quatro casamentos e de um divórcio. O primeiro casamento deu-se entre os estudantes politizados, que resistiam à ditadura e lutavam pela sua derrubada, e a massa dos estudantes, que queria apenas receber uma boa formação acadêmica e profissional. Durante os anos imediatamente posteriores a 1964, esses dois segmentos haviam vivido em mundos diferentes. Os estudantes politizados faziam o capeta: participavam de assembléias, pichavam muros, distribuíam panfletos, denunciavam arbitrariedades, convocavam greves e manifestavam-se nas ruas. Eram vistos com simpatia pela maioria dos colegas, mas não deixavam de ser um corpo estranho nas faculdades. A partir de 1967, entretanto, esse quadro foi se modificando. As chamadas vanguardas estudantis deram-se conta de que o projeto da ditadura militar para a universidade - privatização do ensino superior, introdução das mensalidades nas escolas públicas, adoção de currículos ligados às demandas das empresas, diminuição do espaço para a crítica e a pesquisa científica, abolição da autonomia universitária etc - chocava-se frontalmente com os interesses dos alunos. Ou seja, o confronto entre ditadura e estudantes não se dava apenas no plano político e fora da universidade, mas manifestava-se também nas questões concretas que afetavam o cotidiano dos alunos dentro das salas de aula. Assim, partiu-se para organizar e mobilizar as escolas por melhores condições de ensino, mais verbas para a educação, mais vagas nas universidades - e, nesse processo, levá-las a lutar contra o regime militar. A resposta dos estudantes foi imediata. O movimento cresceu e ganhou caráter de massas - e topou com a intransigência das autoridades acadêmicas e a repressão da ditadura. Resultado: através de sua experiência, a massa dos estudantes foi se colocando numa oposição cada vez mais frontal ao regime. E os estudantes politizados, de esquerda, que antes eram vistos como agitadores profissionais, passaram a ser respeitados e, naturalmente, ganharam a liderança do movimento. Em 68, estavam todos no mesmo barco. O segundo casamento deu-se fora da universidade, entre dois segmentos da classe média: o que havia se oposto ao golpe de 64 e o que o havia apoiado. A luta pelas reformas de base durante o governo João Goulart dividira a classe média. Uma parte dela, minoritária, vira na mudança das estruturas o caminho para a modernização do país e para a diminuição das injustiças sociais. A outra, majoritária, ao contrário, manipulada pela propaganda anticomunista, reagira furiosamente à bandeira das reformas. Pior: através de suas lideranças, batera às portas dos quartéis pedindo a deposição do presidente constitucional, na expectativa de que, afastado Jango, as Forças Armadas entregassem aos políticos de direita o comando do país. Não foi isso, porém, que aconteceu. Deposto o presidente, a cúpula militar organizou uma ditadura que não só esmagou a esquerda, as forças democráticas e as organizações populares, como, em pouco tempo, marginalizou ou relegou a posições decorativas líderes como Carlos Lacerda, Magalhães Pinto e Adhemar de Barros, que haviam apoiado o golpe. A constituição da Frente Ampla, em 1967, reunindo Goulart, Lacerda e Juscelino Kubitschek, em torno de uma plataforma centrada na redemocratização do país, de certa forma já indicara que os dois segmentos da classe média haviam voltado a juntar seus trapos. Apesar dos ressentimentos e cicatrizes, estavam novamente sob o mesmo teto. Evidentemente, esse fato constituiu um tremendo impulso para o movimento estudantil. Em suas casas, de modo crescente, os jovens foram encontrando mais compreensão para seu sentimento contrário à censura, à falta de liberdade, ao obscurantismo, à mediocridade intelectual, à repressão. Em decorrência, nas salas de aulas, nos corredores, nas cantinas e refeitórios universitários, diminuiu o preconceito anticomunista e aumentou a troca de idéias. Rapazes e moças de formação conservadora abriram-se para as opiniões e os argumentos de seus colegas de esquerda. O resultado é que, em 1968, quando o movimento estudantil saiu às ruas e enfrentou a polícia, a classe média, em sua maioria, já tinha deixado para trás a divisão de 64. Ficou ao lado de seus filhos. O terceiro casamento foi um enlace em escala planetária. As lutas estudantis no Brasil uniram-se ao furacão que atravessou o mundo naquele ano. Abruptamente, no Primeiro Mundo, chegou ao fim o período de relativa apatia política que se seguira ao fim da II Guerra: Maio em Paris, revoltas estudantis na Alemanha, na Itália e na Inglaterra, movimentos contra o racismo e a guerra do Vietnã nos Estados Unidos, violentos protestos de rua em Tóquio. O bloco socialista também passou por um momento dramático, com a invasão da Tchecoeslováquia, onde o Partido Comunista local tentava conciliar socialismo com liberdade. Enquanto isso, no Terceiro Mundo, os movimentos de libertação nacional colecionavam vitórias atrás de vitórias, mostrando ao mundo que os tempos eram outros. A ofensiva do Tet (ano novo budista) no Vietnã, semeando a pânico entre as tropas norte-americanas, deixou claro que o triunfo do Vietcong era uma questão de tempo. Esse turbilhão internacional produziu um caldo de cultura propício para o surgimento e o crescimento do movimento estudantil no Brasil. Mas, nem de longe, a luta por aqui foi um reflexo do que se passava lá fora, tanto que as primeiras grandes manifestações no Rio ocorreram em fins de março, bem antes, portanto, do Maio francês ou da Primavera de Praga. Pessoalmente, creio que bem maior, no coração e na mente dos jovens brasileiros, foi o impacto da ofensiva do Tet. Há anos seguíamos os vaivéns da guerra no Sudeste Asiático. Conhecíamos de cor e salteado os rios, cidades e bases militares mais importantes do Vietnã, como Mekong, Hué, Da Nang ou Khe San, ou os nomes de seus líderes: Ho Chi Min, Le Duc Tho ou Vo Nguyen Giap. Torcíamos pelos guerrilheiros que enfrentavam chuvas de napalm, agentes químicos desfolhantes e bombas de última geração. Impressionava-nos a firmeza de Hanói diante dos bombardeios diários dos B-52. Por isso mesmo, vibramos quando o Vietcong, da noite para o dia, irrompeu no coração de Saigon e no perímetro defensivo das base militares americanas. Se os vietnamitas podiam vencer a mais poderosa máquina de guerra do mundo, por que o povo brasileiro não poderia derrubar a ditadura? E assim chegamos ao último dos quatro casamentos, o que se deu entre o movimento estudantil e o impulso de renovação dos valores da sociedade - renovação num sentido bem amplo: dos costumes, da moral, dos padrões artísticos, dos modos de pensar e de se comportar. Talvez por ter se chocado tão frontalmente com a ditadura, o ME acabou sendo o estuário de um processo de mudanças muito mais amplo e profundo que se desenvolvia tanto no Brasil como no exterior. As saias subiam, os cabelos cresciam, a pílula se popularizava, os padrões sexuais se transformavam, os modelos tradicionais de casamento e educação familiar entravam em crise. As artes e a literatura buscavam novos caminhos, e os intelectuais e artistas descobriam que o mundo era muito maior e mais surpreendente do que eles imaginavam - e muito mais cheio de esperança. Vivia-se um tempo de mudanças, no qual tudo era possível - ou, pelo menos, tudo parecia possível. O casamento entre a ação política e a revolução dos valores manifestou-se, é claro, de forma distinta em cada país. As questões comportamentais, por exemplo, tiveram maior peso na Europa do que no Brasil e no México, onde a repressão política estava no centro das atenções. Basta lembrar que os protestos na França começaram com os estudantes de Nanterre insurgindo-se contra a proibição da livre circulação entre os alojamentos masculinos e femininos da universidade. No Brasil, tiveram início com a morte à bala de um secundarista durante uma manifestação contra o fechamento de um restaurante estudantil. Ou seja, as realidades da Europa e da América Latina eram bem diferentes. Mas mesmo assim, também no Brasil, o movimento estudantil em 68 foi expressão e desaguadouro da agitação comportamental e da efervescência cultural que atravessava a sociedade. Não é à toa que as grandes manifestações atraíram escritores, atores, músicos, cineastas, jornalistas, artistas plásticos, mitos sexuais, intelectuais performáticos e iconoclastas de carteirinha. “É proibido proibir”, cantava Caetano. E como, na época, nada era mais proibido do que gritar “abaixo a ditadura”, quem estava contra alguma coisa ou queria mudar o mundo de alguma maneira sentia-se em casa numa passeata. Até agora falei sobre os casamentos. Passo agora ao divórcio. A explosão de 68 foi fruto também de uma profunda ruptura entre a juventude e a política tradicional. Em vão se buscará entre os participantes mais ativos do movimento alguém que pensava em fazer carreira política, em se candidatar a deputado, em disputar um mandato de vereador. O golpe de 64 havia aberto um fosso enorme entre os jovens e os políticos, sem exceção. Os políticos de direita eram os mais execrados - duplamente mal vistos, porque eram políticos e porque eram de direita. Haviam apoiado o golpe e a repressão. Se estavam tomando distância da ditadura naquele momento, era porque não lhes restava outra alternativa: simplesmente haviam sido lançados ao mar pelos donos do poder. Não dava para confiar neles, portanto. Em relação aos políticos democráticos, progressistas ou de esquerda, a desconfiança era de outra natureza. Eles haviam sido derrotados em 64 sem esboçar qualquer resistência. Prometeram ao povo uma vida nova, mas, na hora H, deixaram-no sozinho. Refugiaram-se nas embaixadas, caíram na clandestinidade, preferiram aguardar tempos mais amenos. No mínimo, haviam se revelado ingênuos e despreparados. Por que os jovens, então, deveriam levar em conta os seus conselhos? Se havia hostilidade contra os políticos, mais intensa ainda era hostilidade contra as instituições políticas criadas ou toleradas pela ditadura. A partir de 1965, quase todas as organizações atuantes no ME, à exceção do Partido Comunista, pregavam abertamente o voto nulo contra o que se classificava de farsa eleitoral. Embora, aqui e ali, houvesse contatos respeitosos entre os dirigentes estudantis e alguns poucos parlamentares do MDB, o partido como um todo era visto como um joguete nas mãos dos militares, criado com o único objetivo de ajudar a botar de pé um simulacro de Congresso e um arremedo de democracia. Mas o divórcio entre os jovens e a política tradicional não parava por aí. Tinha raízes mais profundas. Nascia de visões radicalmente diferentes a respeito do próprio sentido da atividade política. Para a maioria dos jovens que conduziram o movimento estudantil em 1968, a política só tinha dimensão moral se estivesse direcionada para a mudança na sociedade, e não para a conquista de cargos e posições. Buscava-se “servir ao povo”, como dizia Mao Tse Tung, e não se servir dele para atingir objetivos pessoais. Política era sacrifício, sacerdócio, entrega. Valia a pena? Fazia sentido? Claro. Afinal, não estávamos apenas querendo mudar o mundo. Também acreditávamos que era possível criar um homem novo, a começar por nós mesmos. Tudo somado, era imenso - e, naquele momento, intransponível - o fosso aberto entre os jovens rebeldes e os políticos tradicionais. Para nós, eles eram peças de museu. Para eles, éramos seres de outro planeta. Esse divórcio foi decisivo para que o ME em 1968 tomasse o rumo que tomou. Como não se sentia com amarras no passado, podia botar todas suas fichas no futuro. Daí veio, em boa parte, sua espetacular energia transformadora. Daí veio também, mais tarde, quando bateu no muro do AI-5, sua incapacidade para adaptar-se à realidade e buscar novos caminhos. Mas essa já é uma outra história e fica para uma outra vez. Esse prefácio já se alongou demais. Vamos ao livro. Vamos a Brasília, 1968, de volta para o futuro - um futuro que nunca chegou, perdeu-se em algum lugar e, infelizmente, ninguém sabe hoje onde pode ser encontrado. Franklin Martins Brasília, 1º de maio de 2001

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