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08.Prefácio do livro " Zarattini, a paixão revolucionária"

Prefácio do livro " Zarattini, a paixão revolucionária"


01.02.2006



Certa vez, disseram-me que quem luta pelas causas de seu tempo e de seu povo é um privilegiado. Entre outras razões, porque tem a possibilidade de conhecer pessoas extraordinárias. Lembrei-me dessa observação, ao sentar-me à frente do computador para escrever este prefácio para a biografia de Ricardo Zarattini Filho, que, em boa hora, José Luiz Del Roio está entregando aos leitores. Porque Zara é uma daquelas pessoas extraordinárias que tive o privilégio de conhecer durante a luta contra a ditadura militar. Há trinta e tantos anos que nossos caminhos se cruzam. Soube de Zarattini pela primeira vez, em setembro de 1969, quando Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo, propôs a inclusão de seu nome na lista dos 15 presos políticos que seriam libertados em troca do embaixador americano Charles Burke Elbrick, capturado numa ação conjunta da Ação Libertadora Nacional e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, que se propunham a derrubar a ditadura através da luta armada. Na reunião, Toledo, um tarimbado militante comunista com quase quatro décadas de lutas nas costas, representava a ALN; eu, então com 21 anos, falava pelo MR-8. Zarattini não podia ficar fora da lista, argumentou Toledo. Era um revolucionário provado, com larga experiência no trabalho de campo, especialmente no Nordeste, onde ajudara a organizar os trabalhadores da cana-de-açúcar. Preso, fora selvagemente torturado, mas não cedera qualquer informação ao inimigo. Quando relaxaram a guarda, fez o que poucos militantes haviam conseguido fazer até aquela época: fugiu da prisão. Meses depois, foi novamente preso, já em São Paulo, e submetido a terríveis suplícios. A polícia evidentemente queria porque queria saber quem o ajudara a escapar do quartel no Nordeste. Mais uma vez, Zarattini fechou-se em copas, segurou a barra e derrotou os torturadores. E assim, por seus méritos, ele entrou na lista, deixou a prisão e o país. Foi para o México e, depois de algum tempo, para Cuba. Meses mais tarde, conheci-o pessoalmente na ilha. Encontrei-o numa ampla e ensolarada casa em Marianao, bairro de Havana onde antes da Revolução moravam muitos dos endinheirados do país. Abandonada pelos antigos proprietários, que haviam fugido para Miami, a mansão servia então de morada e base para cerca de duas dúzias de militantes da ALN que aguardavam o início do treinamento de guerrilha. Ficamos amigos, mas logo nos separamos. Fomos enviados para acampamentos diferentes e, concluído o treinamento, tomamos rumos diferentes. Voltaríamos a nos encontrar – em termos políticos, não físicos – cerca de dois anos mais tarde, em 1972. Junto com outros companheiros da ALN, Zarattini chegou à conclusão de que a luta armada estava derrotada. Era necessário recuar e organizar a resistência nos sindicatos, nos bairros, nas escolas, nas entidades, nos clubes etc, acumulando forças para um novo momento. Na mesma época, desenvolvia-se no MR-8 um processo semelhante de reflexão, autocrítica e correção de rumos. Embora hoje salte aos olhos que, naquelas condições, a insistência na luta armada era um desatino, o óbvio ainda não estava claro para muitos companheiros. O clima ficou pesado e choveram as acusações de derrotistas, covardes ou, para usar a expressão que marcou uma época, “desbundados”. Na ALN, a proposta de correção de rumos não foi aceita, o que levou Zarattini e outros companheiros a deixarem a organização revolucionária fundada por Carlos Marighella. No MR-8, por estreita margem, ela obteve o apoio da maioria. Assim, no início de 1973, retornei clandestinamente ao Brasil para ajudar a reorganizar a resistência à ditadura sob uma nova perspectiva, apoiada no trabalho de massas e voltada para a reconquista das liberdades democráticas. Foi um tempo de absoluto sufoco, de terror generalizado e de aparente congelamento da atividade política. Mas, aos poucos, o país voltou a se mexer. Nas fábricas e nos sindicatos, grupos de trabalhadores se reorganizavam e buscavam apresentar suas reivindicações. Nas escolas, os estudantes, ignorando os dedos-duros e arriscando-se às freqüentes redadas policiais, faziam shows, promoviam atividades culturais, editavam jornaizinhos. Nos bairros, muitas vezes apoiando-se em estruturas da Igreja, grupos se reuniam para discutir os problemas do povo e a situação do país. Na imprensa, especialmente na imprensa alternativa, profissionais sérios tratavam de driblar a censura e, de alguma forma, fazer circular informações sobre a tragédia em que vivia o país. Muito já se falou sobre o heroísmo dos que tentaram assaltar os céus, pegando em armas para enfrentar a ditadura. As homenagens são merecidas, especialmente porque muitos, generosamente, deram suas vidas ou enfrentaram provações terríveis para que o Brasil um dia fosse um país melhor. Mas pouco se falou sobre o trabalho miúdo e anônimo dos que mantiveram acesa a chama da resistência nos anos de pesadelo de 1973 e 1974, quando a ditadura se pavoneava de haver aniquilado toda e qualquer a oposição e parecia inútil enfrentar os donos do poder. Naquelas circunstâncias, os que teimavam em lutar sequer tinham o estímulo da crença numa vitória próxima. Seu objetivo, bem mais modesto, era simplesmente não deixar a peteca cair e impedir, de alguma forma, que a ditadura se consolidasse e o dia de amanhã fosse pior que o de hoje. Manter a bicicleta pedalando, ocupando os claros deixados pelos que estavam nos cemitérios, nas prisões e no exílio – isso era o essencial. Aos que pedalaram naqueles anos de terror, mesmo que por pouco tempo e por curtas distâncias, o país deve muito mais do que se imagina. Em 1974, para surpresa geral, a ditadura sofreu uma fragorosa derrota nas eleições parlamentares. O partido do governo, a Arena, foi vencido pelo MDB. O povo deixou claro que estava calado, mas não satisfeito. A fermentação subterrânea começava a dar frutos e a ganhar a luz do dia. A partir daí, o país não pararia mais de pedalar. Nesse mesmo ano, por pouco não fui preso. Detectada minha presença em São Paulo pela polícia, tive de deixar novamente o país. Em 1975, foi a vez de Zarattini retornar clandestinamente à capital paulista, onde começou a publicar o jornal mimeografado “O Companheiro”, ponto de partida para a criação de uma rede de contatos e a estruturação de uma organização política. No início de 1977, depois de dois anos e meio de exílio em Paris, pude novamente retornar ao país. Meses depois, por insistência de militantes operários ligados a “O Companheiro” e ao MR-8 que trabalhavam juntos no movimento sindical, os dois agrupamentos chegaram à conclusão de que estava na hora de estreitar os contatos entre si. E, assim, um belo dia, Zarattini e eu nos encontramos novamente. Desta vez, em São Paulo, ambos na clandestinidade. Foi uma emoção muito forte. Não só havíamos atravessado o deserto e sobrevivido ao período mais difícil da história de nosso país, como nossas experiências nos haviam levado a ver a situação política de uma forma muito semelhante. A partir daí, passamos a nos encontrar com regularidade, geralmente no bairro do Pari, de manhã cedo, quando era grande o movimento das pessoas chegando às fábricas, escolas e comércio da região. Trocávamos informações e apoios, acertávamos atividades conjuntas, discutíamos a situação política e as perspectivas da luta. Até que numa manhã de junho de 1978, Zarattini faltou ao encontro marcado. Tampouco apareceu no “ponto-de-segurança” previamente acertado para o caso de perda de contato. Dias depois, veio a notícia, terrível: ele havia sido preso e tudo indicava que estava na Operação Bandeirantes, na tristemente famosa Oban. Achei que nunca mais o veria. Afinal, todos os outros banidos que, tendo retornado ao país, caíram nas mãos dos órgãos de segurança, sem exceção, foram executados, depois de comer o pão que o diabo amassou na mão dos torturadores. Mas, felizmente, os tempos já eram outros. As divisões no interior do regime tinham se aprofundado e a luta democrática havia adquirido enorme amplitude. Alertados sobre a queda de Zarattini, os setores oposicionistas de São Paulo reagiram prontamente e, com isso, conseguiram salvar-lhe a vida. Embora mais uma vez ele tenha sido submetido à tortura, não foi assassinado, como temíamos. Ficou preso até a anistia, em 1979, e, ao ser libertado, tornou-se o primeiro banido a sair com vida das prisões da ditadura. Com a anistia, voltamos a nos encontrar, já em condições bem mais favoráveis e, em pouco tempo, a fusão das organizações a que pertencíamos, interrompida com a queda de Zarattini, foi consumada. Nos três anos seguintes, trabalhamos estreitamente juntos. E pude comprovar as enormes qualidades de Zara, como militante e como pessoa. Tornamo-nos amigos para a vida toda. Quando em 1983, depois de um longo e penoso processo de luta interna, cerca de mil militantes decidiram se afastar do MR-8, por considerar que aquela organização havia se convertido numa espécie de linha auxiliar de dirigentes políticos do PMDB, participamos juntos desse movimento. De lá para cá, nossas vidas tomaram rumos diferentes. Com a redemocratização do país, voltei às redações dos jornais, nas quais entrei pela primeira vez aos 15 anos de idade. Zara seguiu sua militância, como ativista político, agitador social e assessor parlamentar, vindo a aportar, depois de muitas idas e vindas, no PT. Suplente de deputado federal, exerceu o mandato em 2004 e 2005 com competência e talento, sempre passando ao largo das firulas parlamentares e concentrando suas energias no estudo e no debate de questões relevantes. Talvez por isso tenha sido menos notado do que deveria. Durante todo esse tempo, mantivemos intacta nossa amizade, apesar de nem sempre pensarmos da mesma forma. Quando arrumamos tempo para botar a conversa em dia – em torno de uma garrafa de vinho, é claro, porque por algo ele é neto de italianos e eu, de portugueses –, costumamos concordar e divergir quase com igual freqüência e intensidade. Mas confesso que aprendi a levar a sério até suas observações mais surpreendentes. Zara, por vezes, bota o chumbo onde pouca gente achou que sequer valia a pena botar o olho. Recordo-me de uma conversa nos idos de 81 ou 82, creio, quando, numa roda de companheiros, perguntei-lhe sobre suas impressões sobre a União Soviética, que visitara anos antes. – Aquilo lá tem problemas muito maiores do que se pensa . E contou que, na sua visita a Moscou, precisou tirar fotocópias de um documento qualquer. Foi uma África. Só conseguiu copiar o papelório depois de várias tentativas, graças a uma autorização especial de um funcionário graduado do Partido Comunista da União Soviética. E arrematou, para a surpresa de todos os presentes, que julgavam a URSS eterna: – Um regime que não pode conviver com uma máquina de xerox não tem muito futuro. O que parecia uma piada ou uma esquisitice, mais tarde mostrou-se profecia. Zara é assim: está sempre de olhos bem abertos para o que acontece à sua volta, captando sinais que, muitas vezes, passam despercebidos aos outros. Essa inquietude de pensamento é sua marca registrada. Tudo bem, são as multidões que transformam o mundo e os partidos são instrumentos indispensáveis nas mudanças, mas não é por isso que ele vai deixar de pensar pela própria cabeça. fevereiro de 2006

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