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Navio Negreiro - Tragédia no mar, de Castro Alves (1868).


1868



Navio Negreiro - Tragédia no mar, de Castro Alves. Íntegra. S. Paulo, 1868 O poema “Navio negreiro”, escrito em 1868, faz parte do livro “Os escravos”, de Castro Alves. Recitado pela primeira vez pelo autor, então com 21 anos, no Teatro São José, em São Paulo, teve excepcional acolhida e foi, a partir daí, uma importante peça na campanha abolicionista que começava a ganhar corpo em todo o país. Transcrito da “Obra Completa” de Castro Alves, da Editora Nova Aguilar, 1997. ‘Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Brinca o luar - doirada borboleta - E as vagas após ele correm... cansam Como turba de infantes inquieta. 'Stamos em pleno mar... Do firmamento Os astros saltam como espumas de ouro... O mar em troca acende as ardentias Constelações do líquido tesouro... 'Stamos em pleno mar... Dois infinitos Ali se estreitam num abraço insano Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?... 'Stamos em pleno mar... Abrindo as velas Ao quente arfar das virações marinhas, Veleiro brigue corre à flor dos mares Como roçam na vaga as andorinhas... Donde vem'?... Onde vai?... Das naus errantes Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço? Neste Saara os corcéis o pó levantam, Galopam, voam, mas não deixam traço. Bem feliz quem ali pode nest'hora Sentir deste painel a majestade!... Embaixo - o mar... em cima - o firmamento... E no mar e no céu - a imensidade! Oh! que doce harmonia traz-me a brisa! Que música suave ao longe soa! Meu Deus! Como é sublime um canto ardente Pelas vagas sem fim boiando à toa! Homens do mar! Ó rudes marinheiros Tostados pelo sol dos quatro mundos! Crianças que a procela acalentara No berço destes pélagos profundos! Esperai! Esperai! deixai que eu beba Esta selvagem, livre poesia... Orquestra - é o mar que ruge pela proa, E o vento que nas cordas assobia ............................................................. Por que foges assim, barco ligeiro? Por que foges do pávido poeta? Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira Que semelha no mar - doudo cometa! Albatroz! Albatroz! águia do oceano, Tu, que dormes das nuvens entre as gazas, Sacode as penas, Leviatã do espaço! Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas. 2.a Que importa do nauta o berço? Donde é filho, qual seu lar? ... Ama a cadência do verso Que lhe ensina o velho mar! Cantai! que a noite é divina! Resvala o brigue à bolina Como um golfinho veloz. Presa ao mastro da mezena Saudosa bandeira acena Às vagas que deixa após. Do Espanhol as cantilenas Requebradas de langu Lembram as moças morenas, As andaluzas em flor. Da Itália o filho indolente Canta Veneza dormente - Terra de amor e traição - Ou do golfo no regaço Relembra os versos do Tasso Junto às lavas do Vulcão! O Inglês - marinheiro frio, Que ao nascer no mar se achou - (Porque a Inglaterra é um navio, Que Deus na Mancha ancorou), Rijo entoa pátrias glórias, Lembrando orgulhoso histórias De Nelson e de Aboukir. O Francês - predestinado - Canta os louros do passado E os loureiros do porvir... Os marinheiros Helenos, Que a vaga iônia criou, Belos piratas morenos Do mar que Ulisses cortou, Homens que Fídias talhara, Vão cantando em noite clara Versos que Homero gemeu... ... Nautas de todas as plagas! Vós sabeis achar nas vagas As melodias do céu... 3.a Desce do espaço imenso, ó águia do oceano! Desce mais ... não pode o olhar humano Como o teu mergulhar no brigue voador. Mas que vejo eu ali ... que quadro de amarguras! Que cena funeral! ... Que tétricas figuras! ... Que cena infame e vil! ... Meu Deus! meu Deus! Que horror! 4a. Era um sonho dantesco ... O tombadilho Que das luzernas avermelha o brilho, Em sangue a se banhar. Tinir de ferros ... estalar do açoite ... Legiões de homens negros como a noite, Horrendos a dançar ... Negras mulheres, suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães: Outras, moças ... mas nuas, espantadas, No turbilhão de espectros arrastadas, Em ânsia e mágoa vãs. E ri-se a orquestra, irônica, estridente ... E da ronda fantástica a serpente Faz doudas espirais ... Se o velho arqueja ... se no chão resvala, Ouvem-se gritos ... o chicote estala. E voam mais e mais ... Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali! ....................................................................... Um de raiva delira, outro enlouquece ... Outro, que de martírios embrutece, Cantando, geme e ri! No entanto o capitão manda a manobra E após, fitando o céu que se desdobra Tão puro sobre o mar, Diz do fumo entre os densos nevoeiros: "Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!..." E ri-se a orquestra irônica, estridente ... E da roda fantástica a serpente Faz doudas espirais! Qual num sonho dantesco as sombras voam... Gritos, ais, maldições, preces ressoam! E ri-se Satanás! ... 5a. Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade Tanto horror perante os céus... Ó mar! por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?... Astros! Noite! Tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão!... Quem são estes desgraçados, Que não encontram em vós, Mais que o rir calmo da turba Que excita a fúria do algoz? Quem são? ... Se a estrela se cala, Se a vaga à pressa resvala Como um cúmplice fugaz, Perante a noite confusa... Dize-o tu, severa musa, Musa libérrima, audaz! São os filhos do deserto Onde a terra esposa a luz. Onde voa em campo aberto A tribo dos homens nus ... São os guerreiros ousados, Que com os tigres mosqueados Combatem na solidão ... Homens simples, fortes, bravos. Hoje míseros escravos Sem ar, sem luz, sem razão ... São mulheres desgraçadas Como Agar o foi também, Que sedentas, alquebradas, De longe ... bem longe vêm ... Trazendo com tíbios passos, Filhos e algemas nos braços, Nalma - lágrimas e fel. Como Agar sofrendo tanto Que nem o leite do pranto Têm que dar para Ismael ... Lá nas areias infindas, Das palmeiras no país, Nasceram - crianças lindas, Viveram - moças gentis ... Passa um dia a caravana Quando a virgem na cabana Cisma da noite nos véus ... ... Adeus! ó choça do monte! ... ... Adeus! Palmeiras da fonte! ... ... Adeus! Amores ... adeus! ... Depois o areal extenso ... Depois o oceano de pó ... Depois no horizonte imenso Desertos ... desertos só ... E a fome, o cansaço, a sede ... Ai! quanto infeliz que cede, E cai p'ra não mais s'erguer ... Vaga um lugar na cadeia, Mas o chacal sobre a areia Acha um corpo que roer ... Ontem a Serra Leoa, A guerra, a caça ao leão, O sono dormido à toa Sob as tendas d’amplidão ... Hoje... o porão negro, fundo, Infecto, apertado, imundo, Tendo a peste por jaguar... E o sono sempre cortado Pelo arranco de um finado, E o baque de um corpo ao mar. Ontem plena liberdade, A vontade por poder ... Hoje ... cum'lo de maldade Nem são livres p'ra ... morrer Prende-os a mesma corrente _ Férrea, lúgubre serpente _ Nas roscas da escravidão. E assim roubados à morte, Dança a lúgubre coorte Ao som do açoite ... Irrisão! ... Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se eu deliro ... ou se é verdade Tanto horror perante os céus ... Ó mar, por que não apagas Co'a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão? ... Astros! noite! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! ... 6.a E existe um povo que a bandeira empresta P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia! ... E deixa-a transformar-se nessa festa Em manto impuro de bacante fria! ... Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta, Que impudente na gávea tripudia?! ... Silêncio! ... Musa! chora, chora tanto Que o pavilhão se lave no teu pranto ... Auriverde pendão de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra, E as promessas divinas da esperança ... Tu, que da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis na lança, Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha! ... Fatalidade atroz que a mente esmaga! Extingue nesta hora o brigue imundo O trilho que Colombo abriu na vaga, Como um íris no pélago profundo! ... ... Mas é infâmia de mais ... Da etérea plaga Levantai-vos, heróis do Novo Mundo ... Andrada! arranca este pendão dos ares! Colombo! fecha a porta de teus mares! S. Paulo, 18 de abril de 1868

Republicanos lançam manifesto no Rio (1870)


1870



Em 1870, surgiu no Rio o jornal “A República”, fruto da aproximação entre os pequenos grupos contrários à monarquia que começavam a se agitar na capital e em Minas Gerais. No seu primeiro número, publica o “Manifesto Republicano”, provavelmente redigido por Quintino Bocaiúva, que representava o pensamento de advogados, jornalistas, médicos e outros setores profissionais das classes médias que não se sentiam representados no jogo político tradicional entre conservadores e liberais. Embora moderado _ o manifesto pregava a luta de idéias contra a monarquia e a revolução moral do país e punha grande ênfase no conceito do federalismo _ , o documento teve impacto importante na vida política do país. Nos anos seguintes, outras iniciativas de caráter republicano, como a Convenção de Itú, em São Paulo, mostrariam que a monarquia perdia adeptos também entre os proprietários de terras. Na década de 80, as novas idéias contaminariam boa parte da oficialidade do Exército. Abaixo, os principais trechos do Manifesto Republicano. “No Brasil, antes ainda da idéia democrática, encarregou-se a natureza de estabelecer o princípio federativo. A topografia do nosso território, as zonas diversas em que ele se divide, os climas vários e as produções diferentes, as cordilheiras e as águas estavam indicando a necessidade de modelar a administração e o governo local acompanhando e respeitando as próprias divisões criadas pela natureza física e impostas pela imensa superfície do nosso território. Foi a necessidade que demonstrou, desde a origem, a eficácia do grande princípio que embalde a força compressora do regime centralizador tem procurado contrafazer e destruir. Enquanto colônia, nenhum receio salteava o ânimo da monarquia portuguesa por assim repartir o poder que delegava aos vassalos diletos ou preferidos. Longe disso, era esse o meio de manter, com a metrópole, a unidade severa do mando absoluto. As rivalidades e os conflitos que rebentavam entre os diferentes delegados do poder central, enfraquecendo-os e impedindo a solidariedade moral às idéias e a solidariedade administrativa quanto aos interesses e às forças disseminadas, eram outras tantas garantias de permanência e solidez para o princípio centralizador e despótico. A eficácia do método havia já sido comprovada, por ocasião do movimento revolucionário de 1789 denominado a Inconfidência. [...] A Independência proclamada oficialmente em 1822 achou e respeitou a forma da divisão colonial. A idéia democrática representada pela primeira Constituinte brasileira tentou, é certo, dar ao princípio federativo todo o desenvolvimento que ele comportava e de que carecia o país para poder marchar e progredir. Mas a dissolução da Assembléia Nacional, sufocando as aspirações democráticas, cerceou o princípio, desnaturou-o, e a carta outorgada em 1824, mantendo o status quo da divisão territorial, ampliou a esfera da centralização pela dependência em que colocou as províncias e seus administradores do poder intruso e absorvente, chave do sistema, que abafou todos os respiradouros da liberdade, enfeudando as províncias à corte, à sede do único poder soberano que sobreviveu à ruína da democracia. [...] O Ato Adicional interpretado, a lei de 3 de dezembro, o Conselho de Estado, criando, com o regime da tutela severa, a instância superior e os instrumentos independentes que tendem a cercear ou anular as deliberações dos parlamentos provinciais, apesar de truncados; a dependência administrativa em que foram colocadas as províncias, até para os atos mais triviais; o abuso do efetivo seqüestro dos saldos dos orçamentos provinciais para as despesas e para as obras peculiares do município neutro; a restrição imposta ao desenvolvimento dos legítimos interesses das províncias pela uniformidade obrigada, que forma o tipo da nossa absurda administração centralizadora, tudo está demonstrando que posição precária ocupa o interesse propriamente nacional confrontado com o interesse monárquico que é, de si mesmo, a origem e a força da centralização. Tais condições, como a história o demonstra e o exemplo dos nossos dias está patenteando, são as mais próprias para, com a enervação interior, expor a pátria às eventualidades e aos perigos da usurpação e da conquista. O nosso estado é, em miniatura, o estado da França de Napoleão III. O desmantelamento daquele país que o mundo está presenciando com assombro não tem outra causa explicativa. E a própria guerra exterior que tivemos de manter por espaço de seis anos, deixou ver, com a ocupação de Mato Grosso e a invasão do Rio Grande do Sul, quanto é importante e desastroso o regime da centralização para salvaguardar a honra e a integridade nacional. A autonomia das províncias é, pois, para nós, mais do que um interesse imposto pela solidariedade dos direitos e das relações provinciais, é um princípio cardeal e solene que inscrevemos na nossa bandeira. O regime da federação, baseado, portanto, na independência recíproca das províncias, elevando-as à categoria de Estados próprios, unicamente ligados pelo vínculo da mesma nacionalidade e da solidariedade dos grandes interesses de representação e da defesa exterior, é aquele que adotamos no nosso programa, como sendo o único capaz de manter a comunhão da família brasileira. Se carecêssemos de uma fórmula para assinalar, perante a consciência nacional, os efeitos de um e outro regime, nós a resumiríamos assim: Centralização — Desmembramento. Descentralização — Unidade. [...] Em conclusão: Expostos os princípios gerais que servem de base à democracia moderna, única que consulta e respeita o direito à opinião dos povos, temos tornado conhecido o nosso pensamento. Como o nosso intuito deve ser satisfeito pela condição da preliminar estabelecida na própria carta outorgada; a convocação de uma Assembléia Constituinte com amplas faculdades para instaurar um novo regime é necessidade cardeal. As reformas a que aspiramos são complexas e abrangem todo o nosso mecanismo social. Negá-las absolutamente, fora uma obra ímpia, porque se provocaria a resistência. Aprazá-las indefinidamente, fora um artifício grosseiro e perigoso. Fortalecidos, pois, pelo nosso direito e pela nossa consciência, apresentamo-nos perante os nossos concidadãos, arvorando resolutamente a bandeira do partido republicano federativo. Somos da América e queremos ser americanos. A nossa forma de governo é, em sua essência e em sua prática, antinômica e hostil ao direito e aos interesses dos Estados americanos. A permanência dessa forma tem de ser forçosamente, além da origem de opressão no interior, a fonte perpétua da hostilidade e das guerras com os povos que nos rodeiam. Perante a Europa passamos por ser uma democracia monárquica que não inspira simpatia nem provoca adesão. Perante a América passamos por ser uma democracia monarquizada, aonde o instinto e a força do povo não podem preponderar ante o arbítrio e a onipotência do soberano. Em tais condições pode o Brasil considerar-se um país isolado, não só no seio da América, mas no seio do mundo. O nosso esforço dirige-se a suprimir este estado de coisas, pondo-nos em contato fraternal com todos os povos, e em solidariedade democrática com o continente de que fazemos parte.”

Patrocínio: “O trono do imperador tem fundamento na escravidão” (1882)


1882/1888




O conde de Leopoldina, Alcindo Guanabara, José do Patrocínio, J.J. Seabra, Manuel Lavrador, marechal Almeida Barreto, e dr. Campos da Paz, deportados pelo Marechal Floriano para Cucuh, onde foi registrado o encontro do grupo.Para conhecer a campanha abolicionista, que comoveu o país no fim do Império, nada melhor do que ler os artigos de José do Patrocínio. Durante quase uma década, escrevendo na “Gazeta de Notícias”, na “Gazeta da Tarde” e na “Cidade do Rio”, Patrocínio produziu algumas das páginas mais contundentes contra a escravidão escritas na nossa imprensa e converteu-se numa das principais figuras do Abolicionismo. Foi um tremendo jornalista, que aliava indignação e paixão à análise política. “O trono do Imperador tem fundamento na escravidão. Não há de resistir-lhe sem morrer”, dizia ele, em 1882. O diagnóstico conciso é perfeito, expondo o embrincamento entre as duas instituições e antevendo com precisão o que aconteceria no final da década. A monarquia resistiria pouco mais de um ano à assinatura da Lei Áurea. Não é um primor de análise política? Mas, se sabia apelar à razão, Patrocínio tinha “o coração nos lábios”. Com ele, incendiou a opinião pública progressista do país, desmoralizou o conluio entre a elite política e os grandes proprietários e legitimou a insubordinação e a fuga dos escravos. “Manada de negros e mulatas, tu nasceste para ser escravo e para ser soldado. O eito e o Exército é o teu destino. Num, não chegarás a cidadão, no outro não chegarás a oficial”, escreveu ele no mesmo artigo datado de 28 de agosto de 1882, que publicamos abaixo. O segundo artigo, publicado em 12 de março de 1888, poucos dias depois da demissão do Ministério Cotegipe pela regente, a Princesa Isabel, mostra como Patrocínio conseguiu perceber rapidamente que havia se produzido uma virada decisiva na luta política, que tornava iminente a abolição da escravatura. Primeiro artigo (28 de agosto de 1882) “A augusta cobardia do parlamento e do Governo deve a esta hora resfolegar serenamente. Na questão da escravidão ela não se pejou de apelar para a aliança da morte. A sombria aliada tem sabido cumprir o pacto. Anda pelas fazendas a recolher no ventre os negros condenados ao martírio, os desgraçados que foram lançados à fornalha obrigados a beber decoada submetidos à tortura da castração. Anda pelas rodas de enjeitados a engolir esse lixo humano, criado pela lei de 28 de setembro, o ingênuo, que o senhor atira à rua para fazer do leite da mulher escrava a moeda, que sustenta a sua preguiça e o seu luxo. Esta peregrinação horrorosa não a cansa. Ainda lhe sobram forças para vir bater às fileiras abolicionistas e levar daí vítimas para a satisfação dos seus aliados. Há três dias acometeu Luís Gama. A legião viva da Justiça caiu de súbito, e o ruído da sua queda espalhou nos corações de seus companheiros o temor supersticioso de que são perseguidos por uma fatalidade! Feliz governo o do sr. d. Pedro II. A corrupção e a morte formam em torno dele uma impenetrável muralha. Quem não se deixa corromper morre! Na hora em que o parlamento premeditava mais uma vergonha para o país; na hora em que para iludir a opinião ele se divertia em discutir às pressas, para logo passar para o fim da ordem do dia, o projeto proibindo o tráfico interprovincial de escravos, caía Luís Gama para não mais se levantar. A sua palavra fulminante substituía a tremenda afonia do túmulo; o seu heroísmo inimitável cedia o passo à inércia absoluta. Feliz Governo o do sr. d. Pedro II. Os acontecimentos agrupam-se sempre de modo a garantir-lhe a vitória. Enquanto a confederação dos Ratisbonas aumenta, rareiam as fileiras dos patriotas. Causa victrix Diis placet, exclamou o poeta e nós repetimos com ele esta sentença cruel contra a probidade política e o patriotismo sincero. Parece que a Divina Providência dos nossos estadistas se compraz com o estado de coisas do país. É ela quem mata a fé no coração popular; é ela quem segreda o descrédito daqueles que se esforçam; é ela finalmente quem se insinua como um veneno imperceptível no organismo dos homens de caráter e os impossibilita de prosseguir na luta redentora da pátria. O sr. Ratisbona engorda e rejuvenesce e no entanto Luís Gama falece. O que é vergonha para o país, perdura; o que é glória, tem uma vida caduca. A voz tremenda dos fatos ulula neste momento agoureiramente dentro do meu cérebro. Confesso que tenho medo. O Segundo Reinado dispõe de uma força superior a todo o país. Só o imperador pode querer, sem morrer. Ele quis a pirataria triunfante e teve-a. A lei de 1831 foi rasgada escandalosamente sem que houvesse um protesto do Governo. Para que dessem por ela, foi preciso que os morrões da esquadra inglesa se encarregassem de espancar as trevas do arquivo nacional. Em vão a imprensa agarrava pela goela os piratas conhecidos e os trazia para a praça pública, declinando-lhes os nomes e denunciando-lhes os crimes. Os homens do Império respondiam à imprensa banqueteando-se com os piratas e condecorando-os. Então, como hoje, esses infames que vivem do sangue dos seus irmãos, esses miseráveis que procuram apadrinhar o seu crime com a riqueza do país cobriam de baldões, babujavam de torpezas os nomes daqueles que lhes faziam frente. E afinal conseguiam impor silêncio! Foi assim que se passaram vinte e um anos de 1850 (*) a 1871 (**) sem que nada se fizesse para punir a ladroeira, a mais torpe que o mundo tem visto e que o sr. Ratisbona aplaude. Quando a civilização veio de novo pedir contas ao Segundo Reinado, o sr. d. Pedro II contentou-a com a lei de 28 de setembro. Mandou decretar essa lei ridícula que ensinou o infanticídio ao coração brasileiro, que decretou a hecatombe das crianças! Agora que uma nova cruzada se levanta em prol dos cativos, Sua Majestade pretende iludir ainda uma vez o mundo proibindo o tráfico interprovincial de escravos! Fica proibida a venda de escravos de uma para outras províncias, mas pode continuar a imoralidade da venda do homem de município a município, de casa a casa da mesma província. O imperador e os seus homens, os seus estadistas, entendem que têm feito muito. E nesta hora, em que nós outros temos, diante da civilização, diante dos princípios os mais sagrados da Justiça e do patriotismo, o direito de gritar ao escravo: levanta-te e conquista a tua liberdade; a morte vem arrancar-nos o general que nos devia conduzir ao campo da desafronta da honra nacional. Muito feliz é o Governo do sr. d. Pedro II. É preciso aceitá-lo tal como ele é. O trono do imperador tem como fundamento a escravidão. Não há de resistir-lhe sem morrer. Pela escravidão nós vemos decretada a grande naturalização. Os herdeiros e os piratas são todos da mesma pátria. Fizeram uma Constituição para o seu uso. Intervêm nos nossos negócios, ainda que a lei fundamental do país lhes proíba a intervenção. Dizem-se eles os patriotas, porque são eles os que têm o bolso cheio porque são eles que fizeram do ombro africano a escada para escalar o poder. Nós outros somos os valdevinos, os anarquistas, os irrefletidos. Os ladrões riram-se sempre dos roubados. Não é possível desafrontar a nossa História. O país só será grande deixando-se fechar na burra dos aventureiros, que nos negam até o direito de governar a nossa pátria como queremos. O que nos cumpre somente é obedecer. Manada de negros e mulatas, tu nasceste para ser escravo e para ser soldado. O eito e o Exército é o teu destino. Num, não chegarás a cidadão, no outro não chegarás a oficial. A tua função histórica há de ser esta unicamente. Julgas que tens pátria, porque nasceste sob este céu azul? Enganas-te. O primeiro que chega pode comprar-te, e surrar-te à vontade. Aí estão o parlamento e a polícia para garantir-lhe a plena posse do teu espírito e do teu corpo. Muito feliz é o Governo do sr. d. Pedro II. Desdobra-se sobre um país em que não temos o direito de estremecer a nossa Pátria; em que acima de uma vida de sacrifícios se coloca a burra dos herdeiros dos traficantes de carne humana. Quem clama pela justiça é apontado como revolucionário. A ordem é o roubo, é o assassinato do escravo, é o morticínio das crianças. O Império e a escravidão são solidários. A sua legislação visa somente manter esta solidariedade. Enquanto nós outros clamamos pela abolição, o Governo aprova os bancos de crédito real, quando pela Carteira Hipotecária do Banco do Brasil se vê que a propriedade rural entre nós é representada pelo escravo. À vista de semelhante desembaraço governamental é claro que há o propósito de não dar ouvidos ao Direito, e pelo contrário continuar a sufragar a pirataria vencedora. Não seremos nós quem se queira colocar em frente do Governo. Continue ele serenamente. Nós pelo contrário lhe segundaremos no trabalho e lhe oferecemos um projeto para ser discutido e votado pela câmara dos Ratisbonas: “Art. 1º Ficam revogadas as leis de 1831, 1850, 1854 e 1871 e bem assim a convenção de 1826. § O país não reconhece as instruções dadas pelo Governo do sr. d. Pedro I aos negociadores de reconhecimento da nossa independência pela Inglaterra. Art. 2º Ficam considerados escravos todos os negros e mulatos de ambos os sexos, existentes no Brasil. § 1º Esses novos escravos ficarão pertencendo aos fundadores de bancos e aos fazendeiros que tenham influência política. § 2º O Governo fará entre esses novos escravos a escolha dos mais válidos, de 20 a 25 anos de idade, para dar-lhes praça no Exército como escravos da Coroa. § 3º Excetuam-se somente os mulatos que tenham atualmente assento nas Câmaras e que tenham votado pela conservação da escravidão. Art. 3º Não se admite de forma nenhuma a libertação de negros e mulatos visto como eles poderiam aspirar a concorrer no comércio, nas letras e na política. Art. 4º Ficam revogadas as disposições em contrário.” Dói-nos extraordinariamente a pecha de revolucionários neste país tão feliz em que o brasileiro tem tanta autonomia política, comercial e literária. Não a queremos sobre nós, quando vemos que da escravidão sai Luís Gama e da aristocracia emprestada pelos fazendeiros da Paraíba do Sul e pela Coroa saem o sr. Ratisbona e o sr. Paranaguá. Aí fica o nosso projeto. Que as Câmaras o aprovem e Sua Majestade o sancione. 28 ago. 1882 (*) Ano da promulgação da Lei Euzébio de Queiroz, que proibia o tráfico de escravos. (**) Ano de promulgação da Lei do Ventre Livre, que estabelecia que os filhos das escravas seriam considerados livres. Segundo artigo ( 12 de março de 1888) SENHORA Vossa Alteza deve estar contentíssima com a brusca mudança que se operou no espírito público. A tempestade que se abobadava sobre o vosso futuro, sinistra e ameaçadora, desfez-se como por encanto. O mar das paixões, que desobedeceu heroicamente ao quos ego do arbítrio, abonançou-se ao vosso sorriso de estima pela opinião. Vistes, Senhora, qual a eficácia do Governo de acordo com a vontade nacional. Se os reis soubessem como o povo é bom, sacrificá-lo-iam muito menos; prefeririam o apoio leal, desinteressado das massas ao sufrágio interesseiro de certas classes, sufrágio que exige sempre como preço o holocausto dos direitos populares e que não raras vezes comprometem as dinastias. Os empreiteiros de tirania hão de dizer que fizestes mal entregando ao clamor público os homens que a vergonha nacional acusava de haverem imolado aos seus interesses a dignidade do Governo e do povo. Sabemos que não é dos estilos, principalmente entre nós, atender ao povo, mas nem por isso deixa de ser verdade que num sistema representativo, em que todos os poderes são simplesmente delegações da nação, o soberano só é verdadeiramente constitucional, quando reconhece a existência ativa e real da soberania popular. Atender ao povo, longe de desmerecer, prestigia o Governo. Querer antepor à opinião os caprichos pessoais ou de uma facção; decidir arbitrariamente que não há razão, senão nos que estão no poder; que só os ministros falam a verdade e respeitam a lei; que fora do mundo oficial está a anarquia, a conspiração contra as instituições; é mil vezes mais perigoso do que respeitar a vontade manifesta da nação, mesmo quando, já cansada de pedir, ela começa a exigir. Observai através da História, Senhora, que o povo só se impacienta depois de sofrer resignadamente longos anos. Nunca se viu formar-se instantaneamente uma opinião, que ameace instituições. Demais, há no povo uma força, que por isso mesmo que lhe garante a vitória, preserva-o da sofreguidão injusta: — é o bom senso. Sempre que o povo combate uma instituição, é que ela é realmente má e deve desaparecer. O Ministério Cotegipe foi violentamente combatido, porque ele representava uma instituição degradante: — a escravidão. A ousadia de propor-se um ministério a resistir a mais acentuada aspiração de um povo, demonstrava que ele só podia fazer um Governo de facção. Obcecado pela idéia fixa de vencer o abolicionismo, o Gabinete comprometeu sua política e a sua administração. Quanto ele fez devia fatalmente praticar. Que classe podia respeitar um ministério, organizado expressamente para desacreditar os sentimentos humanitários de um povo? Vossa Alteza viu que o Ministério desrespeitou desde o Senado até ao último cidadão brasileiro. Disse ao Senado: não faço caso dos teus votos. Disse à Câmara: é para mim a mais fútil das burlas o teu direito de interpelação. Disse ao seu partido: tu para mim representas a vontade do sr. Paulino e o interesse dos meus parentes e afilhados. Disse ao Exército: cala-te ou persigo-te. Disse à Marinha: prefiro a onipotência da minha polícia ao rubor do teu brio. Disse à imprensa: eu só quero de ti a circulação da calúnia, a tiragem da difamação. Disse ao povo: eu só quero de ti a obediência canina; silêncio ou espingardeio-te. Aos que acusarem Vossa Alteza de haver obedecido à intimação da praça pública, respondei que estáveis numa contingência dificílima: ou receber a intimação do direito, ou a intimação do despotismo; e preferistes a primeira. Se o soberano devesse fechar sistematicamente os ouvidos ao povo, este deveria considerá-lo sempre um inimigo, e estaria fraudado o princípio constitucional do Poder Moderador. A praça pública não é o caminho regular, concordamos, porém, o voto do parlamento não é o caminho único, tanto assim que ficou ao Poder Moderador liberdade inteira para nomear e demitir ministério. O direito de dissolução é o reconhecimento da opinião extraparlamentar. Vossa Alteza inaugurou um sistema que parece dar maior responsabilidade à Coroa, mas que na realidade a diminui. O povo, Senhora, não é o insensato, o leviano pintado pelos exploradores do poder. É o bom senso em grande, é a justiça em massa. Os parlamentos podem derrubar Gambetta, o povo o adora e o sustenta, e mesmo depois da sua morte, deixa-se dirigir pelo seu pensamento. Lá está na Espanha o exemplo mais vivo do que é a alma popular. Essa bela e meiga viúva, que ficou ameaçada pela herança de Afonso XII, porque ouviu de preferência o povo, consolidou o seu trono. O povo quer sentir nos atos do Governo a solidariedade do seu soberano com os direitos populares. Se houvésseis, Senhora, adiado a demissão do Ministério Cotegipe, o povo não agradeceria; ao contrário, guardaria contra Vossa Alteza ressentimento, por entender que pesa mais nos conselhos da Coroa uma aposentadoria, ou qualquer outro pretexto, que o sangue e o sacrifício dos cidadãos. Depois de saber que Vossa Alteza havia demitido, heróica, digna, patrioticamente esse Ministério maldito, que emoldurou em dois anos de Governo todas as violências de três séculos de escravidão, continuei a ler a Legenda dos Séculos e reli com o espírito e o coração essas páginas triunfais do Eviradnus. Estremeci, Senhora, diante daquele descuido de Mahand, adormecida entre os dois conspiradores; lamentei o terror que a fez permitir que entrassem no castelo misterioso da sagração do soberano esses intrusos sem alma, que a bajulavam para imolarem-na, mais comodamente, nos seus interesses e apoderarem-se da coroa que ela não tinha tido coragem de colocar sozinha na sua cabeça, mediante algumas horas de sacrifício. Vossa Alteza conhece o final dessa tragédia. Os dois conspiradores têm desdobrado os corações e posto pelo avesso as almas torpes e miseráveis. Sente-se um rumor: um frêmito das armaduras das estátuas dos antigos guerreiros. Os bandidos atemorizam-se, mas volvem a confiança no êxito do crime. Quem podia ressuscitar aqueles bronzes? Quem poderia chamar à vida aquela morte dupla dos heróis, representada pela decomposição do corpo e pela fusão brônzea das formas! Mas o silêncio, a solidão povoam-se de súbito com o aparecimento de um homem. É um velho guerreiro, é Eviradnus, que, tendo percebido a conspiração, veio guardar com a sua lealdade a princesa e a pátria, igualmente ameaçadas. Que indescritível, fora dos versos do poeta divino, essa luta de dois contra um, luta em que dois soberanos jogam a vida por um crime e um herói resgata a pátria pela vida. Ao primeiro assalto, cai um dos celerados. Mas o outro, sente-se agora forte, está armado, vai varar o coração do herói, que não dispõe já da espada. Passa pelo espírito de Eviradnus um relâmpago divino. Jaz a seus pés o cadáver do rei. Agarra-o pelas pernas, maneja-o, converte-o numa formidável massa e consegue fulminar o adversário e sepultar na torrente que passa os dois reis justiçados. No dia seguinte, Mahand, que devia ser recebida pela maldição eterna da pátria, é aclamada a soberana altiva e heróica, a esperança nacional. Ao terminar a leitura do Eviradnus, eu perguntei a mim mesmo, porque, nesse momento, sentia impressão mais viva do que outrora. E a reflexão disse-me: É que há semelhança entre os perigos da marquesa de Lurácia e da princesa herdeira da coroa do Brasil. Ela devia entrar só nesse castelo secular onde o povo exige que ela se coroe rainha — a abolição. Teve receio e chamou para seus companheiros os srs. Cotegipe e Paulino — os dois reis do escravismo. Uma vez senhores de confiança de Vossa Alteza, eles conspiravam para arrebatar-lhe a coroa, e o teriam feito se o sr. João Alfredo, o Eviradnus parlamentar, não tivesse a tempo percebido o jogo sinistro e não se tivesse a tempo armado com o cadáver do sr. barão de Cotegipe para fulminar o rei sobrevivente do escravismo, o sr. Paulino de Sousa. Vossa Alteza está salva; pode reinar utilmente sobre este povo, digno de um governo honesto e patriótico. Nunca nenhuma rainha teve diante de si mais glorioso trono. O que espera Vossa Alteza é feito com os corações do que vos construiu a pátria com o seu suor e com o seu sangue. l2 mar. 1888

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