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10.Governo Lula: coalizões políticas e urgências sociais

Governo Lula: coalizões políticas e urgências sociais


01.12.2002



Há muito tempo, logo depois da queda do presidente Fernando Collor, o deputado Ibsen Pinheiro - na época ele era presidente da Câmara dos Deputados, depois foi cassado naquela leva do escândalo dos anões do Orçamento, era um político brilhante e um grande analista político - disse, durante um almoço com jornalistas, algo que me pareceu surpreendente: embora Collor tivesse sofrido um impeachment, sua agenda continuava na mesa e teria de ser cumprida pelo próximo governo, fosse ele qual fosse. E acrescentou: a política é uma coisa curiosa; às vezes quem realiza um programa não é o partido que o propõe, mas seus adversários - às vezes os fatos e a dinâmica da política têm uma força tal que se impõem a todos os partidos. Ou seja, os políticos não fazem exatamente aquilo que publicamente dizem que farão - muitas vezes até com sinceridade, honestamente, mas sim aquilo que o jogo político, o amadurecimento da sociedade e o conflito entre os diferentes interesses permitem. Pessoalmente, estou convencido de que Lula, se for bem-sucedido, fará aquilo que Fernando Henrique gostaria de ter feito e não fez: um governo social-democrata. Não falo isso para diminuir a importância do que Lula poderá ou não fazer, até porque, se tivermos um governo social-democrata sério durante quatro anos, o país poderá passar por transformações importantíssimas. Na prática, o programa do PSDB - o Partido da Social Democracia Brasileira - ficou em segundo plano no governo Fernando Henrique, porque a tarefa que ele cumpriu de fato foi aquela que o governo Fernando Collor deixou pendente: o processo de ajuste da economia, da reforma do Estado e de abertura do país. Embora a agenda de Fernando Henrique não fosse a de Collor, ele teve de cumpri-la. A meu ver, a agenda que Fernando Henrique gostaria de ter cumprido ficou para Lula - e é uma agenda social-democrata. E o que é uma agenda social-democrata num país como o nosso? Em primeiro lugar, implica o Estado voltar a ter muito mais peso na vida social e na vida econômica do que nos últimos tempos, funcionando, de certa forma, como um contrapeso às forças livres do mercado. O mercado produz desigualdade o tempo todo. É da natureza do mercado, ele fortalece quem já é forte e enfraquece quem já é fraco. No mercado, as pessoas não valem a mesma coisa, valem quanto têm, quem tem um milhão vale mil vezes mais do que quem tem mil reais. O mercado, portanto, reproduz e acelera a desigualdade. Já o Estado intervém justamente para equilibrar essa situação. Pelo menos teoricamente, na composição da direção do Estado, ou seja, na formação do governo, todos nós valemos a mesma coisa: o meu voto vale a mesma coisa que o de um gari, ou o do Antônio Ermírio. Tudo bem, na prática, as coisas não funcionam exatamente assim, mas, de qualquer forma, nos mecanismos políticos, as multidões têm mais espaço para fazer valer sua opinião. Posto isso, pode-se dizer que haverá maior presença do Estado, contrabalançando um pouco a liberdade sem freios do mercado. Em segundo lugar, a intervenção do Estado deverá ter o objetivo de promover distribuição de renda. Em terceiro lugar, o Estado trabalhará para diminuir a desigualdade regional. Por último, o Estado brasileiro provavelmente se comportará de forma mais ativa e soberana no processo de inserção do nosso país no mundo globalizado, porque não adianta discutir se vamos ou não aceitar a globalização, que é um processo objetivo, a questão está em como vamos nos inserir neste processo de globalização: se de uma forma passiva, deixando que as forças do mercado atuem livremente - e nesse caso, vamos fortalecer quem já é forte, os Estados Unidos, a União Européia e o Japão, ou se de uma forma ativa, brigando de forma mais aguerrida pelos nossos interesses do país, com o objetivo de incrementar o emprego, a renda, a produção. Tudo somado, a meu ver, o que podemos esperar dos quatro anos do governo Lula é uma inflexão de natureza social-democrata no Estado, nos termos em que eu mencionei antes. No entanto, o governo Lula viverá uma importante contradição, que não sei como será resolvida. Na campanha eleitoral, Lula e seus colaboradores mais próximos diziam de maneira muito clara: Não seremos um governo de esquerda, mas um governo de centro-esquerda dirigido pela esquerda". Lula falou isso não sei quantas vezes, e é o que o José Dirceu vive falando. Apesar disso, Lula a trajetória de Lula aponta noutra direção e ela tem um impacto brutal no imaginário da sociedade. Lula é o metalúrgico que se fez líder sindical, que dirigiu as primeiras greves importantes do fim da ditadura, que construiu as bases de um novo sindicalismo e que estruturou o PT, que veio a se converter no mais importante partido do país. Por tudo isso, no imaginário da sociedade, o triunfo de Lula, na sua quarta tentativa numa eleição presidencial, desatou uma onda de expectativa extraordinária. Não é à toa que estamos vendo o Lula virar pop star. Aonde ele vai ,é agarrado, beijado, distribui autógrafos etc, é uma relação extremamente forte. Por que? Porque existe uma expectativa tremenda na sociedade. É mais ou menos como se o povo pensasse assim: "Se fomos capazes de botar na Presidência um sujeito que tinha tudo para não estar lá, também podemos mudar o país." Porque Lula tinha tudo para não dar certo. Mas deu. É um sujeito que nasceu pobre no Nordeste, imigrou, não teve uma família estruturada – pelo menos do ponto de vista convencional, com pai e mãe –, não cursou universidade, foi trabalhador braçal. Em princípio, nas condições do Brasil, estatisticamente, não era para ele ter chegado muito longe. Assim, chegar à presidência da República é um acontecimento extraordinário. E mais: chegar à presidência da República esbanjando confiança, proposta, capacidade de liderança e reconhecimento público, é algo espetacular. Tudo isso desperta, a meu ver, no imaginário da sociedade esperanças bem maiores do que o que Lula poderá realizar dentro dos limites sociais-democratas de seu governo. Mesmo que ele diga que seu governo é de centro-esquerda, na cabeça do povão o que existe é a idéia de um governo que vai mudar pra valer. Essa contradição gera um problema delicado. Em hipótese alguma o governo Lula será capaz de satisfazer, primeiro, a demanda social reprimida no país, que é brutal; e segundo, a expectativa de que agora vamos ter um Brasil novo. Por mais fantástico e competente que venha a ser o governo Lula, ele será incapaz de corresponder a esses anseios. Não vamos ter um Brasil novo daqui a quatro anos. Essa tensão, a meu ver, será permanente ao longo do governo. No início, ela não aparecerá em toda sua força - o primeiro ano de governo é sempre um ano de graça, um período em que todo mundo torce pelo presidente, quem votou nele aplaude entusiasticamente e quem não votou dá um voto de confiança. Não é à toa que recente pesquisa do Ibope registrou - o número pode não ser exatamente este - que 74% dos entrevistados confiam no Lula. Como ele obteve 60% dos votos nas eleições, já teria conquistado mais 14 pontos em termos de confiança. É bom lembrar que Fernando Henrique, nos seus melhores momentos, teve 55% de aprovação. O que Lula tem agora, 74%, é quase unanimidade. É extraordinário. Mas a realidade é sempre mais complicada do que o sonho. Ela oferece limites, os sonhos não. E a realidade é que o governo Lula inicia-se, a meu ver, com um quadro de restrições extremamente fortes. Primeiro, restrições de ordem econômica - estamos numa situação em que a economia está no fio da navalha, não se sabe se avança ou se recua. Temos também restrições de ordem orçamentária - o que o Governo Federal tem de recursos para mexer, para promover programas sociais é muito pouco. Há ainda restrições de natureza política e parlamentar - o governo, com uma maioria frouxa, não poderá fazer tudo o que quiser. E, por último, existem as restrições do cenário internacional - estamos com um louco na Casa Branca, ninguém sabe o que ele vai fazer, mas está claro que ele está doido para iniciar uma guerra contra o Iraque, uma guerra que ninguém pode prever como acabará, se será rápida ou longa, se será vitoriosa ou não, em que patamar jogará o preço do petróleo, que impacto terá no comércio internacional e na economia mundial. Ou seja, são imensas as restrições com que se defronta o governo Lula. Pelo que já deu para sentir até agora, Lula e seus principais colaboradores sabem das dificuldades e fixaram uma estratégia inteligente: escolher dois alvos que ofereçam a possibilidade de resultados significativos a curto prazo, já em 2003 - o programa Fome Zero e o combate ao crime organizado. Colocando o foco e concentrando recursos nesses dois alvos, é possível mobilizar a sociedade e avançar significativamente em áreas de grande impacto. Pessoalmente, acho bastante possível que se obtenha avanços significativos nessas duas áreas. Primeiro, a questão da fome. Não acredito que no Brasil existam quarenta milhões de pessoas passando fome. Essa é daquelas estatísticas em que se chuta tudo lá para o alto para fazer propaganda, o que, na verdade, só dificulta equacionar o problema. Se forem mesmo quarenta milhões, é difícil resolver; mas, se for alguma coisa na faixa de dez ou doze milhões - ainda assim uma indecência, num país como o Brasil, podemos perfeitamente ter os recursos e concentrar as energias para solucionar o problema. Assim, é possível um programa de combate à fome ter êxito num período de quatro anos e dar sinais de que vai deslanchar no primeiro ano, o que teria um grande peso simbólico e daria bastante gás ao governo Lula. Na questão do crime organizado, apesar de não ser minha especialidade, penso que, se o Governo Federal fizer o que não foi feito nos últimos anos, ou seja, oferecer liderança política, o quadro pode mudar bastante. Claro que quem vai operar a polícia são os estados, mas o fato de o Governo Federal chamar para si o problema da violência e colocá-lo como uma questão-chave, pode acarretar uma mudança crucial. Estou convencido de que, mais do que crime organizado, o que existe mesmo no Brasil é polícia desorganizada, isto é, a incapacidade do aparelho do Estado de exercer o monopólio da violência. Quando a questão do combate ao crime fica pulverizada entre estados e municípios, abre-se uma "terra de ninguém". Foi por aí que o crime organizado conseguiu crescer, florescer e ganhar expressão. Eu acho que a decisão política, evidentemente acompanhada de recursos e de uma intervenção séria do Governo Federal, pode produzir mudanças importantes nesse quadro. Isso dá pra fazer. No entanto tudo depende da recuperação da economia. Por que, nesse momento de transição, Lula está pegando tão leve, está tão cauteloso, tão devagar? O senador Aloísio Mercadante elevou o tom outro dia, mas recebeu imediatamente um puxão de orelha e a recomendação para baixar o tom. Na verdade, o núcleo do governo avalia que o Brasil está numa zona fronteiriça; tanto a situação pode "ir para o vinagre" como pode se abrir um círculo virtuoso na economia. O raciocínio é de que, para se abrir um círculo virtuoso na economia, é necessário dar um choque de credibilidade, isso é condição para o dólar cair. Com o dólar caindo, as pressões inflacionárias diminuiriam; diminuindo as pressões inflacionárias, poderia se passar para uma derrubada gradativa dos juros. Só assim se retomaria níveis mais intensos de atividade econômica lá para o final do ano de 2003. Se isso acontecer, o país voltará a crescer, porque fizemos um brutal ajuste das contas externas e as contas públicas estão razoavelmente saneadas - é assombrosa a capacidade de adaptação do Brasil a novas circunstâncias. Se a economia crescer 3% ou 3,5% já em 2004, o governo Lula, do ponto de vista da sustentação política, decolará. Se acontecer o inverso, se a economia começar a entrar num círculo vicioso, se não sair do buraco, serão geradas novas tensões: não haverá dinheiro, não haverá arrecadação etc. Se acontecer uma situação desse tipo, quando chegar o início de 2004, o governo Lula estará com a língua do lado de fora. Então, o desempenho da economia nesse ano de 2003 vai ser crucial para sabermos como o novo governo chegará a 2004. Concluo com a questão da maioria política. Lula terá maioria no Congresso, maioria para votar as questões ordinárias. Os partidos aliados de Lula reúnem, na Câmara, em torno de cento e noventa e poucos deputados. Juntando com o PTB e o PMDB, que, no frigir dos ovos, apoiarão o governo, Lula deverá contar com uma base de 270 a 280 deputados. No Senado, se registrará mais ou menos a mesma proporção. No entanto não será uma maioria sólida, aquela maioria granítica que existia no começo do governo Fernando Henrique. Será uma maioria frouxa, a ser costurada o tempo todo. Quem vai costurar isso? A competência do José Dirceu, do Aloísio Mercadante ou do líder João Paulo? Não. Quem será responsável por essa costura será o estado de espírito da opinião pública. Enquanto a opinião pública estiver dando 74% de aprovação para Lula, a maioria estará garantida - quem tem experiência de casa parlamentar sabe disso, pois o parlamentar, que vive de votos, tende a não trombar com a opinião pública. Então, se o clima se mantiver parecido ao atual, Lula terá maioria tranqüila. Já se o clima desandar, a maioria "vai para o vinagre". O que será crucial para a definição desse clima? O desempenho da economia. Por isso Lula está tão cauteloso. Ao "Lulinha paz e amor" da campanha, sucedeu o "Lula devagar com o andor" do período de transição - calma porque o santo é de barro, pode quebrar. Ou seja, não dá pra fazer muita pirueta. É necessário ir aos poucos ajeitando a situação e fazendo aquilo que os americanos chamam de "soft landing". É preciso aterrissar devagarzinho; tocar no chão suavemente, porque, se despencar e der uma porrada firme no chão, pode desandar. Assim, viveremos em 2003 um ano incerto. O PT, que não tem experiência de direção macroeconômica, terá de dirigir a economia - e o desafio não é fácil nem pequeno. Terá de operar, por um lado, a aterrissagem suave a que me referi antes, mas terá também de produzir ações sociais de envergadura, de impacto, que mantenham viva a relação poderosa de Lula com o imaginário da sociedade. Daí vem sua força na opinião pública. Se ele fizer bem essa química, que é muito complicada, entrará em 2004 embicado para cima. Mas se não tiver sucesso na empreitada, 2003 poderá ser apenas o prelúdio de um 2004 muito agitado. Vamos ver o que acontece.

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