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11.A mudança é grande vencedora das eleições

A mudança é grande vencedora das eleições


01.10.2002



Segue abaixo a íntegra da entrevista dada pelo colunista à revista TRIP, publicada no início de outubro de 2002. Nela, fala-se sobre temas atuais - as eleições presidenciais, a política no Brasil, a mídia, e passados - a luta contra a ditadura, os anos de chumbo e a militância política. Franklin Martins não quer dar entrevista. Embora seu rosto apareça diariamente na televisão, tem medo de virar celebridade. Primeiro porque a condição não lhe cai bem pessoalmente. Depois porque sua cadeira de importante comentarista político na Rede Globo exige certa formalidade que não combina com a falta de cerimônia do estrelato. Franklin é um cara sério. Nesse intuito de permanecer discreto, ele é um verdadeiro sucesso. Tanto que somente as pessoas da sua geração sabem que o capixaba Franklin Martins, 54 anos, combateu ferozmente a ditadura militar, com arma na mão e tudo. Líder estudantil no Rio de Janeiro, foi um dos principais articuladores do famoso seqüestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick em 1969. É de sua autoria o texto-manifesto que rádios, jornais e TVs foram obrigados a tornar público e no qual um Franklin foribundo advertia: “Quem prosseguir torturando, espancando e matando, ponha as barbas de molho. Agora é olho por olho, dente por dente”. Parte dessa bem-sucedida discrição deve-se ao fato de ele ter sido eliminado da história por Fernando Gabeira em seu livro O que É Isso, Companheiro?, e reduzido a personagem menor na sua adaptação para o cinema. Quem vê o Franklin ali, ladeado pela bela Ana Paula Padrão e envolto pelas marcas d’água de Hans Donner, custa a crer que ele esteve um dia com a barriga no capim, treinando guerrilha rural na Cuba de Fidel. Exilado primeiro no Chile e depois na França, voltou clandestino para o Brasil, onde se escondeu atrás de um RG falsificado e um bigodinho ralo. Assim, nesse styling, conquistou o coração da militante Ivanisa Teitelroit, sua companheira até hoje, mãe de dois dos seus três filhos. Quem olha para o presente de Franklin e sabe sobre o seu passado pode ficar com a impressão de que o homem desistiu da luta e vestiu o crachá do inimigo. De Sierra Maestra para os escritórios da Globo em Brasília a viagem é bem longa, mas ele cumpriu o percurso com a dignidade de sempre. Há quatro anos comenta política na emissora e jura jamais ter sofrido censura ou ter sido obrigado a este ou aquele posicionamento. (Sejamos justos, é verdade que até o fechamento desta edição a Globo tem se esforçado para não favorecer este ou aquele candidato na cobertura das eleições.) Franklin, apesar do terno, da gravata e das marcas d'água de Hans Doner, segue um sujeito inquieto. Ele não quer dar entrevista, mas sente que é uma oportunidade de contribuir para a politização da juventude, tão perigosamente alheia ao jogo dos partidos. Não quer falar do passado porque acaba envolvendo questões pessoais, e a exposição delas pode aproximá-lo das abomináveis celebridades. Mas ele sabe que a sua luta é um exemplo de ação a favor da cidadania. Falar dela é levá-la adiante. Então, a seguir, a entrevista. TRIP: Você é da mesma idade que o meu pai. Ele e os amigos sempre falaram de política com a mesma empolgação com que se fala de futebol. Por que isso não acontece com os jovens de hoje? Franklin Martins: Talvez o jovem hoje esteja um pouco desconfiado da sua capacidade de influir no mundo da política. A minha geração, com toda a agitação política da época, achou que podia assaltar o céu. Evidentemente, conquistou uma série de coisas, mas não foi tão bem-sucedida. Ela passou para a geração seguinte que não adianta ir com muita sede ao pote. Mas não estou entre aqueles que acham os jovens de hoje alienados. Eles se interessam pela política, mas talvez pouco pela política partidária e mais por política de comportamento — meio ambiente, liberdade sexual, racismo, etc. Há mais pontos na agenda do que havia na minha época, quando tudo convergia para a luta contra a ditadura. Hoje as pessoas podem viver mais sem fazer a política tradicional. Naquela época, elas eram obrigadas a fazer política diretamente para não serem esmagadas. TRIP: Deixar de lado Brasília e a política dos partidos não pode ser em certa medida uma atitude perigosa? Franklin Martins: É um risco sério. A política tradicional é muito chata e, especialmente no Brasil, tem códigos muito defasados e com apelo quase nenhum. Isso é um problema em todo o mundo. Acontece que ainda não inventaram coisa melhor para você, periodicamente, sacudir o balaio e definir mais ou menos a cara do jogo do que o processo eleitoral, a participação e a representação política. Se você disser que só vai cuidar do meio ambiente, ou ficar naquela de que "não quero saber de Congresso", "Brasília é um nojo", vai ficar fazendo política de forma periférica. Não adianta: o poder se decide nas instituições. A gente não pode querer substituir a democracia, ou achar que as ONGs, tocadas por iluminados, conduzem o mundo. Isso não existe. É preciso entrar na questão política propriamente dita. TRIP: Então vamos a ela. Você acha que, no caso específico de um candidato a presidente, uma pessoa que vai representar o povo em sua máxima instância, o marketing político é um jogo válido? Não é anti-ético o candidato se esconder atrás de um layout como um produto? Franklin Martins: Eu não acredito nisso do jeito que se fala. Os marqueteiros políticos são excepcionais fazendo marketing deles próprios. Criaram um mercado de trabalho extraordinário para eles, dando a entender que decidem eleições. Não decidem coisa nenhuma. Eles lêem as pesquisas, tiram determinadas conclusões do que o eleitorado está querendo — exatamente como se faz com sabonete, refrigerante e margarina — e devolvem um produto. São ferramentas muito inte-ressantes, tudo bem. Só que alguma vez perguntaram para o público se ele estava precisando de um disk-man? Se perguntassem, ele diria: "Não e jamais compraria um disk-man". No entanto, quando lançaram o disk-man, foi um sucesso. O marqueteiro, de modo geral, responde à demanda, àquilo que o eleitor diz que quer. Mas quem disse que o que esse eleitor diz é o que ele quer? TRIP: Então você não acredita na eficiência do marketing? Franklin Martins: Quando você está vendendo sabonete, é um sabonete contra outro. Os sabonetes não são vivos, não brigam entre si. Meu pai sempre dizia que o bom de campanha política para a democracia é que existe o adversário — o povo esquece dos defeitos do candidato, o adversário lembra. Então, o Serra vira o candidato do emprego por obra de um marketing bem-feito. Mas vêm os adversários para lembrar: ele é o candidato do governo. Quando os marqueteiros são competentes, atuam nas janelas de oportunidades. Mas as grandes decisões cabem aos políticos mesmo. O cara não consegue se esconder durante toda a campanha. TRIP: Os candidatos que a gente está vendo hoje são eles de verdade ou tem alguém conseguindo se esconder? Franklin Martins: Quem é quem? Ninguém sabe. A quantidade de mulheres que só descobre quem é o marido depois de décadas de convívio é enorme. Mas os políticos que disputam o cargo de presidente estão superexpostos, levando porrada de tudo que é lado, com adversários pulando na jugular deles, cachorros perdigueiros correndo atrás - os podres tendem a vir à tona. Cabe ao eleitor fazer a triagem. E ele faz. Não tem um tipo em São Paulo que diz: "Não me importa se o Maluf é ladrão, mas é um cara que faz"? Ele escolheu um defeito com o qual convive e uma qualidade que acha importante. TRIP: Nesse sentido, você acha que a baixaria no debate é uma coisa bem-vinda, reveladora? Franklin Martins: Não gostei daquele debate na Record [com os presidenciávies, em 2 de setembro], achei a baixaria demais. Um pouco de sangue quente é bom, mas aquilo ali foi usado intencionalmente por quase todos os candidatos para fugir das questões. O Lula ficou limpo, na linha paz e amor, não respondeu sobre nada — só falou que o Brasil é grande, o povo é maravilhoso, o que também é uma forma de fugir das perguntas. Isso irritou a muitos telespectadores. É verdade que o povo gosta de porrada. Se tiver duas mulheres rolando na lama, ele pára para ver, morre de dar risada. Depois vai dizer: "São umas vagabundas". Os candidatos rolaram ali, a gente morreu de dar risada, mas saiu dizendo: "Pô, são uns vagabundos, será que algum deles merece ser presidente do Brasil?". Nesta campanha, as promessas são mais ou menos iguais. Para poder escolher entre um e outro, você é obrigado a fazer o que chamo de uma sintonia fina. Isso o obriga a ser mais crítico, o que faz destas eleições um processo mais maduro e politizado. Tem menos espaço para salvador da pátria na parada. TRIP: Você acha que os candidatos são preparados para descascar o abacaxi que é o Brasil? Franklin Martins: Ninguém está totalmente preparado para enfrentar esse abacaxi, embora o Brasil tenha uma sociedade capaz de lidar com problemas e rapidamente se capacitar a respondê-los. De qualquer forma, os quatro candidatos são pessoas preparadas. O Lula, por exemplo, é extremamente preparado. Querer desqualificá-lo por não ter diploma de curso superior é uma idiotice. Ele foi capaz de construir um partido que é o maior do Brasil, uma grande central sindical [a CUT], relaciona-se com diferentes setores da sociedade. Tudo bem, erra na colocação dos pronomes. Mas e daí? O Fernando Henrique, que é brilhante (há muito tempo o mundo não tinha um presidente academicamente tão preparado), vive tropeçando nas palavras. O objeto direto fica para cá, as preposições saem erradas. Aí aparece um advogadozinho de porta de xadrez e porque tem um diploma acha que é mais preparado do que o Lula. É brincadeira... TRIP: E em relação aos outros candidatos? Franklin Martins: O Garotinho talvez seja menos preparado. Está nos bancos escolares passando sebo nas canelas para entrar na próxima corrida. O Serra é um sujeito preparadíssimo. Seu sucesso no Ministério da Saúde não é uma coisa à toa. Ele sabe cobrar, definir prioridades. O Ciro foi bom governador e bom prefeito. Do ponto de vista do preparo, até que temos sorte. TRIP: O programa eleitoral é um espetáculo muitas vezes bizarro, principalmente na esfera dos que postulam uma cadeira no Congresso. Aquilo é mesmo o espelho do Brasil? Franklin Martins: Outro dia estava vendo uma fita da eleição passada aqui na TV Globo e tinha um sujeito que prometia acabar com a menstruação. Vê se pode... O nível é muito baixo, mas é um retrato, sim, do brasileiro e de suas ambições. Acontece que você acha normal a maneira como o camelô vende bugiganga, mas acha estranho como um camelô da política vende um projeto para o país. Agora, o nosso sistema de representação proporcional no Congresso está falido. Ele só existe no Brasil e na Finlândia. E, como tudo que só existe no Brasil e não é jabuticaba, não dá certo. TRIP: Uma pergunta que desconfio que você não vai responder: em quem você vai votar? Franklin Martins: Não vou te responder mesmo. TRIP: Em quem não votaria de jeito nenhum? Franklin Martins: Em um sujeito fascista, ou esses tipos que defendem tortura, em racistas ou pedófilos. TRIP: Quem vence as eleições? Franklin Martins: Vence a idéia de que o Estado tem de ter uma participação mais ativa na sociedade. O mercado é importante, mas precisa haver um Estado para contrabalançar o seu papel — porque o mercado fortalece quem é mais forte e sempre enfraquece quem é mais fraco. Sai fortalecida a idéia de que a nossa inserção no mundo globalizado não pode ser passiva, tem de ser soberana. Sai fortalecida a idéia de que o Brasil tem de passar por reformas que não estão apenas na instância econômica. A mudança, seja qual for, é a grande vencedora. Você pode dizer: "E se o Serra ganhar a eleição?". Se ganhar, é porque conseguiu convencer o eleitorado de que está comprometido com a mudança, e depois terá de mudar. Mas ninguém está querendo chutar o pau da barraca. Agora, a idéia de que chega de mediocridade é muito forte. TRIP: Sua negativa em dizer em quem vai votar, é claro, tem ligação com sua posição profissional. Mas você se transformou naquele comentarista de futebol que de tão próximo dele já não torce mais para o time que torcia? Franklin Martins: Nunca conheci um comentarista de futebol assim, todos torcem pra burro. Existe gente de todo o tipo, mas, de modo geral, a cobertura política [pela imprensa] não é promíscua com o poder. Um exemplo: o Tancredo ficou doente às vésperas de assumir o poder e 24 horas depois todo o mundo sabia o que ele tinha tido, embora tentassem esconder. Até hoje não sabemos o que houve com o Ronaldinho na véspera do jogo com a França. A política tem algo muito mais contraditório dentro dela, tem sempre o adversário que finge que é amigo mas é inimigo. No Congresso, tem muita cabeça diferente, muito cara vendendo a alma ao diabo para te dar uma informação e aparecer. Outra coisa: eu não tenho ídolos. Não sou tiete de nenhum político, e comentarista de futebol é tiete. Como é que vou falar mal do Zico? Sou Flamengo, sou tiete dele. Agora, não tenho dificuldade em falar mal do Lula, do Fernando Henrique, do Ciro, do ACM. São gente de carne e osso, não ídolos. TRIP: Mas você teve passado de militante na esquerda. Isso não fica como fica um clube de futebol? Franklin Martins: Na minha juventude, tive ídolos. Che Guevara foi um. Aqui no Brasil, Brizola e Arraes. Mas vejo o Brizola de hoje em dia, vejo o Arraes. Não vejo o Che porque o Che morreu. Conseguiu o que é o mais fantástico para qualquer mito: não ser confrontado com a realidade mais tarde. TRIP: Che sobreviveu para você como um ídolo? Franklin Martins: Che teve uma coisa extraordinária: a capacidade de brigar pelas idéias em que acreditava, jogar-se inteiramente atrás delas e pagar todo o preço por isso. Um sujeito que podia continuar ministro, mas não quis ser nada disso. Quis se meter no meio do mato e continuar a brigar. Ele mostrou que os homens existem para algo mais do que conquistar postos e consumir coisas. Foi por isso que simbolizou tanta coisa. Mas, se eu cobrisse o Che Guevara como político aqui no Congresso durante 20 anos, dificilmente ele continuaria com essa bola toda. TRIP: Por que você entrou na luta armada? Foi um misto da história política do seu pai [Mario Martins, jornalista e senador, político de oposição, morto em 1994] com um tanto de Che Guevara? Franklin Martins: Sou um pouco neto da luta antifascista, meu pai se formou nisso e passou para mim. Se há uma coisa com que não consigo conviver, é a idéia da superioridade racial, a truculência, essa coisa de quebrar a resistência de quem não concorda com você pela violência. Não é à toa que me chamo Franklin — é por causa de Franklin Roosevelt. Poderia ter sido Stalin ou Churchill, os três grandes que lutaram contra o nazifascismo. Mas, se sou neto da luta antifascista, sou filho da luta contra a ditadura. Tive uma participação grande no movimento estudantil nos anos de 67 e 68. Ali foi minha escola política. Era uma época de extraordinária ebulição. Tinha a revolução cubana, a idéia da revolução na América Latina, a guerra do Vietnã. Tinha o caldeirão internacional, mas o que me levou à militância política foram as condições da ditadura no Brasil. Você ia fazer um jornalzinho de escola, diziam: "Isso não pode escrever". Aí você retrucava: "Não pode escrever? Então vai ficar em branco para todo o mundo saber que houve censura". Aí chamavam você lá: "O jornal está proibido de circular". "Então vamos fazer greve." Com 15, 16 anos, eu já começava... TRIP: Você participou do seqüestro do embaixador norte-americano e foi procurado na época como assaltante de banco. A que ponto chegou sua militância? Franklin Martins: É preciso botar as coisas no ambiente da época. Por exemplo, nunca usamos a palavra seqüestro — isso apareceu depois. Nós fizemos uma operação de captura do embaixador americano para em seguida promover uma troca de prisioneiros. Seqüestro foi como a operação passou a ser chamada pelos jornais. Tem hoje outra finalidade, outra conotação... Hoje, quem seqüestra é bandido. Na época, o que existia eram centenas, milhares de pessoas, militantes da luta contra a ditadura, dirigentes sindicais e estudantis, intelectuais que estavam sendo presos, torturados e mortos. O Sobral Pinto, advogado católico, dizia que o seqüestro foi o único habeas corpus eficiente que existiu durante a ditadura. Então, para nós, não havia seqüestro, mas uma troca de prisioneiros, como não se roubava uma metralhadora — você expropriava uma arma. Não se roubava banco, expropriava-se um banco. Roubar banco dá impressão de apropriação pessoal do dinheiro. Nas expropriações, esse dinheiro ia direto dos cofres do banco para financiar a guerrilha, comprar armamento etc. Não participei de assalto a banco, mas participei de expropriação de carro pagador, por exemplo. TRIP: Você participou logisticamente ou foi com arma na mão e tudo? Franklin Martins: Não gosto de entrar em detalhes, não gosto da idéia de fazer de minha participação na luta contra a ditadura um troféu. Não gosto desse tipo de comportamento. O que fiz, se eu tivesse 20 e poucos anos e o Brasil vivesse sob uma ditadura, provavelmente faria de novo. Não me arrependo, tenho orgulho, foram talvez os anos mais fecundos da minha vida. Mas não gosto de ficar dizendo: "Eu fiz isso, fiz aquilo, fiz mais do que você". Quem arriscou a vida naquele momento, independente se fez mais ou menos, fez o bastante, o que tinha de ser feito. Posso contar tudo o que fiz para os meus filhos e um dia vou poder contar para os meus netos. Já as pessoas que operavam os centros de tortura se escondem. Eu posso falar livremente. Queria saber quantos dos que estavam do outro lado podem fazer o mesmo. Eles vão viver eternamente na clandestinidade. TRIP: Você chegou a ser torturado? Franklin Martins: Não. Só fui preso. TRIP: Você treinou guerrilha em Cuba. Como foi a experiência? Franklin Martins: Foi um período duríssimo. Fiquei 11 meses em Cuba, dos quais oito ou nove no meio do mato, na província de Pinar del Rio, tendo aulas de armamento, explosivo, túneis e principalmente tática militar. Aquilo tudo ali, se for trocar em miúdos, não adiantou grande coisa. Somente descobri uma coisa: que seria capaz de sobreviver na selva. Da minha turma de treinamento, que eram 29 pessoas, 15 morreram sob tortura ou em combate no Brasil. Tudo num espaço de tempo muito pequeno. Sobrevivemos alguns. O Zé Dirceu é um deles. TRIP: O presidente do PT? Franklin Martins: Sim. Treinei guerrilha e estive preso com ele. O Dirceu era um guerrilheiro marca barbante [risos]. TRIP: Guerrilheiro marca barbante? Franklin Martins: É uma expressão antiga, significa de "qualidade duvidosa". Eu também era marca barbante [risos]. TRIP: De Cuba você veio direto para o Brasil? Franklin Martins: Morei um tempo no Chile, na época do Allende, e depois voltei para o Brasil, fiquei clandestino algum tempo. Daí as coisas começaram a cair muito perto de mim e fui para a França. Fiquei três anos, voltei para o Brasil, de novo clandestino. Ao todo levei cinco anos e meio no exílio. TRIP: É verdade que você só saía durante a noite em São Paulo quando esteve clandestino? Franklin Martins: No final, em 78 e 79, já saía mais de dia. Mas em 73 e 74, só saía à noite, durante duas horas, e voltava. Vivia num apartamento fechado, uma coisa extremamente difícil, solitária, doída. O exílio na França, porém, foi o mais difícil. Lá me formei na Escola de Altos Estudos em ciências sociais da Universidade de Paris, mas para mim não teve importância nenhuma — é um diploma que hoje está na gaveta, nem uso. Levei 15 anos para voltar a Paris. Virou trauma. TRIP: De militante da esquerda na luta contra a ditadura, você se transformou hoje no comentarista político mais importante da Rede Globo. Você sente isso como alguma coisa contraditória na sua existência? Franklin Martins: É uma coisa que tenho extremamente bem resolvida. Em 81 ou 82, saí da clandestinidade, mas ainda era uma vida semiclandestina — não sabia se a ditadura voltava ou não. Nessa época, cheguei à conclusão de que tinha cometido durante a minha militância alguns erros. De certa forma, eu havia errado porque não tinha contato de verdade com a realidade. Daí tomei uma decisão: “Vou ter uma vida o mais normal possível a partir de agora”. TRIP: Você falou em erros que cometeu. Quais erros foram esses? Franklin Martins: A luta armada foi um erro. Em vez de ter ajudado o povo a se organizar, ela colocou uma forma de luta em que o povo não podia participar, só assistir. Quem havia de mais disposto, decidido e determinado foi para a luta armada, mas era uma minoria, afastou-se do povo e foi massacrada. TRIP: Tem algum erro pontual que você tenha cometido, tipo matado alguém? Franklin Martins: Tive dois privilégios. Primeiro, nunca fui torturado, embora estivesse submetido a uma tortura interna o tempo todo — vivia me preparando para ser preso e ser capaz de morrer na tortura sem abrir a boca. Segundo, nunca tive de atirar em alguém. Seria uma violência terrível: racionalmente, você pode ter resolvido isso, mas emocionalmente ninguém sabe como se comportará se o problema for colocado, e tampouco como reagirá posteriormente. TRIP: Voltando à pergunta: há alguma contradição entre o seu passado e o seu presente? Franklin Martins: É muito difícil a readaptação de quem vem do exílio. É uma geração, repito, que tentou assaltar o céu e de repente tem que viver as mazelas do cotidiano, volta para o Brasil achando que vai ser recebida como herói e descobre que terá de levar uma vida comum, sem maiores reconhecimentos. Muitas pessoas tiveram dificuldade de adaptação. Eu decidi o seguinte: "Não vou ficar marginal, a vida está recomeçando". Hoje, sou muito tranqüilo e bem resolvido: acho que a Globo, como eu, também mudou. Sou um bom profissional e a Globo é um bom lugar para se trabalhar. TRIP: Seus companheiros de antigamente já o questionaram pela sua escolha? Franklin Martins: Pode ser que um ou outro tenha reparos a isso, mas nunca vieram me dizer. Se viessem, eu retrucaria: "Por que não posso trabalhar na Globo e você pode ser professor de uma universidade?". Não vejo diferença. "Por que não posso trabalhar na Globo e você pode ser de uma ONG financiada por uma igreja presbiteriana?" O que importa é que faço o meu trabalho com dignidade. Boto a cabeça no travesseiro e durmo. Não vejo problema, não me considero um sujeito que passou por cima do que fez. Ao contrário, de certa forma continuo fazendo na minha profissão o que sempre fiz. Continuo indignado com a injustiça social. TRIP: Você acha que a Globo tem o poder que se diz a respeito dela na decisão do jogo político? Franklin Martins: Jornais, rádios e televisões vivem da audiência que têm, da vendagem, da publicidade. Todos disputam o mesmo público. Portanto, têm de vender o jornal para quem é do PT, do PSDB, do PTB, do PMDB, para quem não tem partido, para quem acha todo partido uma nojeira. Se não fazem isso, se dão mal e percebem logo, porque perdem público. A Globo tem um enorme poder porque é líder de audiência num país que vive grudado na televisão. Uma entrevista com os candidatos a presidente é assistida por 30 e poucos milhões de pessoas, uma coisa impressionante. Mas não creio que ela faz presidente. Se fosse isso, o Brasil não tinha tido o percurso que teve. TRIP: Você comentou há pouco que a Globo também mudou. Você acha que a história da edição do último debate entre Lula e Collor pela Globo [veiculada no Jornal Nacional] foi decisiva para o resultado daquela eleição? Franklin Martins: Eu não estava na Globo na época e, portanto, não posso falar sobre o assunto. Mas pessoalmente não acho que o Lula perdeu a eleição por causa da edição do debate. Aliás, o Lula foi melhor do que o Collor no primeiro debate e pior no segundo, no último. A meu ver, ele perdeu a eleição porque um segmento dos eleitores que estava encarando seriamente a possibilidade de votar no candidato do PT, na hora H, recuou, ficou com medo, não se sentiu seguro e acabou apoiando Collor. Não era tanta gente, talvez uns 2% ou 3% do eleitorado, mas esse segmento decidiu a eleição. Voltando à Globo, o que percebo é que ela, como qualquer emissora, qualquer jornal, qualquer rádio, tem consciência de que precisa ser plural. A cobertura que ela está fazendo das eleições deste ano mostra isso. É muito boa, jornalismo de primeira qualidade. TRIP: Franklin, você se sente poderoso? Franklin Martins: Não. Vou contar uma história que me deu muita humildade. Fazia um ano ou dois que eu estava fazendo comentários na Globo. Um dia fui tomar um mate gelado, o vendedor olhou para mim e perguntou: "O senhor não é o Joelmir Betting?". Eu: "Não, não sou não, você está enganado". Ele olhou, foi lá, pegou o mate e voltou: "O senhor me desculpe, mas o senhor é a cara do Joelmir Betting". "Mas não sou o Joelmir Betting." Paguei, o cara foi lá, pegou o troco, virou e disse assim: "Sabe o que mais impressiona? A sua voz é igualzinha à do Joelmir Betting". Aí eu disse "tchau", ele disse "tchau" e emendou: "O senhor pode dizer que não, mas para mim o senhor é o Joelmir Betting". Ele tinha gravado a minha imagem, mas não sabia quem era eu, o que tinha falado, não lembrava nada. Aprendi ali que você não é poderoso, quem é poderoso é o instrumento. TRIP: Você sofre alguma censura interna da empresa? Franklin Martins: Nenhuma. Raríssimas vezes algum comentário meu provocou alguma reação e, quando provocou, foi sempre um comentário, uma troca de idéias — "Você pegou muito pesado aqui, eu não concordo com você naquilo". Nunca foi uma censura ou um reparo. Como colunista, minha liberdade é total na Globo. O mais difícil para um comentarista político como eu não é ficar contra quem é poderoso. Difícil é ficar contra a opinião pública, porque a pressão é imediata e vem uma tentação danada de a gente se acovardar. Procuro me manter íntegro, dizer o que penso, mesmo quando sei que vou levar porrada do leitor, do telespectador. Prefiro apanhar dele a seguir a opinião pública, quando discordo dela. Se você acha que ela está errada, é muito medíocre abaixar a cabeça. TRIP: Qual foi o candidato a presidente que mais deu trabalho a você e à Ana Paula Padrão no ciclo de entrevistas que fizeram com eles? Franklin Martins: O sujeito que chega a candidato a presidente da República é cobra criada, então é sempre difícil entrevistá-lo. Mas para eles também não é fácil ser entrevistado no Jornal da Globo ou no Jornal Nacional. O sujeito senta numa bancada ali no telejornal, na casa dos outros, cercado por uma parafernália que não domina, que de certa forma é hostil, sabendo que vai ser submetido a perguntas incômodas e do outro lado tem milhões de pessoas — algumas querendo te ajudar, outras querendo ver teu sangue. Por isso todos os candidatos estavam muito tensos. O Lula, quando acabou a entrevista, comentou: "Vocês não sabem como é difícil estar aqui, sentado dentro da Globo, dando uma entrevista para vocês, para duas feras do jornalismo". Depois que acabou, ele demorou uns 30 segundos para se levantar da cadeira. TRIP: E você, como se sentiu? Missão cumprida? Franklin Martins: Foi cansativo e tenso, mas também interessante. Profissionalmente, aprendi muito naqueles dias. Mas nada de missão cumprida. No segundo turno, tem mais. E depois vem a posse do novo presidente, a formação do ministério, o funcionamento do Congresso, os primeiros cem dias, e aí começam as crises, as negociações, uma nova etapa da luta política, e por aí vai. E eu continuarei correndo atrás de notícias. Não posso me queixar. Gosto do que faço.

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