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03.Prefácio do livro "Estação Petrópolis"

Prefácio do livro "Estação Petrópolis"


01.07.2006



Boa viagem! Quem embarcar nas páginas de Estação Petrópolis terá a oportunidade de fazer uma viagem interessantíssima. Pelas janelas do trem, irão desfilar não apenas as peripécias da vida do médico e político Rubens de Castro Bomtempo, mas também os fatos e acontecimentos mais marcantes da vida nacional entre os anos 1960 e 1980. Aos poucos, o viajante verá se desenhar diante dele um vívido painel do que foi o Brasil naquele período, marcado pela ascensão, consolidação e queda da ditadura militar. Muito já se escreveu sobre o assunto – e muito ainda se escreverá. Mas nem por isso este livro chove no molhado. Ao contrário, num certo sentido, tem sabor de novidade. É que aqui o relato dos acontecimentos não se faz a partir do Rio de Janeiro, de Brasília ou de São Paulo – epicentros do terremoto que abalou e infelicitou o país durante tanto tempo – nem tem origem em regiões afastadas do centros de decisão e, por isso mesmo, de vida política mais rarefeita. A história que se conta a seguir é a de uma cidade média, mas não uma cidade média qualquer, pois Petrópolis, desde sua fundação, foi uma espécie de capital bissexta no país – pelo menos no verão, quando o Imperador e presidentes subiam a Serra do Mar para fugir do intenso calor do verão carioca. Daí vem, sem dúvida, sua forte tradição política, temperada, porém, desde o início por uma aguda sensibilidade para os problemas sociais, devido ao grande número de fábricas instaladas no município. Se nos fins de semana e no verão Petrópolis era um refrigério das elites, durante a semana e nas demais estações do ano era uma cidade marcadamente operária – refinada, mas operária. Foi nessa cidade que o dr. Rubens de Castro Bomtempo, recém-formado, exerceu com paixão sua profissão. Médico de família, especialmente das famílias dos ferroviários da Leopoldina Railway, logo conquistou o respeito e a confiança dos humildes. No contato com os problemas diários dos trabalhadores, despertou para a política e, em 1958, elegeu-se vereador pelo PTB. Quatro anos depois, já era vice-prefeito. Parecia ter à frente uma promissora carreira política. Mas aí veio o golpe militar de 1964. E Petrópolis entrou na linha de tiro do novo regime. Líderes sindicais foram presos; ativistas de esquerda, perseguidos; vereadores, cassados. E, assim, aos poucos, o ambiente na cidade foi se envenenando. Logo, os porta-vozes da elite botaram as manguinhas de fora, os futriqueiros e dedos-duros sentiram-se à vontade para destilar ódios e ressentimentos e, por último, mas não em último lugar, o 1º Batalhão de Caçadores se converteu no principal partido político na cidade. Mas, como o clima de caça às bruxas não foi suficiente para implantar a ordem unida na cidade, em 1966 o governo federal decidiu cassar o prefeito da cidade. Rubens foi, então, alertado para que não tomasse posse na chefia da Prefeitura. Se o fizesse, também seria degolado. Mas ele recusou-se a seguir o conselho. Resultado: duas semanas depois também foi cassado e ainda suspenderam-lhe os direitos políticos por dez anos. E, para seu lugar, foi nomeado um interventor federal. Apesar das truculências, Petrópolis não se rendeu. Nas eleições realizadas meses depois para preencher o cargo vago pela dupla cassação, a cidade demonstrou sua personalidade e independência. Novamente elegeu alguém afinado com seus interesses e não um pau-mandado de Brasília. Mas o novo prefeito também não chegaria ao final de seu mandato. E Petrópolis, em menos de três anos, teve nada menos do que três prefeitos cassados. A reiteração da violência era um sinal claro da incapacidade do regime nascido em 1964 de conviver com qualquer resquício de democracia e com qualquer tipo de oposição a seu poder absoluto. Mas era um sintoma também de que o povo, de uma forma ou de outra, buscava caminhos para resistir. Afastado à força da vida política, Rubens tornou a se dedicar exclusivamente à Medicina, sempre voltada para os trabalhadores. Mas quem disse que a ditadura o deixou em paz? A direção da Rede Ferroviária Federal, onde estava lotado, passou a persegui-lo, transferindo-o de um posto para outro para forçá-lo a deixar a autarquia. De Petrópolis, foi enviado para Estação Barão de Mauá, no Rio; depois, para a Policlínica da Central; em seguida, devolveram-no a Barão de Mauá; mais tarde, mandaram-no para Saracuruna; e, logo, para Magé. Quando recebeu a ordem para se apresentar em Itaboraí, um município totalmente fora de mão para quem morava em Petrópolis, jogou a toalha e deixou a RFF. A via-crucis das transferências forjadas ilustra claramente como se exercia o poder naquele período negro da vida nacional. À truculência no atacado, praticada por Brasília, somava-se a perseguição no varejo a cargo dos chefetes locais, doidos para agradar as patentes mais altas. A mesquinhez, no centro e na periferia, era a marca de poder na época. Não se constroem e se mantêm de pé ditaduras apenas com o concurso de seus chefes. Para se sustentarem elas dependem também de uma legião de puxa-sacos, oportunistas e aproveitadores, espalhados por todo o país. De qualquer forma, Rubens, como o Brasil, resistiu como pôde àqueles tempos sombrios. E, tendo sobrevivido, quando a ditadura começou a fazer água e ele recuperou os direitos políticos, elegeu-se deputado estadual. Mas seu tempo na política, depois de uma década e meia ceifada pelo arbítrio, estava se esgotando. Quatro anos depois, não conseguiu renovar o mandato. O fato é que o país havia mudado. Petrópolis também. Já não era mais a mesma. Até mesmo a estrada de ferro, que desde os tempos de Pedro II ligava a cidade ao Rio, fora desativada. Da combativa classe dos ferroviários, restavam apenas aposentados, com influência declinante na política local. Havia chegado a hora de virar a página. Mas a vida dá voltas. Assim, uma década e meia depois, um de seus filhos – como ele, Rubens; como ele, médico; como ele também mordido pelo bicho da política – foi eleito prefeito da cidade. Um triunfo particular do filho? Uma volta por cima do pai? Uma dobradinha ganhadora dos dois? Passo a palavra ao autor destas memórias: “A vitória de Rubens (filho) foi prova contundente de que a população petropolitana reagiu, mais de 30 anos depois, ao trauma de três cassações de prefeitos escolhidos de forma democrática. Na minha opinião, muitos foram os petropolitanos mais velhos que nunca sepultaram o ultraje imposto pela ditadura ao cassar seus líderes populares. De forma inconsciente, esse sentimento foi sendo transmitido aos mais novos. (...) Essa violência calou fundo na memória”. Por tudo isso, pelo testemunho de Rubens e pela bravura de Petrópolis, vale a pena ler este livro – no fundo, mais um capítulo das memórias da resistência do povo brasileiro à ditadura militar. Em tempo: Rubens é meu primo e Petrópolis, a cidade de meu pai. O que não torna este livro melhor nem pior. Mas muito me honra. Brasília, julho de 2006

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